CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Le Monde des Religions publicou recentemente (setembro/outubro de 2016) um número sobre o véu e a sua história. É aí que recolho os testemunhos femininos que para ti traduzo.
1. Nawal (pseudónimo) tem 29 anos, medrou num subúrbio de Paris, no seio de família muçulmana, numerosa e modesta, até ter conseguido obter o grau de mestre em recursos humanos: Quanto a mim, penso que o ser humano tem essa incrível capacidade de velar o rosto, literalmente. A vida é angustiante, porque constitui um mistério que ninguém consegue ainda determinar, nem cientistas, nem pessoas muito piedosas. Tenho a impressão de que pomos o véu para nos protegermos do olhar dos homens, para não lhes chocar a sensibilidade. Isso cria-me um problema. Se o homem se incomoda com o que é belo - um rosto, um cabelo -, não cabe à mulher submeter-se a ele, esforçar-se por algo de que não é, de modo algum, responsável. Gostaria que as muçulmanas veladas se informassem sobre a dificuldade de se ser uma mulher não velada nos países religiosos, onde não têm liberdade de escolha. Nos países ocidentais, a dominação masculina também é muito pronunciada. Conquistar-se um lugar, enquanto mulher, no meio laboral e na sociedade, dá muito trabalho. Combatemos corajosamente para impor a nossa independência económica e social. Penso que usar véu não será a melhor estratégia para uma vida feliz, livre e autónoma. Antes servirá de travão. Velar-se é velar a cara. Todavia, gostaria tanto que a religião muçulmana brilhasse novamente. Só se ouve falar do seu lado sombrio. Embora cada comunidade religiosa tenha o seu, é claro que, nestas últimas décadas, foi o islão que confortou mais angústias.
2. Nour, de 23 anos, exerce serviço cívico na associação Coexister: Uso o véu desde há dez anos. Para mim ele faz parte das obrigações religiosas que competem a uma mulher muçulmana a partir da puberdade. No colégio, punha-o depois das aulas. Isso não chocou ninguém à minha volta: vivia em Barbès, um bairro parisiense onde reside uma maioria de emigrantes de origem magrebina e africana. Não pensava em todo o alcance desse símbolo religioso, sobretudo nas suas dimensões antropológicas e sociais. Não senti olhares hostis até ir para a faculdade, no bairro de Saint-Michel, onde pude encontrar pessoas de meios muito diferentes. Espiritualmente, o véu é uma lembrança do divino. Para mim, tem um significado muito semelhante ao do kippa [solidéu judaico]: há um Deus por cima do véu e um ser humano por baixo. Socialmente, o véu é claramente um meio de identificação dos membros da comunidade, mas é também um sinal de modéstia. Insere-se no enquadramento geral do pudor no islão, capítulo muito importante. Mas não se trata apenas de cobrir o corpo, é preciso também adotar um comportamento pudico, uma certa direiteza. O princípio consiste em ser-se modesta relativamente ao que nos gratificou, sejam bens materiais, um físico vantajoso, ou mesmo um estatuto social. O mesmo se pede aos homens, mas noutros aspetos: por exemplo, não têm o direito de trazer ouro, seda, tecidos preciosos, vestes extravagantes, o que mostraria orgulho. Hoje, poderíamos falar antes de um Rolex [risos].
Duas jovens muçulmanas, ambas crescidas e educadas (com formação universitária) em França. Uma explica porque não usa véu. A outra porque o traz. Ambas serenas, com inteligência atenta e fina sensibilidade. Deram-me que pensar e sentir, Princesa, duas mulheres novas que me encheram de respeito. Há questões que não podem e não devem ser tratadas, nem com leviandade, nem com rigidez, menos ainda com brutalidade. Como diz a Nawal, a vida humana é um mistério, que nem cientistas nem pessoas muito piedosas conseguiram ainda desvendar. Só por isso é infinitamente respeitável, e é sagrado o íntimo de cada um de nós. Termino esta carta com os testemunhos de duas freiras católicas, com os quais, ambas as jovens muçulmanas, cada qual a seu modo, com mais ou menos acordo, serão certamente capazes de comungar, na capacidade de discernimento e liberdade. E no desejo de afirmação e audiência.
3. A irmã Maria Rosangela é a superiora geral italiana do Instituto das Irmãs da Imaculada, em Génova: Para mim, o véu tem este significado simbólico: reservar para alguém a nossa própria beleza e pessoa. No caso das religiosas católicas é um sinal de pertença a Deus. Além disso, o véu identificou a vontade de certas religiosas de serem, por opção exclusiva de vida, lembranças vivas da presença de Deus entre as pessoas. Num mundo em que se procuram sinais, creio que é importante, também no domínio religioso, ter algo que nos qualifique, que ajude os outros a identificar-nos imediatamente. No quotidiano, o meu véu recorda-me o meu compromisso: o que represento ao trazê-lo deve corresponder à realidade de que dou testemunho. Todas as manhãs isso me ajuda a lembrar-me de quem sou. O véu que trago é bastante invasor, quer pela forma, quer pelo tamanho! Graças a ele, pude acolher confidências de pessoas, que à partida eu não conhecia de todo, e que confiaram em mim. Também fui provocada e contestada, marginalizada. Hoje em dia, ser religiosa católica e mostrá-lo, pode irritar certas pessoas. Mas, por vezes, o véu permite-me entrar em contacto com pessoas que, ultrapassando os seus preconceitos, conseguem ter conversas enriquecedoras. Sem esse sinal claro de pertença a Deus, dificilmente teria beneficiado desse género de encontros.
4. A irmã Fabíola Gusmão é timorense, carmelita na congregação das Irmãs da Virgem Maria do Monte Carmelo: O véu faz parte do que chamamos hábito, é um todo. Revestindo-o, as pessoas querem mostrar a relação esponsal – nupcial - entre Cristo e a sua Igreja. Significa que nos submetemos ao amor, à ternura atenta de Cristo. Mas submissão não é escravidão! Para toda a família carmelita, a cor do nosso hábito, e véu, significa a terra. Quer isso dizer que vimos da terra, do pó, e que em pó nos tornaremos. Entre as carmelitas, umas trazem véu, outras não. Mas em Timor Leste, como na Indonésia ou nas Filipinas, queremos usar hábito. Na Ásia temos mesmo "orgulho" em mostrar a que congregação pertencemos! Divertimo-nos a adivinhar se as religiosas são missionárias, carmelitas ou outras! O nosso véu é também um sinal de pobreza: trazemos sempre o mesmo, durante anos. Não há necessidade de andar à moda, nem de nos maquilharmos! [risos]. Na Indonésia, onde vivi alguns anos, a maioria da população é muçulmana, parte da qual fundamentalista. Pertencer visivelmente à Igreja Católica não ajuda. Em 2006, aquando do sismo na ilha de Java, religiosas da minha congregação deslocaram-se para irem lá socorrer as populações. Mas tiveram de renunciar a trazer hábito. Fizeram-no também por respeito. Se os muçulmanos tocam nos nossos hábitos, consideram isso "impuro". Respeitamos isso. Depois, vivi na Irlanda, onde era diferente, o véu não se notava. Penso que o véu desempenha funções de barreira, quer no sentido positivo, quer negativo. Para mi, é como uma vozinha e lembrar-me: "Atenção! Porta-te bem!" É uma maneira de me impor limites, de me impedir de ir a certos sítios. Enfim, penso que hoje ainda temos necessidade de sinais visuais, de mostrar que há pessoas que continuam a consagrar a Deus as suas vidas!
Também estas religiosas refletiram sobre identidades, identificações e convivência. Também com elas o laicismo francês - que hoje insiste em ser intolerante e totalitário - tem muito para aprender. Não há entendimento possível sem reconhecimento das diferenças e respeito pela identidade delas. Repito Je ne suis pas Charlie!, pois não creio que tal jornal seja propriamente um fator de compreensão mútua ou um mensageiro de paz. E prefiro mil vezes - sinto-me bem mais confortado - a vista de mulheres e homens exibindo os sinais das suas fés ou das suas opções à perseguição seja de quem for, só por querer, sem malfazer, mostrar o que é.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira