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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

   Minha Princesa de mim:

 

   Começo esta carta a penitenciar-me: a impagável cena da parelha Tintin-Haddock quebrando bilhas de barro ao nosso Oliveira da Figueira aparece no Coke en Stock, não no Tintin au Pays de l´Or Noir, como, erradamente, na altura lembrei. Peço-te desculpa do deslize de memória e, sobretudo, da minha preguiça em levantar-me do assento onde te escrevia para subir ao 3º piso cá de casa, onde guardo as minhas bandas desenhadas. Creio (lá estou eu outra vez a supor, confiante na minha memória desgastada) que foi Voltaire quem disse que "a mentira é detestável, por ser uma inexatidão". Deixa-me, com esta, o filósofo Arouet na dúvida de saber se será mesmo caso de sine qua non, isto é, se a condição necessária e suficiente da mentira será só a inexatidão. No caso vertente, foi só inexatidão e não mentira, não pretendi induzir-te em erro. Corrigiu-me um amigo, irmão do que, adiante, falo. Lera a carta no blogue do CNC, onde, pelo visto, tu publicas as que te escrevo. Todas?

 

   Feita a devida vénia, passo a falar-te de um livro que comecei a ler e não larguei: The Return of the Prodigal Son, do padre católico holandês Henri Nouwen (1932-1996), de que te falarei mais longamente, uma extraordinária meditação sobre o quadro de Rembrandt van Rijn, conservado no Hermitage, em S. Petersburgo. Foi-me dado pelo frei Eugénio de Paiva Boléo, que conheci oficial de marinha e reencontrei cinquenta anos depois do jantar de despedida que partilhámos na velha cervejaria Portugália, à Almirante Reis, em Julho de 1966, na véspera dele se tornar frade dominicano... 


   Mas deixa-me agora recordar um passo de François Mauriac - de que nunca o meu coração se separou - no seu La Fin de la Nuit, romance de 1935, que persegue o subterrâneo caminho da consciência de Thérèse Desqueyroux, nome da protagonista e título do primeiro que li desse autor católico francês. Ao fim de uma longa e dilacerante noite espiritual, em que Thérèse, que escapou à justiça dos tribunais - mas ficou prisioneira da sua consciência perplexa - pelo adultério cometido e pela tentativa de envenenamento do marido, algo se acende: Sob a camada espessa dos nossos atos, a nossa alma de criança permanece imutável; a alma escapa ao tempo.

 

   Nesse sentido, surpreendemo-nos na intimidade de nós, desse quem com cuja permanência nos identificamos e não queremos que morra. É o fiel da nossa balança, o centro da nossa existência. Chamamos-lhe alma ou anima, porque, sem sabermos o que é - nem ciência alguma a explicou ou sequer descreveu - sentimo-la como o que nos dá vida. Tanto, que, para uns será imortal a alma humana, outros falarão da alma do mundo, princípio único da vida diversa de tudo e todos... Mas ocorreu-me este trecho de Mauriac por nos falar de a nossa alma de criança, como se de essência nossa se tratasse, imutável ao longo da vida, incorruptível debaixo do peso dos nossos feitos. Como segredo onde habita a misericórdia de Deus. Assim, a peregrinação de Henri Nowen pelo Regresso do Filho Pródigo de Rembrandt é, de facto, um caminho de retorno à casa paterna. Mas o livro é tão rico e estimulante de demandas de memórias, intenções e entregas, que se torna difícil, quiçá pretensioso e desinteressante, fazer-lhe uma resenha ou um resumo. Para te dar uma ideia do que quero dizer, pensa só que o itinerário de Henri Nouwen, não é apenas o do filho pródigo, pois que também se descobre no irmão mais velho deste, no tal bem comportado. E no próprio pai, também visto como o próprio Rembrandt, no fim da vida, pobre e quase cego. Lembra-me muito algo que já várias vezes te disse: perdoar é, também e sempre, ser perdoado. A misericórdia de Deus é o regresso do Pai à sua humanidade, a festa por quem retorna é sobretudo a alegria de quem acolhe. Mistério central do cristianismo. Aliás, a Nouwen não escapa o pormenor das mãos do pai que abraça o pródigo: a esquerda é masculina, a direita é mão de mulher, de mãe. Deus é pai e mãe, é a casa onde nascemos - assim o podemos imaginar, e recordo que três dos últimos papas viram bem como tal imagem, servindo o nosso anseio de lar, não belisca o conceito de Deus inefável que, não sendo nem homem nem mulher, é, no seu amor, pai e mãe.

 

   Traduzo-te, hoje, apenas passos do 3º capítulo (The Younger Son´s Return) da parte I do livro (The Younger Son). O que mais me ocorra ficará para outras cartas. Se tiveres uma reprodução do quadro aí à mão, põe-na à tua frente. Ajuda.

 

   O jovem abraçado e abençoado pelo pai é um pobre, muito pobre, homem. Saiu de casa com muito orgulho e dinheiro, decidido a viver a sua própria vida, longe do pai e da sua comunidade. Regressa sem nada: sem dinheiro, sem saúde, sem honra, sem amor próprio, sem reputação... tudo foi desbaratado. Rembrandt não deixa dúvidas sobre a sua condição. Tem a cabeça rapada. Já não tem o cabelo comprido e ondulado que Rembrandt a si mesmo pintara, enquanto altivo, desafiador, filho pródigo num bordel. A cabeça é a de um preso cujo nome foi substituído por um número. Quando o cabelo de um homem é rapado, seja na prisão ou na tropa, num ritual obscuro ou num campo de concentração, ele é despojado de uma das marcas da sua individualidade. As roupas que Rembrandt lhe põe são roupas interiores, que mal lhe cobrem o corpo emagrecido. O pai e o homem alto que observa a cena vestem largos mantos vermelhos, que lhes conferem estatuto e dignidade. O filho ajoelhado não tem manto. O vestido interior, amarelo acastanhado, rasgado, mal lhe cobre o corpo exausto, desgastado, de que toda a força se foi embora. As solas dos pés contam a história de uma longa e humilhante jornada. O pé esquerdo, fora da sandália gasta, está ferido. O direito, só parcialmente calçado por uma sandália rasgada, também fala de sofrimento e miséria. Eis um homem despojado de tudo... menos de uma coisa, a sua espada. O único remanescente sinal de dignidade é a breve espada pendurada à cintura, rótulo da sua nobreza. Mesmo no meio da degradação, ele se agarrou à verdade de ser ainda filho de seu pai. Se assim não fosse teria vendido a valiosa espada, símbolo da sua filiação. A espada está ali para me mostrar que, apesar dele ter voltado falando como mendigo e excluído, não se esqueceu de que ainda era filho de seu pai. Foi essa recordada e apreciada filiação que o persuadiu a vir de volta. E chegamos então ao parágrafo - intitulado Claiming Childhood - que me evocou o trecho de Mauriac:

 

   Fosse o que fosse que ele tivesse perdido, dinheiro, amigos, reputação, amor-próprio, alegria interior e paz - uma dessa coisas ou todas elas - ainda assim ele permanecia o filho de seu pai. E por isso diz para consigo: "Quantos dos assalariados de meu pai têm todo o pão que quiserem e até mais, e eu para aqui a morrer de fome! Vou partir, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o céu e para contigo; já não mereço ser chamado teu filho; trata-me como a um dos teus assalariados!". Com tais palavras no coração, foi capaz de dar a volta, deixar aquele lugar e regressar a casa. O significado do retorno do filho mais novo está sucintamente expresso nas palavras: "Pai, eu já não mereço que me chamem teu filho...". Por um lado, o filho mais novo percebe que perdeu a dignidade da sua filiação, mas ao mesmo tempo esse sentido de dignidade perdida também lhe dá consciência de ser o filho que tinha uma dignidade para perder...

 

   O abraço do pai e do filho junto dele ajoelhado sela o regresso à casa. Vou recolher à casa onde nasci, / por teus dedos, de sombra edificada - verso de David Mourão Ferreira, que Amália canta, e a que voltarei em próxima carta... E disse o papa João Paulo II, em audiência de 8 de Setembro de 1999, falando, precisamente, sobre a parábola do filho pródigo, contada pelo evangelho de S. Lucas, e quiçá lembrado do quadro de Rembrandt, ou ainda do texto de Henri Nouwen, cuja primeira edição foi em 1992, das mãos do pai: As suas mãos sustêm, estreitam, dão vigor e, ao mesmo tempo, confortam, consolam, acariciam. São mãos de pai e de mãe, ao mesmo tempo. Tão poderoso de ternura, tal abraço surge iluminado no centro da pintura. Isaías (49, 15) pergunta, sobre Yahvé que consola o seu povo: Pode uma mulher esquecer o seu pequenino, não ter piedade do filho das suas entranhas?... ou ainda (66,13): Como mãe que consola, também eu vos consolarei! E canta o salmo (131, 2): Tenho a minha alma em paz e silêncio, como menino ao colo de sua mãe; / como menino, assim está a minha alma em mim. Assim possamos nós sentirmo-nos todos na hora do recolhimento, como a Traviatta que pressente a nova luz e Thérèse Desqueiroux que, depois de dizer que espera o fim da vida e lhe perguntarem "quer dizer o fim da noite?", responde:

Oui, mon enfant: la fin de la vie, la fin de la nuit.

 

   

   Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira