Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Vimos, em crónica anterior, o historial e a atividade do Teatro Lethes de Faro. Na sequência, referiremos hoje o Teatro Municipal de Faro, inaugurado em 2005 mas também conhecido por Teatro das Figuras, evocação de uma tradição urbana que vem do século XVIII: aliás, recorde-se que o Teatro Lethes surge em 1843, na adaptação de um edifício monástico que esse, começou a ser construído em 1599.
A expressão “Teatro das Figuras” decorre pois de uma construção de 1740, junto ao Solar da Horta do Ourives, cuja capela data daquele ano. O edifício ou o que dele resta denominava-se A Casa das Figuras pela decoração com figuras híbridas de pessoas e animais, numa alegoria insólita. Na mesma zona da cidade, assinala-se ainda o Solar de Veríssimo de Mendonça Manuel, também classificado.
Mas vejamos A Casa das Figuras. Tânia Pereira descreve “os seres meio humanos e meio animalescos, quase antropomórficos, meio diabos e meio figuras jocosas, típicas do teatro barroco, uma feminina e outra masculina (que) marca no centro da imagem. O ser que encima a empena é um homem ou uma entidade, mas sem pernas. É ele o ser mais humano (…) Os outros são uma mistura de alegoria com zoologia. Entende-se uma ponta de ironia no conjunto que também olha para quem passa”. (in “A Horta do Ourives” - revista “Monumentos”, ed. DGMN, Março 2006, pág. 119).
Este conjunto arquitetónico (Teatro e Casa das Figuras) valoriza e caracteriza a zona central da cidade que para ali se prolongou. Com efeito, a traça setecentista do Solar harmoniza-se com a força arquitetónica e com a modernidade do Teatro, projeto final do arquiteto Gonçalo Byrne, numa implantação em H, alternando fachadas com zonas de janelões e contraste na implantação de paredes revestidas de pedra de tom amarelo, também notáveis na conciliação com a modernidade do conjunto do edifício e da área urbana.
A sala principal comporta 800 espectadores, com um fosso de orquestra para 70 executantes e uma estrutura cénica designadamente no palco, que permite, como tem sucedido ao longo da década, concertos de grande orquestra e ópera.
Esta proximidade e simultaneidade do Lethes e do Teatro Municipal devem ser devidamente realçadas. Tal como tive já ocasião de escrever, “a diferença de dimensões e lotação (do Teatro Municipal) relativamente ao Teatro Lethes, parece marcar uma certa vocação para cada uma destas salas, na medida em que o concerto sinfónico e a ópera, em geral exigem maior espaço e chamam mais público, até porque os espetáculos são em menor número para cada programa. Isto, com as exceções para ambos os lados, que bem se conhecem!” (in “Teatros em Portugal - Espaços e Arquitetura”, ed. Midiatexto, 2008, pág. 98).
O momento é incrível e revela a sublime classe olímpica dos Brownlee Brothers. A descrição fica aquém da cena a todos ofertada pelos campeões do Rio. É o fim da 2016 Triathlon World Series no Mexico. Jonny
lidera a corrida, seguido pelo old brother e um atleta sul africano. A escassos metros da meta o passo cambaleia-lhe com a desidratação. Os assistentes acodem a quem desfalece. Alastair ampara já o irmão, passa-lhe o braço por cima da cabeça, fala-lhe e ajuda-o a passar a linha final. Perde o ouro, mas ganha grata admiração de uma nação face ao spirit of The Team GB. — Chérie! Qui se ressemble s'assemble. A Prime Minister RH Theresa May está em New York para defesa do controlo das fronteiras no UN Summit for Refugees and Migrants. Um relatório do Foreign Affairs Committee censura fortemente RH David Cameron na House of Commons, pela guerra na Syria. — Well! A good deed is not without reward. A CDU de Frau Angela Merkel sofre nova derrota face à Alternative für Deutschland (AfD), agora na urbana Berlin, adensando as nuvens para as eleições federais de September 2017. Monsieur Alain Juppé marca nas primárias gaulesas da direita, com propostas integracionistas sobre o “Islam français.” Na White House Race, Mrs Hillary R Clinton e Mr Donald J Trump divergem entre a vigilância e a securização enquanto a atmosfera do terrorismo regressa a West Side e Manhattan na NYC. GB arrecada 147 medalhas, 64 em ouro, nos 2016 Rio Paralympics. Bavaria acolhe a Oktoberfest. A Countess of Wessex inicia uma corrida filantrópica de 445 milhas em bicicleta, entre os palácios de Holyrood e Buckingham, para recolha de fundos nos Duke of Edinburgh's Awards.
Mild temperature and a few showers within the thrive of Autumn colours at London. A cidade acorda com Parliament Square enlaçando a tragédia dos boat peoples no Mediterraneon Sea, com refugiados a clamarem por “urgente action” no meio de estridentes 2,500 salvavidas e cascata de negras estatísticas continentais. A United Nations estima que diariamente morreram 11 crianças, mulheres e homens a atravessar Europe em 2015. Seis anos após o deflagrar da guerra na Syria, com as fronteiras a erguerem muros e a passarem responsabilidades, a General Assembly suscita novas esperanças quanto a articulada resposta global capaz de melhor gerir a tormenta migratória. No weekend milhares de pessoas marcham por aqui em colorida manifestação de apoio. Ao ver e ouvir os cartazes, cânticos e outros sinais, sobretudo antiracistas, penso que a solução continuará distante enquanto despudoradamente se tentam ganhos alheios à questão, ao invés de avançar com uma abordagem pragmática, organizada, ancorada em estrita perspetiva humanitária ― full stop. No mais, como assinala a teoria walzeriana da justiça, "the good fences make the just societies". Os migrantes equivalem à população nestas ilhas. O voluntarismo de uns, a indiferença de muitos e o egoísmo de outros é que não vem ajudando quantos buscam melhor vida e para isso a arriscam. À partida para New York, Downing St deixa escapar tópicos do discurso primoministerial na UN. Mrs May apresentará “a three-point strategy to tackle the migrant crisis” com compassionate alert do sentido do tráfego: “the problem must be addressed to ensure public confidence in the economic benefits of legal and controlled migration."
No plano doméstico também o movimento ganha a cadência gravitacional da natureza das coisas. As oposições continuam a arrumar a casa em vésperas da outonal série de conferências partidárias. A disputa das lideranças apresenta os primeiros resultados. RH Diane James MEP conquista a chefia do (alegadamente misógino) Ukip. RH Nigel Farage cede o leme; e consigo desce o apelo populista aos blue collar do North e aos social conservatives do South. O desafio dos soberanistas é agora diluir a presente perceção de que terão esgotado o futuro com a vitória no euroreferendo, indo além do tradicional papel de guardiões de uma hard Brexit e assumirem-se como força eleitoral capaz de finalmente franquear a entrada em Westminster. O terreno está aberto, aliás, quer pelo colapso de LibDems e de Labourites, quer ainda pelas divisões latentes no new regime dos Tories. Ora, se os Liberal Democrats sob RH Tim Farron pegam sozinhos na bandeira azul da EU e podem capitalizar no voto eurófilo à esquerda e à direita, desde que credíveis, há que esperar pelo próximo Saturday para confirmar a vitória vermelha do RH Jeremy Corbyn no Labour Party. Será o desfecho de três meses de azeda batalha campal entre moderados, agnósticos e esquerdistas. As feridas são mais que muitas. Até a alusão ao imperativo de unir o partido suscita controvérsia, pelo hate against the Blairites. O honorável Comrade Jez quer entregar mais poder aos militantes. Segundo ele, democratiza a decisão; segundo os rebeldes, esvazia o Parliamentary Lab Party.
Já o Institut Montaigne debate "Great Britain, Europe and the world after Brexit" em Paris (Fr). Durante uma animada sessão presidida por Madame Dominique Moïsi, com a participação nativa de Mr Robin Niblett, director da Chatham House, e Mr Nick Butler, professor no King’s College, afloram contrastadas perspetivas sobre o futuro nas relações internacionais. Resultam quatro interessantes cenários em encontro onde também pontua o Churchillian dream em torno do concerto no velho continente: "(1) The UK will pursue its development on its own, while the EU will do the same on its side; (2) Brexit will in reality never come about because of its complexity and because of the administrative burden; (3) The EU will adopt radical changes by breaking austerity, by becoming more independent from the German leadership, and by renouncing to the membership; and, (4) The EU will change by integrating to the core with a truly efficient common parliament, a common defence policy and a more protectionist economic policy." Dos riscos comummente identificados está o efeito de potencial erosão na(s) parceria(s) transatlântica(s).
Que o oceano não está para marujos de água doce, é fácil observar. O ano de 2016 e a Brexiting inauguram uma sísmica mudança na paisagem política ocidental. Pesemos só os eventos maiores na agenda do triénio. Além das presidenciais nos USA e da incerteza quanto a quem será o próximo residente no Oval Office, haverá eleições gerais em France e em Germany a par do referendo constitucional italiano. Qualquer um dos unknows neste quadrilátero tende a trazer diferentes políticos e/ou políticas, para mais quanto as
vagas populares se inquietam nas equações nacionais. Se a geografia de cada qual é inescapável no mapa dos interesses, preocupante é a impreparação de desatentas casas das máquinas governamentais para gerir estrategicamente as oportunidades e os desafios que se esboçam no horizonte. Quem siga o debate pelos media ocidentais espantar-se-á até com a insustentável leveza do business as usual com que o Bratislava Summit aborda a nova situação na European Union. — Well! Remember Master Will and how the noble Mark Antony provides for the ambition, honour and friendship in Julius Caesar: — Friends, Romans, countrymen, lend me your ears: I come to bury Caesar, not to praise him.
St James, 19th September 2016 Very sincerely yours, V.
PS: Parabéns a Dame Maggie Smith (Downton Abbey) e Mrs Susanne Bier (The Night Manager) pelos triunfos nos 2016 Emmys, em nova noite de Game of Thrones.
Os «Opúsculos» de Alexandre Herculano são um conjunto fundamental para a compreensão da obra do nosso grande historiador. Infelizmente, há muito se encontram esgotados, e a reedição iniciada por Joel Serrão não foi completada. Eis o que não pode ser esquecido.
HERCULANO, CIDADÃO COMPROMETIDO
Num tempo em que o jornal oficial não era exatamente o que é hoje, um repositório de atos legislativos ou de decisões políticas de órgãos de soberania, Alexandre Herculano foi redator do «Diário do Governo», antes da campanha de «O Panorama», publicando aí textos importantes que nos dão conta de um pensamento político, que, no essencial, conhecemos, mas que, estampado na folha oficial, ganha um especial significado. Entre janeiro e maio de 1838, o historiador exerceu tais funções, não assinando as suas prosas, mas não deixando dúvidas sobre as suas ideias, o seu empenhamento e a sua perspetiva. Para alguns, poderá parecer surpreendente que o autor de «A Voz do Profeta», libelo contra a Revolução de Setembro de 1836, apareça como porta-voz da solução política resultante, na prática, daquele movimento político. Importa, no entanto, referir que o historiador considerou serem a legitimidade da Assembleia Constituinte que aprovou a Constituição de 1838 e o compromisso a esta subjacente fatores decisivos para a afirmação da causa liberal. Ao contrário do que esperava, não prevaleceu uma lógica extrema, mas uma solução equilibrada. Assim, na introdução de 1867 a «A Voz do Profeta», Herculano afirmou a sua coerência, saudando a nova Constituição e reconhecendo o seu elevado merecimento: «Vencido na guerra civil, desautorizado e moralmente enfraquecido, o cartismo viu triunfar em grande parte as suas ideias na contextura da Constituição de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos estavam representados por insignificante minoria. Era a condenação solene da revolução, lavrada por um parlamento eleito debaixo da influência dela. O que no novo código político parecia mais oposto à índole da Carta era a organização da segunda câmara, e todavia o cartismo adquiria por aquele meio uma arma poderosa para de futuro reformar constitucionalmente o que havia de mau na recente organização de um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo pariato hereditário e ilimitado, nem a assembleia conservadora significasse apenas a interposição de uma parede entre duas porções de parlamento único». Uma figura ética como Herculano não deixava por mãos alheias a justificação inequívoca da sua posição política. Aliás, até à Regeneração (1851) será ele um dos mais fervorosos combatentes no sentido de conseguir o que foi alcançado no Ato Adicional de 1852, ou seja, a sábia síntese entre a velha legitimidade vinda da causa liberal de D. Pedro e a vontade constituinte de 1838. Só assim a Carta se tornou o texto constitucional mais duradouro da história portuguesa – e o rotativismo (ideado em parte muito significativa por Herculano) permitiu a estabilização política necessária.
O PRIMADO DA CONSTITUIÇÃO
Ao relermos os textos do historiador no «Diário do Governo», salta à vista a série «no signo da Constituição de 1838». Aí lemos uma série de alertas, a propósito das tentações radicais, que nos permitem dizer que se tivessem sido ouvidos não teria sido aberto o caminho persistente e longo para o golpe de Estado de 1842 de Costa Cabral, que restaurou a Carta na sua versão retrógrada, gerando um clima de guerra civil e atrasando a consolidação das instituições liberais. Vejamos os textos de 17 de março e de 4 de abril de 1838. O primeiro, refere-se aos «extremos que se tocam»… «Quando um povo sobe na religião, a qual está num meio, como todas as coisas boas, até a um extremo, qual é o fanatismo, torna-se feroz, perseguidor, intolerante, irracional; quando na religião desce até ao outro extremo, que é a incredulidade, aparece igualmente feroz, perseguidor, intolerante, irracional. No primeiro caso, queima os livros dos filósofos, e os filósofos; proscreve as artes e os prazeres; treme de tudo quanto à natureza pertence, até do seu próprio nome. No segundo caso extermina os homens do espírito e os livros da fé, desterra um sistema completo de recreios morais e populares, com que muitas idades se houveram por contentes e ricas; derriba todos os monumentos do passado, onde estampasse algum caráter religioso; assusta-se de tudo que lhe possa lembrar Deus ou Alma. Lá devasta-se em nome do espírito, cá devasta-se em nome da matéria: lá o archote, o picão e o açoute de ferro andavam na mão do sacerdote, cá andam na mão do filósofo: o sacerdote é o filósofo dos fanáticos; o ateu é o sacerdote dos incrédulos»… O texto continua no campo da política, já que era o radicalismo cego que preocupava Herculano, certo de que assim aconteceria, como aconteceu, o fortalecimento das opções que iria destruir a legitimidade constitucional tão sabiamente delineada. A passagem ilustra bem o caráter dos textos de opinião do «Diário do Governo» desse período.
A LITERATURA E A ÉTICA
No caso de Alexandre Herculano, verifica-se sempre a grande qualidade literária e ética de quem escreve. Já relativamente ao segundo texto, de abril, o historiador exprime, com os argumentos que invocará no texto já referido de 1867 na reedição de «A Voz do Profeta» o motivo pelo qual, apesar de não ter aderido à Revolução de 1836, assume a defesa da Constituição aprovada pelos constituintes, uma vez que se baseia na legitimidade cidadã e popular que defende: «o que queremos é não ser servos: queremos respeito à nossa propriedade, liberdade em tudo aquilo que a lei nos não proíbe; queremos paz e pão. A soberania de ninguém é direito, porque é um facto nascido da mesmíssima natureza dos corpos sociais: exerça-se do modo que por experiência e boa razão se achar mais conveniente; livremo-nos do despotismo de um indivíduo e do ainda mais tremendo despotismo da ralé, e demos documento à Europa de que somos dignos da liberdade. Esperamos achar conformes com a nossa opinião todos os homens sisudos de Portugal». Do que se tratava era de, com argumentos serenos e racionais, defender a solução moderada e compromissória de 1838 – de modo que houvesse um governo representativo das diversas famílias políticas. Além das considerações emblemáticas referidas, encontramos entre os textos da autoria de Herculano no «Diário do Governo», e a título exemplificativo, os seguintes temas: a Emigração para o Brasil, os Asilos de Infância, a instituição dos jurados na administração da justiça, a condenação inequívoca da pena de morte («bastaria atender aos verdadeiros princípios em que assenta a ordem social para conhecer que a pena de morte é um absurdo»)… Com grande independência política e com uma determinação no sentido da salvaguarda das instituições constitucionais, Herculano é, neste período muito fugaz, um redator probo, defensor da autonomia individual e da causa liberal, sempre sem perder o sentido crítico. Um dos maiores vultos da cultura e da língua portuguesas esteve assim ligado ao jornal oficial – emprestando a sua inteligência e a sua escrita à defesa da causa do constitucionalismo liberal. Poucos o ouviram imediatamente. Mais tarde, em 1851, pareceu ser-lhe dada atenção, mas foi tudo demasiado rápido…
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Terminava eu a minha última carta, citando-te o rabino Yeshaia Dalsace e o véu que protegia Moisés, iluminado pela revelação divina, dos olhos do povo.
Ocorreram-me, na altura, várias representações de Maomé na iconografia islâmica, em todas o Profeta não tendo feições, sendo a sua face uma mancha branca ou um véu. Recorri então a Bruno Nassir Aboudrar, professor de estética na Universidade de Paris 3 (Sorbonne Nouvelle), autor de Comment le voile est devenu musulman (Paris, Flammarion, 2014) que, depois de recordar que o carácter religioso do véu tem a sua origem na epístola paulina que então te referi - e só mais tarde se torna também islâmico - afirma que o véu serve para subtrair as mulheres ao visível, porque são sagradas. Antes de avançar para os prometidos testemunhos de mulheres, cristãs e muçulmanas, sobre o véu, o seu porte e o seu significado, creio ser importante deixar-te, Princesa, uma nota sobre a figura de Maria (Maryam), Mãe de Jesus, no Corão. Na verdade, ela é a única mulher designada pelo seu nome no livro sagrado do islão. Onze vezes só por ela, mais vinte e três associada a Jesus (Issa). Curiosamente, enquanto, nos evangelhos, Maria é referida como Mãe de Jesus, no Corão diz-se Issa, filho de Maria. Diferença subtil.
O lugar de Maria na devoção, sobretudo católica, - perdoa-me, Princesa, a ousadia da opinião - tenho-o como sinal de contradição, como Jesus diz de si, e como o Evangelho é. No caso da Mãe de Deus, no culto católico, a humildade da serva que diz sim à vontade do seu Senhor eleva-a acima de todos os outros seres humanos, Maria torna-se apocalíptica, isto é, reveladora, é aquela que submete a serpente do mal e cuja cabeça surge coroada de estrelas. Sabes bem como penso que a Igreja continua a sofrer - e muito - de misoginia, sendo o culto mariano uma reação, sobretudo popular, à situação canónica das mulheres na Igreja (e no pensamento da "autoridade eclesiástica"). No fundo, é uma subversão, sinal da contradição que é a Boa Nova, tal como o Magnificat a canta. Se refletirmos um pouco nisto, quiçá entendamos melhor, também, a convicção das nossas religiosas professas e muitos dos protestos e aspirações de mulheres muçulmanas. Aqui, tem presente, Princesa, a imagem de Benazir Bhutto, eleita por dezenas de milhões de muçulmanos primeira ministra do Paquistão, que governou com a cabeça coberta pelo véu da praxe. Ou Teresa de Calcutá que, pequenina, curvada, forte e de véu coberta, inventou uma santidade. Passo agora ao primeiro testemunho, este de Zarah Ali, muçulmana francesa de origem magrebina, autora de Féminismes Islamiques (Paris, La Fabrique, 2012): As feministas muçulmanas propõem uma libertação que implica uma relação diferente com o corpo e a sexualidade: uma relação marcada por normas e uma sacralização do íntimo, e por uma defesa do enquadramento familiar heterossexual... o que, trocado por miúdos, quer dizer "reler o Corão, de modo a reabilitar os direitos das mulheres, e usar o véu como estandarte contra o racismo e o sexismo da hegemonia ocidental." Preconiza-se assim a ijtihad, ou interpretação pessoal do Livro, para um aggiornamento. Tal tendência verifica-se entre as mulheres iranianas que, em 2014, despiram-se do véu em sinal de protesto perante as autoridades político-religiosas. Mas já a feminista persa, escritora e socióloga, Chalah Chafiq, insiste na separação entre feminismo e religião: O feminismo é um conceito universal. Associar feminismo e islão significa prender as mulheres à ideia de que o seu futuro se encontra na religião... Num contexto de repressão totalitária e religiosa, a estratégia do feminismo muçulmano pode permitir um passo em frente em direção aos direitos das mulheres. Mas o acesso a uma cidadania livre e autónoma não pode ser articulada ao religioso... E outra iraniana, Shirin Ebadi, prémio Nobel da paz em 2003, sublinha: Os direitos humanos constituem um só e único conceito, não podem diferenciar-se entre islâmicos e não-islâmicos. Aceitar tal distinção em nome do relativismo cultural significaria aniquilá-los. Parece-me, Princesa de mim, que esta chamada de atenção é mais abrangente ainda, na medida em que nos lembra que qualquer direito humano não é circunstanciável, isto é, reconhece-se de per se, não pode ser atribuído de modo discriminatório, é universal. No caso em análise, tal significa que a cada mulher, enquanto ser humano sujeito de direitos, cabe decidir se usa ou não usa véu.
Mulher bonita, simpática e serena - talvez o Eça dissesse "De apetite, menino!" - médica e feminista, a marroquina Asma Lamrabet, de véu na cabeça, luta por fundamentar, na própria tradição corânica, um entendimento feminino da sua revelação: Sou crente, mas não gosto muito do dogmatismo, nem desse jeito islâmico de nos dizerem o que é lícito ou ilícito. Em minha opinião, a perceção dos textos é diferente, segundo se é homem ou mulher... ... os textos nem de longe são misóginos, a sua interpretação é que o tem sido... ... O processo foi exatamente o mesmo nas outras religiões monoteístas. Veja-se o exemplo de Jesus, tão próximo das mulheres, e olhe-se para a Igreja católica de hoje, onde elas praticamente não existem... Feministas judias e cristãs fazem também esse trabalho de releitura dos textos sagrados. A ideia de obediência da mulher ao marido encontra-se em todas as tradições abraâmicas... ... Marrocos, onde vivo, é, com a Tunísia, um dos poucos países muçulmanos que reformaram o código da família. Passou-se da obediência da mulher ao marido - herança do Código de Napoleão - para a corresponsabilidade dos dois cônjuges... ... Todavia, temos de reconhecer que a realidade não tem seguido. Se as leis são importantes, é também preciso mudar as mentalidades pela educação.
Vou ser muito clara. Desde os anos 1950, a ideologia patriarcal muçulmana focalizou-se sobre a questão do véu, do hijab, reduzindo as muçulmanas a corpos e véus. Lamento dizê-lo, mas o véu não é um pilar do islão. O Corão tem mais de 6250 versículos que falam de liberdade e igualdade, de dignidade, de sabedoria, de razão e de justiça. Só um trata do véu, e há quem queira crer que é uma obrigação. É aflitivo! Dito isto, tanto critico a tendência que quer impor o porte do véu como a que quer impor a sua interdição a quem o quiser usar. Porque, neste último caso, as mulheres são apertadas entre a vontade de se inscreverem numa prática religiosa, e o seu desejo de se expandirem no seio duma sociedade que as exclui. O véu deve continuar a ser uma liberdade. Quanto a mim, ponho-o quando me apetece, porque se trata do meu corpo e do meu modo de ser. Reveste-se, aos meus olhos, de uma significação espiritual, e não tenho de prestar contas seja a quem for, exceto Deus.
Aqui chegado, ia já transmitir-te, Princesa, outros testemunhos, mas eis que recebo uma carta de querida amiga, a falar-me da crítica feita por Fatiha Douadi a Edwy Plenel, jornalista francês, nascido na Martinica, crescido na Argélia, tornado famoso, sobretudo, pelo seu trabalho, entre 1980 e 2005, para Le Monde, hoje governando o seu jornal on line chamado Mediapart. A conhecida e ativa jurista marroquina, militante de direitos humanos e feminista activa, escreve, em 19 de Agosto p.p., em resposta a um artigo de Plenel no Mediapart - que defende a liberdade das mulheres muçulmanas poderem vestir burkini, que não é nem mais nem menos fato do que qualquer outro: Ao ouvir-vos perorar sobre a liberdade vestimentar das mulheres muçulmanas, confortavelmente instalado numa democracia centenária cuja instituições estão solidamente ancoradas e onde as liberdades individuais são sacralizadas, põem-se-me os cabelos em pé, na cabeça sem véu, e invade-me a cólera. Quando, Senhor Plenel, compara o burkini à sotaina, falando da sacrossanta liberdade individual, esquece-se de uma coisa importante: a sotaina é um hábito vestido por pessoas que fazem da religião uma profissão, as quais, bem entendido, não devem ser, de modo algum, discriminadas, mesmo havendo separação da Igreja e do Estado. Pelo contrário, o burkini não é uma vestimenta profissional, mas uma sequência lógica do véu e da burka. É um casulo sofisticado onde se encerram mulheres nas praias, que deviam ser lugares de vilegiatura e lazer. Com tal vestuário, o corpo das mulheres é entravado, a fim de, ao que parece, não se descontrolar a libido masculina. Talvez o senhor não saiba que, nesses países muçulmanos, as nossas mães vestiam, nos anos 60, fatos de banho na praia, para os seus corpos gozarem livremente do sol. Hoje em dia, muitas mulheres evitam levar o fato de banho para a praia, com medo de serem agredidas por loucos da religião que, de facto, não passam de tarados sexuais.
Estamos, Princesa de mim, perante um bom exemplo de quanto é difícil e delicado transpor valores e inculturá-los, ou conciliá-los com circunstâncias diferentes. Douadi e Plenel, ambos são defensores acérrimos da dignidade humana ou, se preferires, desses valores cristãos, que a Igreja clerical, vezes demais, tentou escamotear, mas que integraram o sentimento popular e foram laicizados pela Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Mas o respetivo reconhecimento e prática opera-se, necessariamente, em meios ou circunstâncias que podem ser muito diferentes. Neste caso, parece-me, temos de dizer ao laicismo francês que as muçulmanas é que têm o direito e o dever de decidirem como se vestem (desde que esse exercício da liberdade não viole ou coarte a dos outros e sua segurança), tal como deve ser dito aos "fundamentalistas" islâmicos a mesmíssima coisa, só que de outro modo, com o objetivo de defender essa liberdade noutra circunstância. Eis o que respondi à minha amiga:
Fatiha Douadi, jurista, é militante política, ao jeito contestatário francês. Não sendo apreciador do estilo (sinto sempre uma ligeira irritação quando me surge gente que gosta de agitar pelo gosto de discordar, tal como refilões que sofrem excessivamente de tentações totalitárias), posso todavia entender que uma marroquina - como, aliás, qualquer outra mulher natural de um país muçulmano - possa incomodar-se e sublevar-se contra o machismo reinante ou em alta no seu país e em meios religiosos islâmicos. Está no seu direito, e até me parece ser justa a sua ira. Nesse sentido, tem certamente o direito de atacar o burkini.
Por outro lado, penso que a questão que se levanta em França não é, propriamente, o burkini em si, o qual pode - quiçá deva - ser contestado, ridicularizado, o que se entenda ou queira. Mas, e este mas é importante, o Estado laico não tem o menor direito de o proibir, muito menos da forma como o faz, invocando as "razões" que apresenta. Aí, está, facciosamente, a ofender um direito pessoal, isto é, o burkini - como, aliás, qualquer hábito religioso - é um fato como qualquer outro, da livre escolha de quem o veste.
Não confundamos as coisas: do mesmo modo que condeno a intervenção política e policial em matéria de burkini, também defendo o direito de Fatiha Douadi, ou qualquer pessoa, opinar e criticar o mesmo vestido. E até compreendo que só a vista dele possa incomodar - e muito - uma mulher muçulmana culta e emancipada.
Indo agora ao artigo de Plenel, publicado a 14 de agosto no Mediapart, e cuja leitura integral aconselho: que diz ele?
Na praia, cada um de nós pode pensar o que quiser das posturas escolhidas pelos outros veraneantes (segundo as suas culturas, convicções, religiões, etc.), mas ninguém tem o direito de impor autoritariamente aos outros a sua escolha, à maneira de uniforme obrigatório. Assim, tal como me oporia com todas as forças a um poder que obrigasse as mulheres a cobrirem os corpos no espaço público, também me oponho hoje a que se lhes proíba nas praias uma veste que as cobre, só porque pode estar relacionada com uma religião. Em ambos os casos, cedemos as nossas liberdades individuais, em proveito de uma lógica autoritária e discriminatória que, no primeiro caso, visa as mulheres, continuando a fazer delas uma minoria política oprimida e, no segundo, visa as muçulmanas, tornando-as numa minoria a excluir... ...Será preciso recordar aos nossos intolerantes de hoje que, em 1905, aquando da votação da lei de separação das igrejas e do Estado, certos republicanos conservadores quiseram proibir o porte da sotaina no espaço público? E que, evidentemente, Aristide Briand (que tomara a iniciativa legislativa, com firme apoio de Jean Jaurès) a isso se opôs, em nome da liberdade de cada um proclamar as suas opiniões (e, portanto as suas crenças), tendo então recebido o apoio de todos os republicanos progressistas?... ...Os adeptos da interdição do "hábito eclesiástico" (como outros, hoje, querem proibir o "hábito islâmico") afirmavam tratar-se de um hábito de submissão, e que era dever do Estado republicano emancipar, pela lei (ou seja, pela força...da lei), os padres... da sotaina!...
Aristide Briand, Princesa, acrescentaria que a sotaina se tornará, a partir do dia seguinte à separação, uma vestimenta como qualquer outra, acessível a todos os cidadãos, sejam padres ou não. E diria ainda que se os homens, fossem quem fossem, quisessem ir para a praia de sotaina e, em tal preparo, tomarem banho, teriam esse direito...
Vai longa a carta. Deixo para a próxima outros testemunhos, femininos e pacíficos.
Situado em Lisboa, na zona de Belém junto ao Rio Tejo, o Mosteiro de Santa Maria de Belém (1500-1551) foi fundado no lugar de uma velha ermida da Ordem de Cristo. Em 1495, D. Manuel I fez um requerimento à Santa Sé para aí construir um eremitério de frades da Ordem de São Jerónimo. Em 1496, a autorização foi concedida e em 1501/02 inicia-se a edificação do novo mosteiro. Os monges da Ordem de S. Jerónimo teriam assim como funções, entre outras, rezar pela alma do rei e prestar assistência espiritual aos mareantes e navegadores, que partiam da praia do Restelo.
A construção do mosteiro é posterior à descoberta do caminho marítimo para a Índia e assim a obra foi financiada em grande parte pelos lucros do comércio de especiarias com a África e o Oriente.
Em 1518, D. Manuel I decidiu que a igreja iria servir para panteão real. O mosteiro integra então não só, os túmulos dos reis D. Manuel I e sua mulher D. Maria, como também D. João III e sua mulher D. Catarina; D. Sebastião e D. Henrique – integrando posteriormente os de Vasco da Gama, Luís Vaz de Camões, Alexandre Herculano e Fernando Pessoa.
Ao francês, Diogo de Boitaca (encarregado da obra de 1502 a 1516/17) deve-se o traçado do plano original do mosteiro e da igreja. Na verdade, o desenho inicial do conjunto evidencia a experiência de Boitaca na construção do Mosteiro de Jesus de Setúbal (1490), cuja igreja constitui, a uma escala menor, a primeira igreja-salão portuguesa.
Em 1516, foi atribuída a coordenação geral da obra ao mestre biscainho João de Castilho (1490-1581). A Castilho coube, desde então, a resolução de problemas estruturais e a introdução de uma nova ornamentação arquitetónica, distinta da primeira campanha de obras coordenada por Boitaca. A mudança de gosto que Castilho inicia, traz ao monumento uma ornamentação ao estilo plateresco espanhol. João de Castilho resolveu com mestria a cobertura das naves e do cruzeiro, determinou o desenho dos pilares e o portal sul, finalizou o claustro, a sacristia e a fachada.
O Mosteiro é constituído pela igreja, claustro e dependências anexas (que incluem o refeitório, a sala do capítulo, a sacristia, os confessionários, o coro-alto e a livraria).
A igreja é dividida em três naves. A abóbada polinervada da igreja é única e está assente em seis pilares de base circular. A distinção entre as naves está diluída e assim é permitida a perceção de um espaço contínuo e único até à capela-mor. O arco relativo à nave central é de volta perfeita e os arcos relativos às naves laterais são quebrados. De facto, as coberturas experimentam soluções inovadoras para a época – vencem vãos muito amplos através de um sistema de nervuras (mais finas que o habitual) que se estabelece através de desdobramentos secundários. O plano de Diogo de Boitaca intersecciona as três naves com um grande cruzeiro (elemento que distingue os Jerónimos do Mosteiro de Jesus de Setúbal) e inclui em cada extremo do cruzeiro capelas, que constituem uma novidade tipológica assinalável.
O desenho da abóbada unifica o espaço, fazendo-se somente a distinção entre a nave tripartida e o cruzeiro. A abóbada do cruzeiro é uma das mais notáveis obras de arquitetura de tecnologia gótica em toda a Europa. É notável pelo vão vencido e pelo trabalho estrutural de disposição das nervuras e fechos. O vão vencido sem qualquer suporte apresenta cerca de 29 metros de comprimento (no sentido sul-norte), 20 metros de largura (no sentido este-oeste) e cerca de 25 metros de altura.
A capela-mor segundo o plano original projetada por Diogo de Boitaca foi demolida apenas cinquenta anos após a construção da igreja, e era muito semelhante, em desenho e escala, à construída em Setúbal. A capela-mor, que hoje se conhece, foi mandada construir posteriormente por D. Catarina, mulher de D. João III, em 1571. Foi traçada pelo mestre Jerónimo de Ruão, aí introduzindo a arte maneirista. Nas arcadas laterais localizam-se os túmulos de D. Manuel I e de D. Maria e os túmulos de D. João III e D. Catarina.
O Portal Sul da igreja, construído entre 1516 e 1518, é uma das composições mais ricas de arquitetura portuguesa do gótico tardio e a sua execução ficou a dever-se a João de Castilho (o desenho é de Diogo de Boitaca). Em muito semelhante ao Mosteiro de Setúbal a localização lateral do portal monumental a sul constitui o centro visual da fachada do mosteiro paralela ao rio. Ao centro encontra-se a Virgem dos Reis Magos com o Menino, rodeada por estátuas que representam profetas, apóstolos, doutores da igreja e santas. Nos tímpanos figuram duas cenas da vida de S. Jerónimo. Entre as portas geminadas uma estátua representa o Infante D. Henrique. O arcanjo São Miguel, o ‘anjo custódio’ do reino, encima o portal.
O portal poente é menos grandioso, mas constitui a entrada principal da igreja e do mosteiro. Foi projetado por Diogo de Boitaca e executado pelo mestre escultor francês Nicolau Chanterenne, em 1517. Os três nichos que encimam o portal incluem cenas do nascimento de Cristo. De cada lado do portal estão as estátuas orantes dos reis fundadores: do lado esquerdo D. Manuel I e S. Jerónimo, do lado direito, D. Maria e S. João Baptista.
Por sua vez, a construção do claustro iniciou-se em 1503 e prolongou-se até 1551, correspondendo a três campanhas sucessivas de obras – Diogo de Boitaca iniciou os trabalhos, João de Castilho sucedeu-lhe a partir de 1517 e foi concluído por Diogo de Torralva, entre 1540 e 1541. O seu programa decorativo revela as intenções simbólicas que D. Manuel I queria associadas a este monumento. Apesar da sucessão de trabalhos, o claustro revela uma harmonia, conseguida pela delicadeza da intervenção dos diversos mestres, pela utilização de um material único (a pedra de lioz) e pela eficácia na aplicação integrada de princípios que vão desde o gótico tardio ao Alto Renascimento. O claustro apresenta uma tipologia pouco conhecida entre nós. Tem dois andares abobadados, uma planta quadrada com os cantos chanfrados que formam assim um octógono. A carga decorativa é densa de significado. Num discurso único, a ornamentação combina uma proclamação épica portuguesa e a celebração do casal régio, D. Manuel e D. Maria (através da utilização da Cruz da Ordem Militar de Cristo, da esfera armilar e do escudo régio) com a narrativa bíblica da Paixão de Cristo e o uso de elementos naturalistas, vegetalistas, da arte da navegação e animais exóticos.
A heráldica e a religião aqui se fundem, transformando o Mosteiro dos Jerónimos numa obra de propaganda régia e de glorificação de um reino.
Em 1833, o Estado secularizou o mosteiro e entregou-o à Real Casa Pia de Lisboa. Entre 1867 e 1878, os cenógrafos italianos do teatro de S. Carlos, Rambois e Cinatti, reformularam profundamente o anexo e a fachada de igreja, dando ao monumento o aspeto que hoje se conhece. O Museu da Marinha e o Planetário Calouste Gulbenkian instalaram-se em 1962 nos edifícios anexos ao mosteiro. Em 1907, o Mosteiro dos Jerónimos foi elevado a monumento nacional e desde 1983, integra (com a Torre de Belém) a lista do Património da Humanidade definida pela UNESCO.
Ana Ruepp
PEREIRA, Paulo, ’Arte Portuguesa. História Essencial‘, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2011
CAMBOTAS, Manuela Cernadas, MEIRELES, Fernanda, PINTO, Ana Lídia, ‘Arte Portuguesa’, Porto Editora, Porto, 2006.
Falei-te há tempos das análises de etnólogos às funções várias do vestuário. Na verdade, para além das suas funções de proteção do corpo humano contra o frio e o calor, a neve, a chuva, o sol, o excesso de humidade e o próprio meio líquido ou a secura extrema do ar, os bichos sorrateiros e perigosos, a vegetação daninha, o vestuário também se - e nos - adapta às várias condições laborais, desde a apicultura à construção civil, do trabalho de metais e do vidro ou cerâmica às exigências higiénicas da enfermagem e da cirurgia, das diferentes práticas desportivas às de segurança policial ou defesa militar. Etc., etc. Temos fatos para tudo. Mas não se ficam pela sua utilidade, por este seu lado prático. Desde tempos imemoráveis que foram ganhando arranjos e adornos, desenhos e cores, ao ponto de a chamada "moda", na sua continuada inovação estilística e material, se ter tornado numa indústria muito lucrativa. Chegamos mesmo a privilegiar a função estética do vestuário. Finalmente, abrangendo estas duas - a prática e a estética - mas levando-as para o terreno mais movediço e complexo da linguagem, da significação, da comunicação humana, tem o vestuário uma função semiótica, bem mais extensa do que a simples identificação de funções sociais ou exercícios públicos - esta sendo, hoje, aliás, uma espécie de sinalética mais ou menos adaptada ou conhecida internacionalmente. A semiótica de que falo pode exercer-se com clareza num contexto cultural definido, em que a densidade do entendimento social, o rigor das tradições e o consenso dos sinais, sejam fatores do que antropólogos chamam, em inglês, high context communication, e dispensem esclarecimentos adicionais e mais explicações. Todavia, tal pacífica clareza de entendimento já não se verificará quando as mensagens ou sinais atingem outra gente, culturas diferentes.
Quando conversámos sobre tudo isto, Princesa de mim, lembro-me de te ter dado exemplos de vestuário feminino que, para qualquer estranho, poderão parecer apenas mais ou menos a gosto, ou bonitos, ou práticos, muito embora eles carreguem importantes significados, para os membros das comunidades em que se usam. É o caso do kimono japonês, cujo decote, comprimento e abertura das mangas, laço dado ao obi, ou faixa da cintura, apresentam variações subtis que, a uma pessoa daquela cultura, dão informações sobre o estatuto de casada, solteira ou cortesã das portadoras, tal como os padrões e cores dos tecidos poderão dizer-nos a sua idade aproximada ou a sua viuvez. Não penses que se trata aqui de uma "orientalice" ou qualquer exceção exótica. Porque, mutatis mutandis, tal função semiótica surge nas culturas e sociedades europeias, da Roménia à Suécia: aqui, por exemplo, em Runö, até se identificaram oito padrões progressivamente diferentes de lenços de cabeça, do negro escuro e total aos mais claros e desenhados, usados pelas viúvas de acordo com o respetivo tempo de viuvez. E em muitas outras regiões da Europa descobrimos do mesmo, basta puxarmos pelas nossas próprias recordações.
No muito documentado ensaio de Yvonne Deslandres e Monique de Fontanès sobre a Histoire des modes de la coiffure (in Histoire des Moeurs, Encyclopédie de la Pléiade, Gallimard, Paris, 1990), encontrei uma notícia que não resisto a traduzir-te: A África tradicional oferece uma grande variedade de maneiras, que são outros tantos sinais de reconhecimento entre etnias ou entre grupos. No Mali, no Senegal ou na Costa do Marfim, as mulheres casadas trazem sempre um lenço atado na cabeça, que indica, quer a elegância, quer a sageza e a fortuna. Todos os estádios da vida de uma mulher são reconhecíveis e notados imediatamente pelos membros da mesma comunidade. Pode ler-se que a mulher nunca se divorciou, que é a primeira ou segunda esposa, que deu à luz há menos de quarenta dias, que é viúva, que é recém casada e vai para uma festa, que esteve muito tempo sem ter filhos, ou que teve dificuldades em não perder o seu, o que se explica pelos riscos de mortalidade infantil, receio das jovens mães [...] Compreendemos qual pode ser a complexidade do toucado perante a complexidade das situações que ele tem de exprimir. Tais usos são bastante universais. O estatuto da mulher é marcado pela sua cabeça, seja pelo próprio arranjo do seu cabelo, seja pelo chapéu que a cobre. Na Índia, por exemplo, jovens e velhas penteiam-se com o cabelo separado ao meio por uma risca e enlaçados por um carrapito na nuca e cobrem a cabeça com uma dobra do seu sari. Conforme a idade delas, a dobra do sari cobrirá mais ou menos inteiramente a cabeça. As mulheres casadas distinguem-se das solteiras polvilhando de vermelho a risca mediana do seu cabelo... São inúmeros os exemplos de semiótica capilar, ou de toucador - se assim me posso exprimir - por esse mundo fora. Não vou prosseguir com outros mais, mas aconselho-te a leitura do ensaio acima citado, e do qual respigo ainda o seguinte passo:
A epístola de São Paulo (I Coríntios, XI, 2-15), que prescreve às mulheres que cubram a cabeça para assistirem aos ofícios, não é apenas expressão de afetação misógina. Antes parece resultar de um uso já espalhado nos países europeus, e que era provavelmente transgredido. Na verdade, quanto à Eurásia, sabemos, através de investigações sobre os povos turco-tártaros ou ugro-finlandeses da Sibéria ou da Ásia central que eles conheciam o uso do cabelo coberto pelas mulheres, muito antes do cristianismo e da islamização. O famoso texto de São Paulo mais não seria do que a legitimação de um costume mais antigo e mais espalhado. Seja como for, parece-me difícil contestar que o Apóstolo de Tarso, o cristão fundador vindo do farisaísmo, o tal que, apesar disso, rompeu com os interditos alimentares e matrimoniais do judaísmo, e muitos dos seus ritos - além de ter também sido aquele que proclamou jamais haver escravo e homem livre, nem homem e mulher - não tenha sido o primeiro a dar ao véu uma dimensão religiosa, iniciando, aliás, com o texto referido, uma teologia do véu que os Padres da Igreja foram desenvolvendo até ao século III, quando Tertuliano e Clemente de Alexandria apresentaram a sua teoria completa do véu como atributo da virgem consagrada e da esposa cristã. Diz o tal passo da primeira Epístola aos Coríntios: Tenho aliás de vos louvar por vos lembrardes de mim em todas as coisas e por manterdes as tradições tal como vo-las transmiti. Quero, porém, que o saibais: a cabeça de todo o homem é Cristo, a cabeça da mulher é o homem, e a cabeça de Cristo é Deus. Todo o homem que ora ou profetiza com a cabeça coberta desonra a própria cabeça. Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta desonra a própria cabeça, pois é o mesmo que se estivesse rapada. Se uma mulher, efetivamente, se não cobre, corte igualmente o cabelo. Mas se, para uma mulher, é desonra cortar ou rapar o cabelo, então que se cubra. Na verdade, o homem não deve cobrir a cabeça, por ser imagem e revérbero de Deus; a mulher, por seu turno, é revérbero do homem. Não é, de facto, o homem que provém da mulher, mas a mulher que provém do homem. Nem o homem foi criado por causa da mulher; a mulher é que o foi por causa do homem. Devido a isto, a mulher deve ter na cabeça um sinal de sujeição por causa dos Anjos. Aliás, no Senhor, nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher; e tudo vem de Deus.
Recorri aqui à tradução do texto grego pelo cónego José Falcão (Lisboa, 1960). Em nota de rodapé, o saudoso biblista dá-nos uma informação preciosa: a mulher não tem de usar, perante Deus, a cabeça descoberta, mas tem de ostentar um sinal da sua sujeição (lit. autoridade) ao homem e assim se conformará com a ordem instituída por Deus. O termo autoridade não se entende sem dificuldade. Uns compreendem-no ativamente: «sinal de poder», espécie de talismã contra os Anjos maus (por causa dos anjos); mas esta exegese não apresenta provas de que o véu feminino tivesse alguma vez sido considerado como um talismã. Outros, com mais probabilidade, interpretam: «sinal de autoridade do marido». E até foi sugerida a hipótese de uma confusão devida a um termo aramaico (shaltonayá ou shiltoná), que poderia significar autoridade e véu, donde o equívoco no grego. Seja como for, a confusão entre autoridade (ou submissão) e véu estabeleceu-se. Talvez Paulo procurasse assentar a simples licitude ou entendimento do porte do véu pelas mulheres, costume certamente antigo, também entre gregos e romanos, numa justificação religiosa, ressalvando, todavia, que, aliás, no Senhor, nem a mulher se compreende sem o homem, nem o homem sem a mulher. É que, assim como a mulher provém do homem, assim também o homem existe por meio da mulher, e tudo vem de Deus.
O problema, digo eu, é que esta coisa da inculturação das religiões - ou das mensagens religiosas - corre sempre o risco de gerar interpretações dogmáticas para todo o sempre... No decurso da nossa história humana, o cabelo, crescido e exposto, das mulheres já foi sinal de fortaleza e beleza, como de lascívia, serviu para Madalena enxugar os pés de Cristo, para lady Godiva esconder a nudez, ou para ser cortado rente pelos parisienses que apanhavam as francesas que mais se tinham dado com os alemães durante a guerra. Entre os homens, não só Sansão, mas também os sikhs e outros, em suas compridas guedelhas viram sinal e garantia de força máscula, quiçá por isso as ordens religiosas impunham a tonsura aos seus monges e frades, como o duque de Berry aos seus criados. Já se viu de tudo um pouco, ou muito, cabelo penteado ou toucado, exposto ou esconso, é, como toda a semiótica, uma questão cultural, não vale a pena sofrer-se de obscura obsessão religiosa persecutória...
Peço-te vénia, com tantas variações e fugas esqueci-me de que, afinal, nesta carta te falaria de testemunhos de portadoras - ou refutadoras - de véus, desde freiras cristãs a devotas muçulmanas e a feministas de vários costados. Ficarão para a próxima, perdoa-me. São importantes para a nossa conversa, porque afirmam um direito inalienável e irrepreensível, simples expressão da nossa necessária condição subjetiva, que é, tão simplesmente, o da liberdade individual. A talho de fouce, digo que pensossinto ser a intolerância a única coisa intolerável. É minha crença íntima que assim é. A tal ponto que condeno qualquer perseguição a Charlies Hebdos, pelo simples facto de serem como são, muito embora tais publicações e intenções me pareçam, para além de, vezes várias, desnecessariamente provocatórias, cripto totalitárias e intolerantes: com exceção da sua própria visão do mundo, dos homens e de Deus, todas as outras são, para eles, ridículas e amesquinháveis. Como também considero - e dei-te até o exemplo do Tintin au Pays de l´Or Noir - o niqab ou a burka vestimentas suscetíveis de proibição de uso público - e, certamente, não por razões religiosas, nem outras semióticas – por serem difíceis para qualquer serviço de segurança controlar identidades. E, tal como me parece uma estupidez essa perseguição ao burkini, que não esconde caras, me pareceria também intolerância qualquer oposição islâmica ao banimento, em espaços públicos, de vestuário que pode, evidentemente, servir de disfarce. Tudo isto se conversa, bater o pé é que não leva a lado algum. E, menos ainda, provocar.
Como quero deixar a próxima carta entregue a testemunhos mais pessoais e puros do que o meu, atrevo-me ainda a registar nesta um último comentário, uma lembrança que agora me ocorreu: Moisés - a ter existido - homem e condutor de povos, cobria-se com um véu, depois de conhecer a revelação divina, por tal o tornar, escreve o rabino Yeshaya Dalsace, insuportável ao comum. Donde a necessidade de ocultar a luz tão desejada. Mais ainda: o véu do profeta põe-no sem rosto, sem personalidade visível. Entrando na santidade, Moisés perde um pouco da sua humanidade, como se estivesse do lado de lá do espelho. Tornado invisível para os homens, ele só se descobre diante da presença divina.
Ontem fui ao mar. A este mar das fotografias onde costumo ir com o meu marido. Fui àquele mar de oceano Atlântico que é uma mar cheio, um mar cuja movimentação não pára, um mar que nos abraça para sempre a memória com uma beleza e uma força indizíveis.
Tenho ido ao mar este ano, mas nenhum estava como o de ontem. Entregava-se, provocava-nos, enrolava-nos, fazia ninho connosco quando o mergulhávamos. Não sei dizer o tanto que ele é para mim. Nunca soube. Só queria ter a certeza de que ele não se esquecerá de mim e das horas minhas dentro dele. É que são horas dele e gostaria que o soubesse por ser uma entrega. Sim, por ser uma entrega.
O meu marido ensinou-me em Cabo verde, a “furar” as ondas grandes, e se o meu amor pelo mar já era inseparável de mim, a partir daí, passou a viciar-me num feitiço de paz e turbulência lúcidas, num feitiço de quem me diz coisas que mais ninguém diz ou sabe dizer como eu quereria. Por ele, por graças a ele, sinto-me menos só nas inúmeras vezes que a vida nos faz só.
Nele viajo por todas as realidades desejadas que o não foram e por todas as alegrias fantásticas que o são. Nele viajo fazendo o transbordo das ondas enquanto chamo o céu à pele do mar e peço que me segure sempre, num até além de maio, e possa eu senti-lo de novo, e ter tempo de emendar naturezas e caminhos de aguarelas que me escaparam nos dias em que vagabundos os meus olhos o não viram.
Do meu mundo, o mar, é muito do que me resta. É para mim o meu grande livro encadernado. Eu e ele, juntos, seremos sempre os autores de inacabadas cartas inéditas, ainda que as dele me sejam entregues por um correio de ar, por ser um modo explícito da verdade subir ao céu.
Esperarei mar. Esperarei ver-te sempre e sentir-te como quem se apoia sem pudor naquela estação da vida que só se percorre de mão dada à tua margem.
Tem interesse cotejar, no ponto de vista histórico e arquitetónico, as duas principais salas de espetáculo teatral de Faro, tanto pelos edifícios em si e na sua funcionalidade artística, como na perspetiva do que representa esse cotejo na própria evolução urbana, económica e cultural da cidade e do país.
E isto porque a existência e o historial de um teatro reflete diretamente e reciprocamente, as mudanças que entretanto vão decorrendo: neste caso através do cotejo e das implicações significativas dos dois Teatros de Faro, o Teatro Lethes e o Teatro Municipal, também chamado Teatro das Figuras.
O primeiro ocupa um edifício do século XVII, transformado em teatro no século XIX. O segundo foi inaugurado em 2005. Vejamos hoje o primeiro, e em próxima crónica o segundo.
O edifício do Teatro Lethes remonta pois ao século XVII e corresponde, com poucas alterações no exterior, ao antigo Colégio dos Jesuítas que se instalam na cidade em 1599. Lá se mantêm até 1769: e exatos 10 anos decorridos, o edifício retomou a sua vocação religiosa, abrigando a Ordem dos Carmelitas, até 1834. Ficou a tradição de um impressionante conjunto de talha entretanto desaparecida. E o exterior mantem fortes vestígios da traça original.
Mas em 1843 o edifício é adquirido por um médico italiano, Dr. Lázaro Doglioni, nascido em Veneza em 1778. Quis o destino que em 1804, embarcado a caminho de Inglaterra, Lázaro tenha naufragado ao largo do Cabo se São Vicente. Sobreviveu e fixou-se no Algarve. E nesse ano de 1843 adquire o Convento devoluto e inicia trabalhos de transformação/adaptação a Teatro. Para isso, contou com o apoio de um sobrinho também médico, Justino Comano, chegado a Faro em 1840.
O mais extraordinário é que o Teatro Lethes fica na família até 1951, tendo começado a funcionar também como cinema no início do século. Naquele ano, entretanto, é vendido à Cruz Vermelha. E manteve, não obstante o ciclo de transformações, o caráter arquitetónico exterior do Convento e a estrutura interior de sala de espetáculos dos séculos XVIII/ XIX, com a rede de camarotes adequada à dimensão da sala.
José Carlos Vilhena de Mesquita descreve as adaptações da antiga Igreja e Convento a sala de espetáculos. “No lugar do altar-mor ficava a Sala Verde do teatro e no coro da Igreja que se situava junto à frontaria, erigiu-se o respetivo palco” (in “O Teatro Lhetes”, 1988, pág. 24).
No início do século passado fazem-se novas adaptações, com intervenção de José Filipe Porfírio. Mas, tal como refere Paulo de Almeida Fernandes no “Portugal Património” que temos aqui citado, “o teto é a parcela mais importante do sistema decorativo: sob um cenário celestial exibem-se quatro figuras mitológicas (duas masculinas e duas femininas) a tocar flauta, clarinete, harpa e violoncelo, sob o regozijo de uma superior figura alada, que lhes lança coroas de louro em sinal de glória a aplauso”… (ed. Círculo de Leitores, vol. IX, 2008, pág. 322).
E assim perdura até hoje o Teatro Lethes: como noutro lado escrevi, “o aspeto continua a ser algo insólito, com a velha e poderosa fachada jesuíta encimada pela divisa Monet Obletanto e com a sala de traça romântica, frisa, três ordens de camarotes e uma belíssima alegoria à música no teto e na boca de cena” (in “Teatros de Portugal”, ed. Inapa, 2005, pág. 73).
Em próximo texto evocaremos o moderno Teatro Municipal de Faro, também conhecido por Teatro das Figuras.
Quem ouve, vê, cheira, prova e sente o Royal Albert Hall durante a Last Night of the Proms sabe da música, das bandeiras e da emoção. Ali e à volta do reino gera-se uma atmosfera eletrizante, única, sobretudo quando as plurais vozes entoam Jerusalem ou God Save The Queen. — Chérie!
Il est bon d'avoir des amis partout. Este momento patriótico é agora alvo de uma tentativa de sequestro europeu. Paredes meias, na British Academy, a Prime Minister RH Theresa May expõe a sua visão de “a true meritocracy in Britain.” — Well! Land of Hope and Glory, Mother of the Free. RH David Cameron demite-se da House of Commons. Além Channel, o terrorismo e as migrações pautam as primárias da direita nas presidenciais francesas. A duas semanas dos debates na White House Race, Mrs Hillary R Clinton sofre um episódio médico que a força ao cancelamento da campanha na California e no Texas; o rival Donald J. Trump silencia-se por momentos. Após os tanques turcos avançarem na Syria, os USA e a Russia unem esforços no combate aéreo ao Isis. No terreno ensaiam-se novas tréguas humanitárias durante o Eid Al Adha. O globo censura em uníssono a nuclearização da North Korea. O GB Team regressa ao ouro nos 2016 Paralympics do Rio de Janeiro. Há 15 anos é o 9/11 que muda o mundo do Post-Cold War.
Still heat and humidity at Great London. O dia está aqui marcado pela demissão de RH David Cameron como Tory MP por Witney (Oxfordshire). O ex PM abandona a vida política com legado positivo, da economia à primeira maioria conservadora em 20 anos, mas preso ao euroreferendo. Acaba a abandonar o exemplo de um inderrotável Sir Winston Churchill como Commons Man. Conclui-se que o Summertime não auxilia à acalmia das mentes agitadas pelo voto de 23rd June. Se a esquerda ata a derrota ao relutante Comrade Jezza Corbyn e à direita permanecem latentes as paliçadas entre os hard & soft Brexitters, no espaço mediático chove o desconforto dos Remainers. A clivagem fora da Westminster é amiúde simples de decifrar: follow the money. Os segmentos financiados pelos programas da European Union fruem as oportunidades para marchar sobre Parliament Square com cartazes do “I Love EU.” Ora, a mais recente manifestação desconcerta. Um grupo de jovens músicos intenta fazer da Last Night of The Proms palco para “2,500 flags” azuis estreladas – aquelas mesmas que, quiçá por ironia, mal se viram durante a longa campanha referendária. A iniciativa acaba esbatida, face às bandeiras da Union Jack e das demais nações dos Prommers. Segundo a Press, a iniciativa recolhe £1,175 com 60 pessoas e outros tantos donativos para a causa bandeiral. Porém, aquém do potencial explosivo, a reação é comum: How dare you? O God Save The Queen é uno, soberano e inegociável, como os republicanos sabem. Para menos, logo quando passam os 100 anos de Jerusalem e da Fight for Right. Em 1916, com a Royal Choral Society e o join in como lema, pela primeira vez ouve o Hall o hino paraoficial e inicia-se a corrente miltoneana: “And did those feet in ancient time.”
Este sentimento, que é uma paixão melódica e é um laço político nas ilhas, tem fundas raízes. Muitas vezes se debate o que é Britain; encontro resposta ali, no monumental espaço idealizado por um infante alemão que a política interna ao tempo cataloga como Der King mas só obtém reconhecimento, por prerrogativa real, como Albert, Prince Consort. Dos versos proféticos de um Mr William Blake ou Prof A. C. Benson às notas de Sir Edward Elgar e Sir Hubert Parry, é toda uma visão da terra prometida, anualmente celebrada pelos concertos estivais na sala inaugurada em 1871 pela Queen Victoria. O RAH quer-se a salvo das divisive politics. Tem missão universal, pergaminhos e defensores. É o coração de Albertopolis, que o Saxe-Coburg and Gotha idealiza nos 1850s como bairro cultural em South Kensington, para acolher a Great Exhibition (1851), o Victoria & Albert Museum (1852) e o Science Museum (1857). Abre em 1867 como Central Hall of Arts and Sciences, para, uma década depois, pro memoria, Victoria o rebatizar como Prince Albert Hall. É o herdeiro do Queen’s Hall, destruído em 10 May 1941 durante o London Blitz. Nesta sala ocorre a primeiríssima First Night of The Proms, a 10 August 1895, que o recinto congénere retoma na II World War e apresenta em já 75 anos de concertos. Carimba o calendário. O conceito das Proms populariza-o: permitir que a audiência passeie enquanto ouve música, noite após noite de veraneio, com programa clássico, em espaço com qualidade acústica e bilhete a todos acessível. Se serve de farol aos pilotos na Battle of Britain, 63 dias após a bomba nazi sobre Langham Place, um apinhado Royal Albert Hall escuta “the first ever Last Night of the Proms.” A 23 August 1941 canta-se Land of Hope and Glory, Mother of The Free.
A história elucida das sensibidades, tal qual a política expressa as afinidades eletivas. A PM acaba de surpreender quantos a pensaram como uma circunspeta tecnocrata sem ideologia. A senhora quer ser, com estilo e substância de Thatcher 2.0, a champion for the working people. Assim: Alinhando a máquina de Whitehall com a estratégia para o Post-EU UK, Mrs May avança com radical reforma no ensino. Um só princípio ancora a mudança: a aposta na seleção académica, com regresso às Grammar Schools (banidas pelo PM Tony Blair, em 1998, porque desigualitárias) e liberdade para as Faith Schools (com obstáculos vários, por temor de segregação). Donde, quando a Brexit is starting to bite e tocando em massa de interesses A sideshow? Ou um projeto de futuro? A retórica é forte: “When I stood in Downing Street as Prime Minister for the first time (…), I set out my mission to build a country that works for everyone. Today I want to talk a little more about what that means and lay out my vision for a truly meritocratic Britain that puts the interests of ordinary, working class people first. We are facing a moment of great change as a nation. As we leave the European Union, we must define an ambitious new role for ourselves in the world. That involves asking ourselves what kind of country we want to be: a confident, global trading nation that continues to play its full part on the world stage. (…) Let’s build a truly dynamic school system where schools and institutions learn from one another, support one another and help one another. Let’s offer a diverse range of good schools that ensure the individual talents and abilities of every child are catered for.” O futuro mostrará se temos May ou… May be?
Downing Str continua em roda vivísima. A Premier recebe o European Council President no Ten. É a primeira reunião formal “to discuss preparations for the UK’s withdrawal from the European Union.” Na ementa do friendly breakfast constam ainda os planos para o October EU Summit e as posições face à crise migratória no contexto do acordo Brussels/Ankara a par da ratificação do Paris Climate Change Agreement. Em termos da Brexit, que é o que pesa na agenda, se Mrs May quer que o processo decorra “as smooth as possible”, já Mr Donald Tusk assinala que terá de accionar o Article 50 “as soon as possible.” Até lá, reitera o polaco, não haverá negociações. Como sempre, the proof will be in the pudin. Mas as atenções centram-se no PM Office por outras razões e não obstante a prodigalidade que vai pelas oposições. Passa sem furor em Westminster a afetação de £1.9m para a fortificação de Calais, algo como a 13ft-high & 0.6-mile-long wall, num esforço conjunto de London e Paris para suster os migrantes que tentam a entrada no reino. A cada qual, porém, as suas prioridades. Enquanto se aguarda a provável vitória de RH Jeremy Corbyn no Labour Party, os Greens substituem Mrs Natalie Bennett na liderança pelo duo RH Caroline Lucas MP e Mr Jonathan Bartley (o GP Work and Pensions Spokesman). No meio da colorida agitação esquerdista e da trepidação crescente no Brexiting, durante os seus doces 60 dias de governação, Mrs T May reorienta a bússola ideológica dos Tories. Nove em cada 10 militantes declara hoje que ruma para a new conservative majority. O estilo e as medidas agradam, segundo as sondagens, rompendo as linhas partidárias e atraindo mesmo os outrora desencantados. A Baroness Emma Nicholson, que em 1995 passa para os Lib Dems de RH Paddy Ashdown, está de regresso a casa. No mais da bancada azul, nota para o Foreign Secretary. RH Boris Johnson declara o seu público apoio a um grupo de pressão que prolonga a vida aos Brexittism. Chama-se Change Britain, visa “to demand measures such as pulling the UK out of the single market” e agrupa personalidades como a Lab MP Gisela Stuart, o antigo Chancellor RH Nigel Lawson (do Thatcher Government) e ainda Mr Steve Hilton (assessor político no Cameron Govt).
A veia reformista permeia outras áreas. O novo Oxford Dictionary apresenta 1,000new words. Confirmando a abertura académica dos filólogos nativos, open – we may say – to a lot of made-up expressions, surgem vocábulos como slacktivism, yolo, squee e gender-fluid; i.é o ativismo digital, o acrónimo de you only leave once, o novo grito para great ou wow, e ainda a designação para a fluidez dos géneros que anda em circulação.
A minha nova favorita tem som atlântico e é fuhgeddaboudit. Traduzindo: Forget about it. A tradição que ilumina a Glorious Revolution gera coisas destas. A medalha de tolerância vai aqui, porém, por mérito na line of duty, para Mr David Thompson, não obstante a acesa concorrência dos nove jovens que, durante várias horas, bloqueiam o Heathrow Aiport em manifestação do Black Lives Matter. Brancos de pele, por sinal, protestam contra as emissões aéreas que “disproportionately affect black people.” Haverá melhor!? Sabeis que a polícia gaulesa vigia as praias do Mediterrean em busca de senhoras usando burkas. Nas West Midlands (Eng) antes quer o Chief Constable colocar as polícias a vestir a islâmica vestimenta. Afinal, explica o oficial, se o uniforme permite aos Sikh usar os turbans, aos Muslim os kufis e aos Jewish os yarmulke e kippah, porque não permitir às female Muslim officers & staff envergar hijabs? Que só revelem os olhos e tapem o demais corpo não embargue recrutamento ou ação. — Well! Think about the sea of inkhorn terms by an indulgent Master Will in Love's Labor's Lost: — Chirrah! / — Quare chirrah, not sirrah? / — Men of peace, well encount'red. / — Most military sir, salutation. / — They have been at a great feast of languages, / and stol'n the scraps. / — O, they have liv'd long on the alms-basket of words.
«As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal» de Miguel Moreira e Catarina Verdier (Parceria António Maria Pereira, 2016) é uma experiência literária inédita, que recorre a Fernando Pessoa como personagem surpreendente e multifacetada de Banda Desenhada.
UMA FIGURA COMPEXA E INESPERADA A tarefa a que os autores se devotaram de acompanhar os passos de uma figura tão complexa como Fernando Pessoa merece ser alvo de atenção, uma vez que ao longo de cerca de 170 páginas, recheadas de textos e de imagens, imbuídos de um especial cuidado no tocante ao tratamento gráfico, podemos encontrar não apenas a riqueza da obra criadora do poeta e escritor, mas também uma artificiosa e inteligente forma de inserir a multiplicidade dos heterónimos numa dinâmica, muito própria da BD, de aventura, numa narrativa plena de movimento e de ritmos diferentes, muito atraentes para qualquer leitor. O autor dos desenhos e do argumento é Miguel Moreira, notando-se originalidade e maturidade no tratamento de uma arte muito exigente, sobretudo (como é o caso) quando nos encontramos perante um tema difícil, muito tratado por consagrados especialistas – o que obrigou o autor a dedicar-se longamente a um trabalho árduo, de que, no essencial, se sai muito bem. Catarina Verdier foi a colorista do álbum e o seu trabalho é notável, ficando demonstrado que o autor teve a inteligência de conceder à cor uma especial função para tornar a mancha mais atrativa, favorecendo nitidamente a leitura e o acompanhamento da história. E se há pranchas em que se nota uma certa sobrecarga de texto, compreende-se a opção do autor, uma vez que, de certo modo, faz sentir o leitor que o desenvolvimento torna-se necessário para a compreensão do enredo e da narrativa. Se dúvidas houvesse, basta vermos o brilhantismo revelado em outras pranchas onde não há palavras, mas sim apenas o gesto e o movimento. É por isso que se pode dizer que há um evidente equilíbrio entre o desenho e a palavra, com caráter adequado à natureza do tema e da personalidade considerada. Acrescente-se que há uma muito grande preocupação pedagógica na identificação dos diversos intervenientes, de modo a que se saiba exatamente quem é quem e se compreenda a importância da relação deles com Fernando Pessoa. A presença de uma perturbadora figura da morte, que vai tendo diversas aparições no decurso da história, permite a compreensão do sentido trágico da vida do poeta, dos seus amigos, dos seus heterónimos e de quantos povoam a existência da extraordinária geração de «Orpheu». Não se pense, porém, que o curso dos acontecimentos é acompanhado de modo simplificador. As relações entre Pessoa e os elementos do grupo modernista são difíceis – e Miguel Moreira tem o cuidado de as ir tratando sem simplificações, o que torna esta leitura como um precioso auxiliar para um melhor conhecimento de Fernando Pessoa e do seu universo. A expressão «escritor universal» transporta-nos, aliás, para essa perspetiva de quem pretende pela diversidade abarcar o mundo e a humanidade. Naturalmente que uma obra de Banda Desenhada não dispensa que o leitor recorra a informação complementar. No entanto, a base que se encontra nesta obra é muito interessante e útil, pondo-a em paralelo com outros exercícios levados a cabo pelas melhores experiências nos domínios biográfico e científico.
VÁRIOS LIVROS, PERSONALIDADE MULTIPLICADA Os autores confessam que nesta obra há vários livros no mesmo livro. Entende-se que assim seja pela multiplicação de personalidades que encontramos, mas também em virtude da importância da relação da aventura plural com Mário de Sá Carneiro. Nesse caso, temos quarenta páginas de um relato especial, em que os dois poetas são protagonistas-maiores de um verdadeiro romance em diálogo, em que a vida e a ficção se misturam… Por outro lado, Bernardo Soares, o semi-heterónimo, também tem um tratamento especial, que nos permite compreender a importância do «Livro do Desassossego» - obra tardiamente revelada, mas indispensável para a consagração de Fernando Pessoa como referência de uma época, de uma geração e de uma cultura aberta. Há, assim, uma revelação mútua da riqueza criadora de Fernando Pessoa e de Bernardo Soares, em ligação com a diversidade, nada pacífica, de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos ou Ricardo Reis… E sobre a tensão existente entre as várias componentes desse complexo universo, temos o episódio inesquecível de Pessoa a escapar a uma valente sova, entre os cestos da Praça da Figueira… Catarina Verdier explica, entretanto, que a cor assume «tonalidades e jogos» que correspondem a fases diferentes – mudando também «de forma subtil em função do local em que as coisas acontecem». Como tem sido reconhecido por quantos se pronunciaram sobre esta obra singular, Fernando Pessoa surge, desde a infância, como alguém que é recriado nesta obra pela revelação de uma obra onde se manifesta uma poderosa vida de reflexão e de permanente procura de novas formas de ver, de conhecer e de compreender… E se poderíamos antecipar a resistência dos especialistas pessoanos relativamente a uma obra como esta, encontramos uma excelente recepção, dado o rigor do trabalho apresentado e considerando o cuidado extremo dos autores em não contaminarem ou contrariarem o estado da arte no domínio da investigação pessoana. Joaquim Pizarro não escondeu uma impressão muito positiva relativamente à obra, de indiscutível qualidade, salientando que estamos diante de um meio importante de revelação da importância de Pessoa na cultura portuguesa. Os autores de «As Aventuras de Fernando Pessoa, Escritor Universal» conseguem no trabalho realizado: (a) utilizar a Banda Desenhada como um meio muito importante de apresentação e divulgação de temas, problemas e personalidades marcantes da cultura; (b) ligar uma narrativa de caráter histórico a uma representação gráfica de qualidade como grande valor pedagógico; (c) sensibilizar o público em geral, mas também os estudiosos, para uma figura marcante da modernidade europeia; (d) demonstrar que é possível garantir um tratamento rigoroso e de grande qualidade a propósito de um tema aliciante mas complexo, já que a heteronomia de Pessoa se soma à grande riqueza da geração modernista de «Orpheu» que o livro trata de um modo bastante atento e amplo.