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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS


   De 19 a 25 de setembro de 2016

 

Os «Opúsculos» de Alexandre Herculano são um conjunto fundamental para a compreensão da obra do nosso grande historiador. Infelizmente, há muito se encontram esgotados, e a reedição iniciada por Joel Serrão não foi completada. Eis o que não pode ser esquecido.

 

 

HERCULANO, CIDADÃO COMPROMETIDO

Num tempo em que o jornal oficial não era exatamente o que é hoje, um repositório de atos legislativos ou de decisões políticas de órgãos de soberania, Alexandre Herculano foi redator do «Diário do Governo», antes da campanha de «O Panorama», publicando aí textos importantes que nos dão conta de um pensamento político, que, no essencial, conhecemos, mas que, estampado na folha oficial, ganha um especial significado. Entre janeiro e maio de 1838, o historiador exerceu tais funções, não assinando as suas prosas, mas não deixando dúvidas sobre as suas ideias, o seu empenhamento e a sua perspetiva. Para alguns, poderá parecer surpreendente que o autor de «A Voz do Profeta», libelo contra a Revolução de Setembro de 1836, apareça como porta-voz da solução política resultante, na prática, daquele movimento político. Importa, no entanto, referir que o historiador considerou serem a legitimidade da Assembleia Constituinte que aprovou a Constituição de 1838 e o compromisso a esta subjacente fatores decisivos para a afirmação da causa liberal. Ao contrário do que esperava, não prevaleceu uma lógica extrema, mas uma solução equilibrada. Assim, na introdução de 1867 a «A Voz do Profeta», Herculano afirmou a sua coerência, saudando a nova Constituição e reconhecendo o seu elevado merecimento: «Vencido na guerra civil, desautorizado e moralmente enfraquecido, o cartismo viu triunfar em grande parte as suas ideias na contextura da Constituição de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos estavam representados por insignificante minoria. Era a condenação solene da revolução, lavrada por um parlamento eleito debaixo da influência dela. O que no novo código político parecia mais oposto à índole da Carta era a organização da segunda câmara, e todavia o cartismo adquiria por aquele meio uma arma poderosa para de futuro reformar constitucionalmente o que havia de mau na recente organização de um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo pariato hereditário e ilimitado, nem a assembleia conservadora significasse apenas a interposição de uma parede entre duas porções de parlamento único». Uma figura ética como Herculano não deixava por mãos alheias a justificação inequívoca da sua posição política. Aliás, até à Regeneração (1851) será ele um dos mais fervorosos combatentes no sentido de conseguir o que foi alcançado no Ato Adicional de 1852, ou seja, a sábia síntese entre a velha legitimidade vinda da causa liberal de D. Pedro e a vontade constituinte de 1838. Só assim a Carta se tornou o texto constitucional mais duradouro da história portuguesa – e o rotativismo (ideado em parte muito significativa por Herculano) permitiu a estabilização política necessária.

 

O PRIMADO DA CONSTITUIÇÃO

Ao relermos os textos do historiador no «Diário do Governo», salta à vista a série «no signo da Constituição de 1838». Aí lemos uma série de alertas, a propósito das tentações radicais, que nos permitem dizer que se tivessem sido ouvidos não teria sido aberto o caminho persistente e longo para o golpe de Estado de 1842 de Costa Cabral, que restaurou a Carta na sua versão retrógrada, gerando um clima de guerra civil e atrasando a consolidação das instituições liberais. Vejamos os textos de 17 de março e de 4 de abril de 1838. O primeiro, refere-se aos «extremos que se tocam»… «Quando um povo sobe na religião, a qual está num meio, como todas as coisas boas, até a um extremo, qual é o fanatismo, torna-se feroz, perseguidor, intolerante, irracional; quando na religião desce até ao outro extremo, que é a incredulidade, aparece igualmente feroz, perseguidor, intolerante, irracional. No primeiro caso, queima os livros dos filósofos, e os filósofos; proscreve as artes e os prazeres; treme de tudo quanto à natureza pertence, até do seu próprio nome. No segundo caso extermina os homens do espírito e os livros da fé, desterra um sistema completo de recreios morais e populares, com que muitas idades se houveram por contentes e ricas; derriba todos os monumentos do passado, onde estampasse algum caráter religioso; assusta-se de tudo que lhe possa lembrar Deus ou Alma. Lá devasta-se em nome do espírito, cá devasta-se em nome da matéria: lá o archote, o picão e o açoute de ferro andavam na mão do sacerdote, cá andam na mão do filósofo: o sacerdote é o filósofo dos fanáticos; o ateu é o sacerdote dos incrédulos»… O texto continua no campo da política, já que era o radicalismo cego que preocupava Herculano, certo de que assim aconteceria, como aconteceu, o fortalecimento das opções que iria destruir a legitimidade constitucional tão sabiamente delineada. A passagem ilustra bem o caráter dos textos de opinião do «Diário do Governo» desse período.

 

A LITERATURA E A ÉTICA

No caso de Alexandre Herculano, verifica-se sempre a grande qualidade literária e ética de quem escreve. Já relativamente ao segundo texto, de abril, o historiador exprime, com os argumentos que invocará no texto já referido de 1867 na reedição de «A Voz do Profeta» o motivo pelo qual, apesar de não ter aderido à Revolução de 1836, assume a defesa da Constituição aprovada pelos constituintes, uma vez que se baseia na legitimidade cidadã e popular que defende: «o que queremos é não ser servos: queremos respeito à nossa propriedade, liberdade em tudo aquilo que a lei nos não proíbe; queremos paz e pão. A soberania de ninguém é direito, porque é um facto nascido da mesmíssima natureza dos corpos sociais: exerça-se do modo que por experiência e boa razão se achar mais conveniente; livremo-nos do despotismo de um indivíduo e do ainda mais tremendo despotismo da ralé, e demos documento à Europa de que somos dignos da liberdade. Esperamos achar conformes com a nossa opinião todos os homens sisudos de Portugal». Do que se tratava era de, com argumentos serenos e racionais, defender a solução moderada e compromissória de 1838 – de modo que houvesse um governo representativo das diversas famílias políticas. Além das considerações emblemáticas referidas, encontramos entre os textos da autoria de Herculano no «Diário do Governo», e a título exemplificativo, os seguintes temas: a Emigração para o Brasil, os Asilos de Infância, a instituição dos jurados na administração da justiça, a condenação inequívoca da pena de morte («bastaria atender aos verdadeiros princípios em que assenta a ordem social para conhecer que a pena de morte é um absurdo»)… Com grande independência política e com uma determinação no sentido da salvaguarda das instituições constitucionais, Herculano é, neste período muito fugaz, um redator probo, defensor da autonomia individual e da causa liberal, sempre sem perder o sentido crítico. Um dos maiores vultos da cultura e da língua portuguesas esteve assim ligado ao jornal oficial – emprestando a sua inteligência e a sua escrita à defesa da causa do constitucionalismo liberal. Poucos o ouviram imediatamente. Mais tarde, em 1851, pareceu ser-lhe dada atenção, mas foi tudo demasiado rápido…

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

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