A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO
XVI - O DIREITO À IDENTIDADE LINGUÍSTICA
ENQUADRAMENTO
1. O direito à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, como expressão do direito à identidade cultural, inclui os vínculos de filiação, a identidade civil, o direito à intimidade, à imagem, à palavra, ao nome, bem como o direito de uso da língua, sendo o idioma materno, ao mesmo tempo, um dos primeiros elementos individualizadores da identidade cultural (cf. artigos 26.º, 52.º e 78.º da Lei Constitucional Portuguesa). Nos termos do artigo 11.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, a língua oficial é o português, sendo uma das tarefas fundamentais estatais o seu ensino, valorização, defesa, uso, promoção e difusão internacional (art.º 9.º, alínea f)), a que se adicionam os laços singulares amistosos e de cooperação com os países falantes de português (artigos 7.º, n.º 4 e 78.º, n.º 2, al. d)), a equiparação, nos termos da lei e de reciprocidade, dos direitos dos seus cidadãos aos dos portugueses (art.º 15.º, n.º 3), sem esquecer o ensino aos filhos de emigrantes (art.º 74.º, n.º 2, al. i)).
2. Sendo o português língua oficial significa, nomeadamente:
“ - o uso exclusivo do português pelos titulares dos órgãos do Estado, das regiões autónomas e do poder local, bem como de quaisquer entidades públicas, tanto no país como no estrangeiro;
- a produção em português de todos os atos de funções do Estado e de todos os procedimentos e processos a ele tendentes (políticos, legislativos, administrativos, judiciais);
- a publicação em português de todos os diplomas emitidos por estes órgãos;
- a tradução para português de todas as convenções e de todos os atos de organizações internacionais e da União Europeia vinculativos para Portugal;
- a utilização do português como língua oficial da União Europeia;
- a publicação em português de todos os atos notariais;
- a regra da composição em língua portuguesa dos nomes de todas as pessoas nascidas em Portugal, salvo filhos de estrangeiros residentes em Portugal ao serviço dos respetivos Estados;
- a exigência de domínio do português, oral e escrito, para efeitos de naturalização;
- o ensino em português em todas as escolas públicas, privadas e cooperativas, com exceção (mas sempre com ressalva do ensino também em português) de escolas pertencentes a Estado estrangeiro;
- a etiquetagem em português de todos os produtos à venda em Portugal;
- a possibilidade da proibição de nomes comerciais em línguas estrangeiras.”[1]
Esta salvaguarda da nossa identidade linguística é extensiva a outras designações e situações, desde as artes em geral a manifestações culturais, incluindo o ensino de português aos imigrantes que o desconheçam.
INQUIETUDES E QUESTIONAMENTOS
3. É de questionar se é respeitado esse direito, desde logo via cumprimento das respetivas obrigações constitucionais.
É ineficaz a retórica das centenas de milhões de falantes, quando um dos poucos idiomas com caraterísticas de universalidade do século XXI, nem sempre é digno do respeito que merece por aqueles que o têm como oficial.
Exemplos existem, não só a nível político, governamental e diplomático, mas também da sociedade civil em geral, inclusive na nossa própria casa.
Eis uma enumeração exemplificativa:
- uso em público de idiomas estrangeiros por titulares de órgãos de soberania nessa qualidade;
- omissão frequente, por muitas elites e políticos, do nosso idioma em conferências, encontros e reuniões em solo luso com parceiros de outros países, mesmo tendo por destinatários cidadãos portugueses ou o povo português em geral;
- não tradução oficial para português, nem a publicação no Diário da República, de memorandos de entendimento ou acordos com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu, a União e a Comissão Europeia, ou instituições congéneres, de âmbito internacional, que impliquem negociações com o Estado Português;
- comercialização e distribuição de produtos importados omissos quanto a instruções escritas em língua portuguesa;
- admissão e permissividade das primeiras denominações de escolas e faculdades universitárias em língua estrangeira, designadamente em inglês, algumas delas, sem apelo nem agravo, omitindo o português, o mesmo sucedendo com outras instituições de investigação científica ou similar;
- denominações de sociedades, cartazes publicitário e luminosos em língua estrangeira, com total omissão em português;
- violação do direito fundamental à língua e à identidade linguística, via imposição, a alunos portugueses, de outra língua, em aulas dadas por professores portugueses (e não estrangeiros) em universidades portuguesas;
- não incentivo aos alunos do Erasmus, quando entre nós, a aprender português, o que é contrário ao interagir e não uniformização linguística de tal programa;
- a rapidez com que, no desporto, jogadores e técnicos portugueses se adaptam ou tentam adaptar a um bom uso da língua oficial de Espanha quando aí trabalham ou residem, não recíproca e inversamente proporcional aos esforços que técnicos espanhóis e desportistas fazem para se adaptar a um bom domínio do português em Portugal, com aceitação geral, entre nós, ao invés do que sucede no país vizinho;
- é usual falantes de castelhano, residentes entre nós, falando e escrevendo-o à vontade, com pouca ou nenhuma concessão ao português, ao invés duma percentagem significativa de portugueses a falar ou simular falar castelhano, mesmo em Portugal, se abordados por turistas vizinhos no nosso país;
- negligência de agências e viajantes nacionais na feitura de viagens ao exterior, aceitando, sem mais, guias ou intérpretes em línguas estrangeiras, havendo alternativas no uso do português, dando azo a que não se difunda e valorize mais pelo mundo, inclusive para um maior número de empregos a intérpretes não maternos que o têm como língua de exportação e futuro;
- com a agravante, cada vez mais notória, da contratação e aceitação de guias em espanhol, dando a este idioma um valor acrescentado, e menorizando o nosso, uma espécie de dialeto daquele;
- abuso, recurso galopante e imponderado, por vezes uma importação cega, de estrangeirismos e neologismos, nomeadamente de expressões de matriz anglo-saxónica;
- degradação da língua portuguesa, como idioma de trabalho na União Europeia, debilitando-a e secundarizando-a, como o comprova a aceitação, pelo governo português, da nova patente “anglo-franco-alemã”, no âmbito da Convenção da Patente Europeia, visando uma cooperação reforçada das patentes, privilegiando o francês, inglês e alemão.
4. Esta listagem significativa, mas meramente exemplificativa, questiona-nos pelo não cumprimento de normas imperativas de natureza constitucional, com desrespeito pelo nosso direito à identidade linguística, tantas vezes corroborado por inércia nossa, dando um tiro no próprio pé ou poluindo a própria água que bebemos.
O imobilismo dominante, por oposição à garra, vivacidade, liberdade de expressão e de opinião quanto ao Acordo Ortográfico (concorde-se ou não), é manifesto e notório. Porquê esta desproporção de debates e omissões em redor de situações inerentes à mesma língua? Seria e será desejável que fiquemos inquietos com os desrespeitos e incumprimentos enunciados, alguns bem preocupantes, que importa evitar e suprir.
24 de outubro de 2016
Joaquim Miguel De Morgado Patrício
[1] Miranda, Jorge; Medeiros, Rui, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, notação ao art.º 11.º, pp. 109/10, Coimbra Editora, 2005.