A FORÇA DO ATO CRIADOR
O Mosteiro dos Jerónimos.
Situado em Lisboa, na zona de Belém junto ao Rio Tejo, o Mosteiro de Santa Maria de Belém (1500-1551) foi fundado no lugar de uma velha ermida da Ordem de Cristo. Em 1495, D. Manuel I fez um requerimento à Santa Sé para aí construir um eremitério de frades da Ordem de São Jerónimo. Em 1496, a autorização foi concedida e em 1501/02 inicia-se a edificação do novo mosteiro. Os monges da Ordem de S. Jerónimo teriam assim como funções, entre outras, rezar pela alma do rei e prestar assistência espiritual aos mareantes e navegadores, que partiam da praia do Restelo.
A construção do mosteiro é posterior à descoberta do caminho marítimo para a Índia e assim a obra foi financiada em grande parte pelos lucros do comércio de especiarias com a África e o Oriente.
Em 1518, D. Manuel I decidiu que a igreja iria servir para panteão real. O mosteiro integra então não só, os túmulos dos reis D. Manuel I e sua mulher D. Maria, como também D. João III e sua mulher D. Catarina; D. Sebastião e D. Henrique – integrando posteriormente os de Vasco da Gama, Luís Vaz de Camões, Alexandre Herculano e Fernando Pessoa.
Ao francês, Diogo de Boitaca (encarregado da obra de 1502 a 1516/17) deve-se o traçado do plano original do mosteiro e da igreja. Na verdade, o desenho inicial do conjunto evidencia a experiência de Boitaca na construção do Mosteiro de Jesus de Setúbal (1490), cuja igreja constitui, a uma escala menor, a primeira igreja-salão portuguesa.
Em 1516, foi atribuída a coordenação geral da obra ao mestre biscainho João de Castilho (1490-1581). A Castilho coube, desde então, a resolução de problemas estruturais e a introdução de uma nova ornamentação arquitetónica, distinta da primeira campanha de obras coordenada por Boitaca. A mudança de gosto que Castilho inicia, traz ao monumento uma ornamentação ao estilo plateresco espanhol. João de Castilho resolveu com mestria a cobertura das naves e do cruzeiro, determinou o desenho dos pilares e o portal sul, finalizou o claustro, a sacristia e a fachada.
O Mosteiro é constituído pela igreja, claustro e dependências anexas (que incluem o refeitório, a sala do capítulo, a sacristia, os confessionários, o coro-alto e a livraria).
A igreja é dividida em três naves. A abóbada polinervada da igreja é única e está assente em seis pilares de base circular. A distinção entre as naves está diluída e assim é permitida a perceção de um espaço contínuo e único até à capela-mor. O arco relativo à nave central é de volta perfeita e os arcos relativos às naves laterais são quebrados. De facto, as coberturas experimentam soluções inovadoras para a época – vencem vãos muito amplos através de um sistema de nervuras (mais finas que o habitual) que se estabelece através de desdobramentos secundários. O plano de Diogo de Boitaca intersecciona as três naves com um grande cruzeiro (elemento que distingue os Jerónimos do Mosteiro de Jesus de Setúbal) e inclui em cada extremo do cruzeiro capelas, que constituem uma novidade tipológica assinalável.
O desenho da abóbada unifica o espaço, fazendo-se somente a distinção entre a nave tripartida e o cruzeiro. A abóbada do cruzeiro é uma das mais notáveis obras de arquitetura de tecnologia gótica em toda a Europa. É notável pelo vão vencido e pelo trabalho estrutural de disposição das nervuras e fechos. O vão vencido sem qualquer suporte apresenta cerca de 29 metros de comprimento (no sentido sul-norte), 20 metros de largura (no sentido este-oeste) e cerca de 25 metros de altura.
A capela-mor segundo o plano original projetada por Diogo de Boitaca foi demolida apenas cinquenta anos após a construção da igreja, e era muito semelhante, em desenho e escala, à construída em Setúbal. A capela-mor, que hoje se conhece, foi mandada construir posteriormente por D. Catarina, mulher de D. João III, em 1571. Foi traçada pelo mestre Jerónimo de Ruão, aí introduzindo a arte maneirista. Nas arcadas laterais localizam-se os túmulos de D. Manuel I e de D. Maria e os túmulos de D. João III e D. Catarina.
O Portal Sul da igreja, construído entre 1516 e 1518, é uma das composições mais ricas de arquitetura portuguesa do gótico tardio e a sua execução ficou a dever-se a João de Castilho (o desenho é de Diogo de Boitaca). Em muito semelhante ao Mosteiro de Setúbal a localização lateral do portal monumental a sul constitui o centro visual da fachada do mosteiro paralela ao rio. Ao centro encontra-se a Virgem dos Reis Magos com o Menino, rodeada por estátuas que representam profetas, apóstolos, doutores da igreja e santas. Nos tímpanos figuram duas cenas da vida de S. Jerónimo. Entre as portas geminadas uma estátua representa o Infante D. Henrique. O arcanjo São Miguel, o ‘anjo custódio’ do reino, encima o portal.
O portal poente é menos grandioso, mas constitui a entrada principal da igreja e do mosteiro. Foi projetado por Diogo de Boitaca e executado pelo mestre escultor francês Nicolau Chanterenne, em 1517. Os três nichos que encimam o portal incluem cenas do nascimento de Cristo. De cada lado do portal estão as estátuas orantes dos reis fundadores: do lado esquerdo D. Manuel I e S. Jerónimo, do lado direito, D. Maria e S. João Baptista.
Por sua vez, a construção do claustro iniciou-se em 1503 e prolongou-se até 1551, correspondendo a três campanhas sucessivas de obras – Diogo de Boitaca iniciou os trabalhos, João de Castilho sucedeu-lhe a partir de 1517 e foi concluído por Diogo de Torralva, entre 1540 e 1541. O seu programa decorativo revela as intenções simbólicas que D. Manuel I queria associadas a este monumento. Apesar da sucessão de trabalhos, o claustro revela uma harmonia, conseguida pela delicadeza da intervenção dos diversos mestres, pela utilização de um material único (a pedra de lioz) e pela eficácia na aplicação integrada de princípios que vão desde o gótico tardio ao Alto Renascimento. O claustro apresenta uma tipologia pouco conhecida entre nós. Tem dois andares abobadados, uma planta quadrada com os cantos chanfrados que formam assim um octógono. A carga decorativa é densa de significado. Num discurso único, a ornamentação combina uma proclamação épica portuguesa e a celebração do casal régio, D. Manuel e D. Maria (através da utilização da Cruz da Ordem Militar de Cristo, da esfera armilar e do escudo régio) com a narrativa bíblica da Paixão de Cristo e o uso de elementos naturalistas, vegetalistas, da arte da navegação e animais exóticos.
A heráldica e a religião aqui se fundem, transformando o Mosteiro dos Jerónimos numa obra de propaganda régia e de glorificação de um reino.
Em 1833, o Estado secularizou o mosteiro e entregou-o à Real Casa Pia de Lisboa. Entre 1867 e 1878, os cenógrafos italianos do teatro de S. Carlos, Rambois e Cinatti, reformularam profundamente o anexo e a fachada de igreja, dando ao monumento o aspeto que hoje se conhece. O Museu da Marinha e o Planetário Calouste Gulbenkian instalaram-se em 1962 nos edifícios anexos ao mosteiro. Em 1907, o Mosteiro dos Jerónimos foi elevado a monumento nacional e desde 1983, integra (com a Torre de Belém) a lista do Património da Humanidade definida pela UNESCO.
Ana Ruepp
PEREIRA, Paulo, ’Arte Portuguesa. História Essencial‘, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011
CAMBOTAS, Manuela Cernadas, MEIRELES, Fernanda, PINTO, Ana Lídia, ‘Arte Portuguesa’, Porto Editora, Porto, 2006.