CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Falei-te há tempos das análises de etnólogos às funções várias do vestuário. Na verdade, para além das suas funções de proteção do corpo humano contra o frio e o calor, a neve, a chuva, o sol, o excesso de humidade e o próprio meio líquido ou a secura extrema do ar, os bichos sorrateiros e perigosos, a vegetação daninha, o vestuário também se - e nos - adapta às várias condições laborais, desde a apicultura à construção civil, do trabalho de metais e do vidro ou cerâmica às exigências higiénicas da enfermagem e da cirurgia, das diferentes práticas desportivas às de segurança policial ou defesa militar. Etc., etc. Temos fatos para tudo. Mas não se ficam pela sua utilidade, por este seu lado prático. Desde tempos imemoráveis que foram ganhando arranjos e adornos, desenhos e cores, ao ponto de a chamada "moda", na sua continuada inovação estilística e material, se ter tornado numa indústria muito lucrativa. Chegamos mesmo a privilegiar a função estética do vestuário. Finalmente, abrangendo estas duas - a prática e a estética - mas levando-as para o terreno mais movediço e complexo da linguagem, da significação, da comunicação humana, tem o vestuário uma função semiótica, bem mais extensa do que a simples identificação de funções sociais ou exercícios públicos - esta sendo, hoje, aliás, uma espécie de sinalética mais ou menos adaptada ou conhecida internacionalmente. A semiótica de que falo pode exercer-se com clareza num contexto cultural definido, em que a densidade do entendimento social, o rigor das tradições e o consenso dos sinais, sejam fatores do que antropólogos chamam, em inglês, high context communication, e dispensem esclarecimentos adicionais e mais explicações. Todavia, tal pacífica clareza de entendimento já não se verificará quando as mensagens ou sinais atingem outra gente, culturas diferentes.
Quando conversámos sobre tudo isto, Princesa de mim, lembro-me de te ter dado exemplos de vestuário feminino que, para qualquer estranho, poderão parecer apenas mais ou menos a gosto, ou bonitos, ou práticos, muito embora eles carreguem importantes significados, para os membros das comunidades em que se usam. É o caso do kimono japonês, cujo decote, comprimento e abertura das mangas, laço dado ao obi, ou faixa da cintura, apresentam variações subtis que, a uma pessoa daquela cultura, dão informações sobre o estatuto de casada, solteira ou cortesã das portadoras, tal como os padrões e cores dos tecidos poderão dizer-nos a sua idade aproximada ou a sua viuvez. Não penses que se trata aqui de uma "orientalice" ou qualquer exceção exótica. Porque, mutatis mutandis, tal função semiótica surge nas culturas e sociedades europeias, da Roménia à Suécia: aqui, por exemplo, em Runö, até se identificaram oito padrões progressivamente diferentes de lenços de cabeça, do negro escuro e total aos mais claros e desenhados, usados pelas viúvas de acordo com o respetivo tempo de viuvez. E em muitas outras regiões da Europa descobrimos do mesmo, basta puxarmos pelas nossas próprias recordações.
No muito documentado ensaio de Yvonne Deslandres e Monique de Fontanès sobre a Histoire des modes de la coiffure (in Histoire des Moeurs, Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1990), encontrei uma notícia que não resisto a traduzir-te: A África tradicional oferece uma grande variedade de maneiras, que são outros tantos sinais de reconhecimento entre etnias ou entre grupos. No Mali, no Senegal ou na Costa do Marfim, as mulheres casadas trazem sempre um lenço atado na cabeça, que indica, quer a elegância, quer a sageza e a fortuna. Todos os estádios da vida de uma mulher são reconhecíveis e notados imediatamente pelos membros da mesma comunidade. Pode ler-se que a mulher nunca se divorciou, que é a primeira ou segunda esposa, que deu à luz há menos de quarenta dias, que é viúva, que é recém casada e vai para uma festa, que esteve muito tempo sem ter filhos, ou que teve dificuldades em não perder o seu, o que se explica pelos riscos de mortalidade infantil, receio das jovens mães [...] Compreendemos qual pode ser a complexidade do toucado perante a complexidade das situações que ele tem de exprimir. Tais usos são bastante universais. O estatuto da mulher é marcado pela sua cabeça, seja pelo próprio arranjo do seu cabelo, seja pelo chapéu que a cobre. Na Índia, por exemplo, jovens e velhas penteiam-se com o cabelo separado ao meio por uma risca e enlaçados por um carrapito na nuca e cobrem a cabeça com uma dobra do seu sari. Conforme a idade delas, a dobra do sari cobrirá mais ou menos inteiramente a cabeça. As mulheres casadas distinguem-se das solteiras polvilhando de vermelho a risca mediana do seu cabelo... São inúmeros os exemplos de semiótica capilar, ou de toucador - se assim me posso exprimir - por esse mundo fora. Não vou prosseguir com outros mais, mas aconselho-te a leitura do ensaio acima citado, e do qual respigo ainda o seguinte passo:
A epístola de São Paulo (I Coríntios, XI, 2-15), que prescreve às mulheres que cubram a cabeça para assistirem aos ofícios, não é apenas expressão de afetação misógina. Antes parece resultar de um uso já espalhado nos países europeus, e que era provavelmente transgredido. Na verdade, quanto à Eurásia, sabemos, através de investigações sobre os povos turco-tártaros ou ugro-finlandeses da Sibéria ou da Ásia central que eles conheciam o uso do cabelo coberto pelas mulheres, muito antes do cristianismo e da islamização. O famoso texto de São Paulo mais não seria do que a legitimação de um costume mais antigo e mais espalhado. Seja como for, parece-me difícil contestar que o Apóstolo de Tarso, o cristão fundador vindo do farisaísmo, o tal que, apesar disso, rompeu com os interditos alimentares e matrimoniais do judaísmo, e muitos dos seus ritos - além de ter também sido aquele que proclamou jamais haver escravo e homem livre, nem homem e mulher - não tenha sido o primeiro a dar ao véu uma dimensão religiosa, iniciando, aliás, com o texto referido, uma teologia do véu que os Padres da Igreja foram desenvolvendo até ao século III, quando Tertuliano e Clemente de Alexandria apresentaram a sua teoria completa do véu como atributo da virgem consagrada e da esposa cristã. Diz o tal passo da primeira Epístola aos Coríntios: Tenho aliás de vos louvar por vos lembrardes de mim em todas as coisas e por manterdes as tradições tal como vo-las transmiti. Quero, porém, que o saibais: a cabeça de todo o homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem, e a cabeça de Cristo é Deus. Todo o homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra a própria cabeça. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a própria cabeça, pois é o mesmo que se estivesse rapada. Se uma mulher, efetivamente, se não cobre, corte igualmente o cabelo. Mas se, para uma mulher, é desonra cortar ou rapar o cabelo, então que se cubra. Na verdade, o homem não deve cobrir a cabeça, por ser imagem e revérbero de Deus; a mulher, por seu turno, é revérbero do homem. Não é, de facto, o homem que provém da mulher, mas a mulher que provém do homem. Nem o homem foi criado por causa da mulher; a mulher é que o foi por causa do homem. Devido a isto, a mulher deve ter na cabeça um sinal de sujeição por causa dos Anjos. Aliás, no Senhor, nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher; e tudo vem de Deus.
Recorri aqui à tradução do texto grego pelo cónego José Falcão (Lisboa, 1960). Em nota de rodapé, o saudoso biblista dá-nos uma informação preciosa: a mulher não tem de usar, perante Deus, a cabeça descoberta, mas tem de ostentar um sinal da sua sujeição (lit. autoridade) ao homem e assim se conformará com a ordem instituída por Deus. O termo autoridade não se entende sem dificuldade. Uns compreendem-no ativamente: «sinal de poder», espécie de talismã contra os Anjos maus (por causa dos anjos); mas esta exegese não apresenta provas de que o véu feminino tivesse alguma vez sido considerado como um talismã. Outros, com mais probabilidade, interpretam: «sinal de autoridade do marido». E até foi sugerida a hipótese de uma confusão devida a um termo aramaico (shaltonayá ou shiltoná), que poderia significar autoridade e véu, donde o equívoco no grego. Seja como for, a confusão entre autoridade (ou submissão) e véu estabeleceu-se. Talvez Paulo procurasse assentar a simples licitude ou entendimento do porte do véu pelas mulheres, costume certamente antigo, também entre gregos e romanos, numa justificação religiosa, ressalvando, todavia, que, aliás, no Senhor, nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher, e tudo vem de Deus.
O problema, digo eu, é que esta coisa da inculturação das religiões - ou das mensagens religiosas - corre sempre o risco de gerar interpretações dogmáticas para todo o sempre... No decurso da nossa história humana, o cabelo, crescido e exposto, das mulheres já foi sinal de fortaleza e beleza, como de lascívia, serviu para Madalena enxugar os pés de Cristo, para lady Godiva esconder a nudez, ou para ser cortado rente pelos parisienses que apanhavam as francesas que mais se tinham dado com os alemães durante a guerra. Entre os homens, não só Sansão, mas também os sikhs e outros, em suas compridas guedelhas viram sinal e garantia de força máscula, quiçá por isso as ordens religiosas impunham a tonsura aos seus monges e frades, como o duque de Berry aos seus criados. Já se viu de tudo um pouco, ou muito, cabelo penteado ou toucado, exposto ou esconso, é, como toda a semiótica, uma questão cultural, não vale a pena sofrer-se de obscura obsessão religiosa persecutória...
Peço-te vénia, com tantas variações e fugas esqueci-me de que, afinal, nesta carta te falaria de testemunhos de portadoras - ou refutadoras - de véus, desde freiras cristãs a devotas muçulmanas e a feministas de vários costados. Ficarão para a próxima, perdoa-me. São importantes para a nossa conversa, porque afirmam um direito inalienável e irrepreensível, simples expressão da nossa necessária condição subjetiva, que é, tão simplesmente, o da liberdade individual. A talho de fouce, digo que pensossinto ser a intolerância a única coisa intolerável. É minha crença íntima que assim é. A tal ponto que condeno qualquer perseguição a Charlies Hebdos, pelo simples facto de serem como são, muito embora tais publicações e intenções me pareçam, para além de, vezes várias, desnecessariamente provocatórias, cripto totalitárias e intolerantes: com exceção da sua própria visão do mundo, dos homens e de Deus, todas as outras são, para eles, ridículas e amesquinháveis. Como também considero - e dei-te até o exemplo do Tintin au Pays de l´Or Noir - o niqab ou a burka vestimentas suscetíveis de proibição de uso público - e, certamente, não por razões religiosas, nem outras semióticas – por serem difíceis para qualquer serviço de segurança controlar identidades. E, tal como me parece uma estupidez essa perseguição ao burkini, que não esconde caras, me pareceria também intolerância qualquer oposição islâmica ao banimento, em espaços públicos, de vestuário que pode, evidentemente, servir de disfarce. Tudo isto se conversa, bater o pé é que não leva a lado algum. E, menos ainda, provocar.
Como quero deixar a próxima carta entregue a testemunhos mais pessoais e puros do que o meu, atrevo-me ainda a registar nesta um último comentário, uma lembrança que agora me ocorreu: Moisés - a ter existido - homem e condutor de povos, cobria-se com um véu, depois de conhecer a revelação divina, por tal o tornar, escreve o rabino Yeshaya Dalsace, insuportável ao comum. Donde a necessidade de ocultar a luz tão desejada. Mais ainda: o véu do profeta põe-no sem rosto, sem personalidade visível. Entrando na santidade, Moisés perde um pouco da sua humanidade, como se estivesse do lado de lá do espelho. Tornado invisível para os homens, ele só se descobre diante da presença divina.
Na próxima carta perceberás porque digo isto.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira