CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Em carta ida, antes da anterior, já te falara de Madalena e da questão da sua identidade. Curiosas lendas antigas, escritos apócrifos, apresentaram-na como noiva de João, o discípulo que Jesus amava, outros como companheira de Jesus (pensa no Evangelho de Filipe, apócrifo gnóstico); romances hodiernos comprazem-se em celebrar o seu casamento com Cristo, de quem teria descendência; tal como o nosso Saramago os põe nos braços carnais um da outra. Nada de novo, nem original, já no século XIII a Legenda Aurea de Tiago Voragino referia: Dizem alguns que Maria Madalena fora noiva de João Evangelista, e que estava mesmo para casar com ele, quando Cristo o chamou no momento da boda. E Madalena, indignada por ele lhe ter roubado o noivo, foi-se embora e entregou-se a todas as possíveis volúpias. Mas como não estaria bem que a vocação de João se tornasse em ocasião de danação para ela, o Senhor, em sua misericórdia, converteu-a à penitência; e porque a arrancou aos supremos prazeres da carne, encheu-a, mais do que aos outros, do supremo deleite espiritual, que reside no amor de Deus. Alguns também dizem de João que, se Cristo o honrou admitindo-o na sua doce intimidade, foi porque o tinha afastado do prazer de Madalena. Mas são ideias falsas e frívolas.
Frei Tiago Voragino era dominicano prudente e sábio, foi sagrado arcebispo de Génova, onde morreu em 1298. Entre as suas lendas douradas - que, afinal, são sermões que acompanham as festas dos mistérios da fé, ao longo do ano litúrgico e do calendário hagiográfico - além de vidas de santos e reflexões teológicas, respiga tradições da devoção popular, incluindo, como no exemplo acima, as que considera fantasiosas, tal como outras, bonitas e toleradas pela Igreja, que ele encontrou em textos apócrifos. Creio que tinha noção da baralhada à volta da identidade da Madalena, personagem sobre a qual, hoje ainda, muitas coisas poderão ser ditas sem que alguma acerte. Exceto, quiçá, uma só: Lucas, no seu evangelho (Lc. 2, 8), narra o episódio da mulher possuída por sete demónios - e, eles sendo sete, quer isso dizer que estava totalmente possuída - que Jesus exorciza. Essa mulher, ali identificada como Maria de Magdala, toma a liberdade que lhe foi então dada para seguir Jesus, amá-lo e servi-lo até à cruz. Será a primeira a testemunhar a ressurreição do Senhor e, nesse momento, quando o reconhece, quererá tocar-lhe a fímbria da túnica. Mas fica-lhe no ar o gesto, pois Cristo ordena que não lhe toque. Noli me tangere - essa intimação em latim da Vulgata de S. Jerónimo - será, como sabes, tema de incontáveis criações da iconografia cristã...
Assim, o essencial da pessoa Madalena não é quem ela, de facto, em carne e osso, foi. Mais é a personificação do destino humano da misericórdia de Deus: tomando a nossa condição mortal, vence a nossa contingência, supera os demónios do nosso mal, e a própria morte, é, como na parábola do filho pródigo, a vitória e a glória do amor regressado. Talvez por isso, desde muito cedo a devoção cristã identificou numa só Maria Madalena, não só essa de quem saíram os sete demónios, mas a de Betânia, irmã de Lázaro - a tal que escolheu a melhor parte, a contemplação da palavra de Jesus - e a pecadora que com suas lágrimas lhe lavou os pés, os enxugou com seus cabelos e perfumou com bálsamos caros em casa de Simão, o fariseu. Em 591, o papa S. Gregório Magno declarou-as a mesma e uma só pessoa. E assim permaneceu essa lição de teologia da Redenção no imaginário e na devoção dos cristãos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira