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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

    Minha Princesa de mim:

 

   A história de Isaac e Rebeca vem contada no livro do Génese, no capítulo 24. O anterior é curto, regista a morte de Sara, mãe de Isaac, e a sua inumação na gruta do campo de Makpela, em Canaã, onde mais tarde também o corpo de Abraão, seu marido, será tornado à terra. Isaac será o único herdeiro universal de Abraão, o pai dos povos, é elo fundamental da linhagem dos eleitos. Por isso o Patriarca mandara o mais velho dos seus servos à cidade de Nahor, seu irmão, para aí escolher, entre as suas parentes, a que seria a mulher de seu filho. O sinal do reconhecimento de Rebeca é proposto, em oração, pelo próprio servo a Yahvé: será aquela que lhe der de beber, e aos seus camelos, quando lhe pedir água. Rebeca é filha de Nahor, prima, portanto, de Isaac. E irmã de Labão, que a autorizará a seguir com o servo de Abraão até à terra deste, em Canaã. Mais tarde, será o mesmo Labão que dará as suas filhas - Lia, primeiro, Raquel depois - em casamento a Jacó, filho de Isaac e Rebeca. Lembras-te do lindíssimo soneto de Camões? Sete anos de pastor Jacó servia / Labão, pai de Raquel, serrana bela / mas não servia o pai, servia a ela / que a ela só por prémio pretendia... Aí o tens, é esse mesmo.

 

   Quando o servo e a noiva chegaram ao país de Negeb, onde Isaac vivia, este, conta-nos a narrativa bíblica, saíra de casa para passear nos campos, ao cair do dia, e erguendo os olhos viu camelos a aproximarem-se. E Rebeca, erguendo os olhos, viu Isaac. Desceu do camelo e disse ao servo: "Quem é aquele homem que vem pelos campos ao nosso encontro?" O servo respondeu: "É o meu senhor"; então, ela pegou no véu e cobriu-se. O servo contou a Isaac tudo o que tinha feito. E Isaac levou Rebeca para a sua tenda. Tomou-a, ela tornou-se sua mulher e ele amou-a. E Isaac consolou-se da perda de sua mãe. Não sei dizer-te bem porquê, mas há neste texto algo de muito belo, que me comove. Rebeca cobre a cabeça e o rosto, como as noivas judias, em sinal de reserva, como quem embrulha um presente (perdoa-me, compreende a lhaneza da comparação). E depois de se unir à mulher, Isaac sente-se consolado da morte de sua mãe, porque realiza que volta a regressar às origens. Eis uma experiência erótica profundamente humana e mística. O que mais me choca na pornografia devassa que por aí tanto se vende, é o desvio, o encobrimento da beleza intrínseca do erotismo. No sentido que lhe deu Georges Bataille, e eu tantas vezes recordo: L´érotisme c´est l´affirmation de la vie jusque dans la mort. Um ser monocelular reproduz-se dividindo-se, morre um para resultarem vários. Nós fazemo-lo unindo-nos, essa união de dois - que inevitavelmente morrerão - afirma, continua a vida na sua descendência.

 

   O poema de David Mourão Ferreira, que Amália canta, é claramente erótico, inconscientemente místico. Cito de memória, perdoar-me-ás, Princesa, um qualquer lapso: Bebi por tuas mãos esta loucura / de não poder viver longe de ti... / És a noite que à noite me procura / és a sombra da casa onde nasci... // Deixa ficar comigo a madrugada / para que a luz do sol me não constranja, / numa taça de sombra estilhaçada / deita sumo de lua e de laranja... //  Só os frutos do céu que não existe / só os frutos da terra que me deste / irão fazer-te a ausência menos triste / tornar-me a solidão menos agreste... // Vou recolher à casa onde nasci / por teus dedos de sombra edificada... / Nunca mais, nunca mais longe de ti / se comigo ficar a madrugada!

 

   Na pintura da Noiva Judia de Rembrandt, a mão direita do noivo (Isaac) pousa levemente no ventre da noiva (Rebeca), cuja mão delicada se une à do seu eleito numa carícia. Ambos, afinal, acariciam o fruto do ventre dela, que é deles dois. Nós, humanos, somos, ontologicamente, relação. Por isso, o filho pródigo regressa sempre. Porque é de saudade que vivemos.

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira