CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Por muitos anos - nem me lembro quantos! - íntima-impulsivamente me punha a ouvir as Canções às crianças mortas, os cinco Kindertotenlieder do Gustav Mahler. Friedrich Rückert (1788-1866), poeta romântico alemão, terá escrito 428 poemas de saudade e dor - pensossinto que bem sofridos - em 1836, quando lhe morreram dois filhos. A sua publicação foi póstuma... Hoje em dia, ninguém sabe quem Rückert foi, e dos seus poemas resta a lembrança das canções em que se converteram, sobretudo os que Mahler pôs em música: cinco Kindertotenlieder e mais cinco outras canções. Mas o compositor não tinha ainda filhos mortos, nem casado estava, quando compôs essas canções às crianças mortas. Há quem pretenda que seria pela morte de seu irmão Ernst, eu antes creio que terá sido por um forte pensarsentir o íntimo dos poemas de Rückert. O que ora te digo, Princesa de mim, é autenticamente muito subjetivo, tem muito a ver com o tal impulso que tantas vezes me levou a pôr a tocar discos de, primeiro, 78, e, mais tarde, 33 rotações...para escutar os Kindertotenlieder! De há uns anos para cá, limitado aos CD´s, alterno entre a versão Bruno Walter/Kathleen Ferrier (1952) e a de Leonard Bernstein/Thomas Hampson (1986), entre dois grandes maestros e uma contralto contra um barítono. Comovo-me sempre, são certamente tocantes os intérpretes, é fortemente cardíaca a música... E, todavia, quando encontrei - nem sei como, nem exatamente quando nem onde - a poesia de Rückert, traduzi um kindertotenlied que nenhum Mahler musicou. Teria 15 ou 16 anos? E porque o fiz então, e guardei essa tradução em letra de adolescente quase a deixar de ser romântico? Não sei. Sei só que a reencontrei agora, perdida na papelada que vou arrumando ou rasgando, em vésperas de retiro definitivo para o campo...
Antes de a transcrever, quero todavia dizer-te que a reli a uma luz diferente, tal como diferentemente me soou o coração dos kindertotenlieder, que hoje novamente escutei. Talvez por ontem ter recebido de um velho amigo, que eu não via há 50 anos, era ele ainda 1º tenente da marinha de guerra e fuzileiro naval - quando, hoje, é padre e frade dominicano - um crucifixo trabalhado por monjas dominicanas contemplativas, em que o Cristo não está de braços esticados e pregados, mas é salvador e abraça um filho pródigo à sua frente ajoelhado. Eis quando, na morte, momento certo ou visão perseguidora, a vida vence. Olho essa cruz de misericórdia, pousada na palma da minha mão e recito, com coração novo, as quadras de Rückert que traduzi (há sessenta anos?):
Du bist ein Shatten am Tage Und in der Nacht ein Licht; Du lebst in meiner Klage Wo ich mein Zelt aufschlage, Da wohnst du bei mir dicht; Du bist mein Schaten am Tage
Wo ich auch nach dir frage, Find dich vor dir Bericht, Du lebst in meiner Klage Und stirbst im Herzen nicht.
Du lebst in meiner Klage |
Sombra és de dia e luz na escuridão; vives na minha agonia não me morres no coração.
Onde for minha a moradia, aí me habitas o coração: és minha sombra de dia minha luz na escuridão.
Quando de ti inquiria, tinha esta revelação: vives na minha agonia não me morres no coração.
És uma sombra de dia uma luz na escuridão; vives na minha agonia não me morres no coração.
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Se a saudade é presença na ausência, se - como tão lindamente cantava Maria Teresa de Noronha - a saudade é como a luz / que o sol já morto deixou: / é presença, embora cruz, / na alma de quem ficou! /, é autenticamente saudoso este poema do alemão Rückert. E, neste crucifixo que descansa na palma da minha mão, em que o Cristo é um pai que se abraça a um filho pródigo, cujo rosto se esconde no peito paterno, vejo e sinto uma imensa saudade, a nossa peregrina saudade de Deus. Não o vemos, muitos de nós nem acreditam que Ele seja possível. Ele é, no nosso dia, uma sombra, adivinhamos apenas o seu rosto nos rostos humanos, à nossa volta. Assim Ele se fez carne e habitou entre nós. E sentimo-lo na nossa noite, é - ou talvez seja - a luz que brilha no escuro coração da nossa saudade.
Sempre penseissenti o cristianismo como vivência minha, nossa, da humanidade de Deus: a paixão de Cristo é o sofrimento de todos nós, ensina-nos que nunca estamos sós, que é de todos a mesma dor de cada um, e a comunhão na esperança que nos ilumina. Somos todos oferta, por Cristo, com Cristo, em Cristo. As mães e os pais que perderam filhos sentiram, como ninguém mais, o peso do absurdo, essa força da gravidade que nos abate por terra e nos quer isolar e fechar. Só o sopro da graça poderá levantá-los do chão. Quiçá como nesse lied, em que o poema de Friedrich Rückert começa assim: Oft denk´ich, sie sind nur ausgegangen!, "Muitas vezes penso que eles apenas saíram!" Dele fez Gustav Mahler o quarto dos seus cinco Kindertotenlieder, cuja melodia tão bem canta uma misteriosa desilusão da dor, esse amanhecer da consolação, o conforto da comunhão dos santos. Traduzo-o agora, prosaicamente: os sentimentos espontâneos são, afinal, muito íntimos, dispensam grandiloquências...
Muitas vezes penso que eles apenas saíram!
Em breve voltarão para casa!
Está um belo dia, não te inquietes,
eles foram só dar um grande passeio...
Pois é, eles apenas saíram,
e vão voltar para casa agora.
Não te inquietes, está lindo o dia!
Eles só foram passear até às colinas.
Eles apenas saíram à nossa frente,
já não quererão voltar para casa!
Vamos ter com eles lá acima, à luz do sol!
Está um dia lindo no alto das colinas!
E como que a pedir, Ele também, perdão, o Pai se debruça e acolhe, em humano abraço, o regresso dos filhos pródigos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira