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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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O Teatro Pax Julia de Beja


REVIVALISMO MOURISCO EM TEATROS DO ALENTEJO

Não se pretende neste artigo referir exaustivamente o conjunto de Teatros e Cineteatros do Alentejo, mas salientar, numa primeira abordagem que depois se irá especificando, a evocação de um chamado “estilo mourisco” em sucessivas salas de espetáculo da região, construídas a partir de finais do século XIX e em muitos casos ainda hoje em plena atividade. De tal forma que, repita-se, a algumas delas voltaremos com mais detalhe.

 

O mais significativo dessa linha arquitetónica será o Teatro Garcia de Resende, de Évora, já estudado nesta série: projeto do Arquiteto Silva Monteiro, datado de 1887, constituiu até hoje um dos grandes centros de cultura teatral da região. Mas também oportunamente referiremos por exemplo o Teatro Marques Duque de Mértola ou o Cine-Teatro Sousa Teles de Ourique, entre outros mais.

 

Hoje falaremos do Teatro Pax Julia de Beja, já pelo edifício em si, já pela própria trajetória funcional, cultural e arquitetónica e da relevância que sempre assumiu, em funções diferenciadas (e não pouco!...) mas sempre muito relevantes.

 

Com efeito, estamos neste caso perante a adaptação do antigo Hospício de Santo António, contíguo ao Convento da Conceição, ao qual pertencia quando foi contruído nos anos 20 do século passado. E é caso para dizer que o processo de intenções, no sentido de dotar Beja de um Teatro, vinha pelo menos de 1866, ano em que se começou a falar da necessidade de um teatro…

 

O edifício atual foi inaugurado em 1928. Em 1949 sofre obras profundas de atualização e reforça a atividade de exploração cinematográfica. Por essa altura, introduz-se um segundo balcão e procede-se à demolição das frisas e camarotes originais. Não é caso único por esse país fora: e em qualquer caso, funcionou como cinema até ao início dos anos 90.

 

Em 1994 a Câmara Municipal de Beja adquire o Cinema Pax Julia e um edifício vizinho, para reformulação da sala de espetáculos. Beneficiando de apoios do Ministério da Cultura, a Câmara procede então a uma vasto programa de obras de restauro, conduzidas segundo projeto da Arquiteta Maria Francisca Romão. E desde logo, no edifício contíguo, é instalada uma sala-estúdio que reforçou e de certo modo diversificou a atividade de espetáculos.

 

E talvez devido a esse prolongamento de vizinhança, o velho Teatro Pax Julia beneficia também de profundas alteações estruturais.

 

Desde logo, um segundo balcão, acrescentado nas obras de 1949, é suprimido, adequando melhor a sala, precisamente, a espetáculos de teatro e não de cinema. Ganha-se espaço para equipamentos técnicos e áreas de apoio ao espetáculo. E também a própria plateia é reduzida para maior conforto dos espetadores.

 

Desse modo, a lotação do Teatro reduz-se a 650 lugares: mas o termo “reduz-se”, num teatro, é força de expressão!

 

E fazemos ainda referência a dois Teatros que, na proximidade geográfica e cultural, assumem também, como o Pax Julia, evocação do estilo arquitetónico “mourisco”, digamos assim mesmo.

 

Desde logo, o Teatro Marques Duque, de Mértola, sala de pequenas dimensões, construída em 1913, restaurada pelos Arquitetos M. Andrade e Manuel Transmontano, hoje com menos de 170 lugares. E o Cine-Teatro Sousa Teles, de Ourique, este praticamente abandonado no princípio do século mas agora recuperado pelas Arquitetas Céu Oliveira Pinto e Luisa Biscaia, lotação de 183 lugares, com uma área e uma função museológica relevante.

 

Mas desses dois teatros falaremos em outra crónica.

 

DUARTE IVO CRUZ

 

 

LONDON LETTERS

 

The Crown, 2016

 

I am a little bit confused! Ergue Cuba contra quem o desconhece, elimina quantos vê como obstáculo, mata quem lhe tenta fugir, tortura opositores e dissidentes, silencia jornalistas ousados.

Alguma direita toma-o como um icónico vilão e alguma esquerda com RH Comrade Jeremy Corbyn incensa-o como “a social justice hero.” Romantizado por uns e vilificado por outros, libertador ou tirano do seu povo, morre o último dos grandes revolucionários marxistas do 20th Century: El comandante Fidel de Castro (1826-2016). — Chérie! Le temp c’est le grand sculpteur. O Governor do Bank of England ultima planos para a reunião de 14-15 December do European Systemic Risk Board. Mr Mark Carney leva consigo propostas de arranjos comuns em torno da Brexit. — Well! In Peace: Goodwill. HM Government lança um Green Paper com medidas para cortar na corporate greed e reequilibrar o pay gap. O republicano Speaker da House of Representatives quer um tratado comercial USA-UK, contrastando com o obamiano back of the queue. Mr Paul Ryan soma ao President-elected Donald J Trump na abertura atlântica. Também Europe se move. A bandeira do free global trade triunfa em France, com Monsieur François Fillon nas primárias da direita, enquanto Italy treme com o referendo constitucional que ameaça o PM Matteo Renzi. A Netflix completa a série The Crown. No mais, call to Brussels: Tell me how much, please!?

 


Cold and bright days
at Central London. À luz da vaporosa consistência da ideological war que acompanha o passamento do Signor Fidel de Castro, do tipo o nosso tirano é melhor que o vosso, mesmo que em linha dinástica de um despotismo no poder, esquecido já o ideal da Sierra Maestra e talvez rumando para uma Cuba Libre lavrada por aleatórias forças em economia de mercado, quase se entenderá a sanha antidemocrática da triádica conjura: Deny, delay, subvert. A manobra de sabotagem do Brexiting está a céu aberto, com cavar das trincheiras. Em contraste com digno silêncio de Sir David Cameron, que na demissão do No. 10 extrai lição dos resultados do voto de 23rd June, surge o antigo PM RH John Major a secundar o ido sucessor RH Tony Blair em pedido de um segundo euroreferendo durante renovada chuva de fumegantes meteoritos estatísticos. Também de Brussels vem peculiar manobra. Mr Guy Verhofstadt, um dos EU Parliament's lead Brexit negotiators, quer que os Britons mantenham a cidadania europeia caso queiram e a paguem. A retórica envolvente é forte: acenam com tocquevilleana “tiranny of majority,” fustigam com a ignorância do eleitorado, acionam as roldanas de transmissão e constituem-se como abrigo para os “political homeless.” Vozes amigas dizem duas palavras a tais protagonismos tardios: “Edwina” e “Chilcot.” Receio, porém, que venha aí dilúvio eleitoral, a marear até a forma da House of Lords. Não dissertando sobre nova consulta escocesa, cabe recordar, com The Right Honourable Edmund Burke (1729-97), que “all that is necessary for the triumph of evil is that good men do nothing.”

 

Mas conversemos de coisas diferentes. Após atraso ditado por hectic days visiono The Crown. Com a certeza de Victoria na ITV mas ainda com o desapontamento da Royal Night Out na retina, eis cauto espectador imparcial face à série televisiva de 10 episódios produzida pela Left Bank Pictures para a Netflix. By the way, where is the BBC?! Criada e escrita por Mr Peter Morgan, o autor teatral de The Queen e The Audience, será nova dramatização sobre os Royals das vésperas da era elizabetheana até ao fecho nos dias do fim de Sir Winston S Churchill em Downing Street. O gelo fragmenta-se aos primeiros acordes de soberbo Herr Hans Florian Zimmer (Madison Gate Records). O senhor cria extasiante tema, quase um hino à Royal House of Windsor, que ressoa na filigrana da coroa como se contido crescendo abrir de mítica flor de lótus. Com ouvidos abertos, sucedem-se familiares tramas da providencial ascensão de HM Elizabeth II. A morte de George VI (Mr Jared Harris) e a sombra do Duke of Windsor (Alex Jennings) nunca perdoado da abdicação, os amores da Princess Margaret (Vanessa Kirby) e o jovem casal Lillibeth e Philip Mountbatten da House of Schleswig-Holstein-Sonderburg-Glücksburg (Claire Foy e Matt Smith). O que se narra interessa ranto quanto aquilo que se apaga. No aprendizado da arte de reinar avulta a figura dominante do Last Lion, protagonizado por um Mr John Lithgow cuja estatura obriga a elevar a altura da porta do 10, mas sobretudo ecoam palavras da Queen Grandmother Elizabeth (Victoria Hamilton): “Monarchy is God's sacred mission to grace and dignify the earth. To give ordinary people an ideal to strive towards, an example of nobility and duty to raise them... Monarchy is a calling from God. That is why you are crowned in an abbey, not a government building. Why you are anointed, not appointed. It is an archbishop that puts the crown on your head, not a minister or public servant. Which means that you are answerable to God in your duty, not the public.”

Últimas palavras para a great party havida em London, na qual lamentavelmente não participei, em dia do mais recente marco no UK Independent Party. Se cabe um cheers a Mr Paul Nuttal como líder hoje eleito dos Ukipppers, sob bandeira da mobilidade social e em missão nortenha de caça ao voto Labour, atenção momentânea para a festa dos 25 anos do partido em pleno Ritz Hotel. RH Nigel Farage MEP é o anfitrião e os relatos são de viva diversão, entre Coronation chicken e English roast beef, regados com Sparkling wine dos vinhedos no Kent de Lord Ashcroft e ainda com Pol Roger – o champagne favorito de Sir Winston, logo guarnecido pelos seus cigars. Declara quem assiste que high spirits acompanham os hurrahs às vitórias do “No” referendário e de Mr DJ Trump nas presidenciais norte americanas… a par dos chocolates Ferrero Rocher. — Wow! Well declares Master Will in The Merry Wives Of Windsor: — Why, sir, for my part I say the gentleman had drunk himself out of his five senses.

 

St James, 28th November 2016

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

  

De 28 de novembro a 4 de dezembro de 2016.

 

«Um Olhar sobre a Pobreza – Vulnerabilidade e exclusão social no Portugal Contemporâneo» (Gradiva, 2008), coordenado por Alfredo Bruto da Costa constitua uma obra fundamental para a compreensão da Pobreza como fenómeno político e social a exigir atenções especiais.

 

POBREZA, FENÓMENO COMPLEXO
Tantas vezes Alfredo Bruto da Costa telefonava ou pedia um encontro para debater uma dúvida, uma iniciativa ou uma ideia. Era extraordinária a sua atenção aos acontecimentos e à necessidade de os refletir serena e profundamente. Relativamente a um dos últimos livros de Amartya Sen («The Idea of Justice», 2009) anotou criteriosamente as suas dúvidas e sentiu-se algo desiludido, uma vez que esperava pistas mais inovadoras, para além do muito que o pensador já tinha dado, e que ele tanto admirava. Como este exemplo poderia dar muitos mais. E falámos longamente da experiência emancipadora de seu pai em Goa no grupo de Margão… Foram muitas horas de gostosa conversa e muitas ideias e iniciativas, algumas das quais ficaram por realizar – apenas adiadas. O que o preocupava era passar das ideias para os atos. Ele era a demonstração de que Emmanuel Mounier tinha razão quando dizia que «o acontecimento é o nosso mestre interior». Se no campo das ideias era extremamente estimulante, o certo é que esteve sempre preocupado com o modo de influenciar a realidade. Daí que muitas das suas preocupações nesses fantásticos diálogos, sempre como se todo o tempo estivesse ao nosso dispor, tivessem a ver com o difícil passo no sentido de melhorar a vida das pessoas concretas, de carne e osso, ignoradas e esquecidas. O seu combate foi sempre contra a indiferença, compreendendo que era mais fácil passar ao largo dos problemas, como se eles não nos dissessem respeito, em vez de os encarar frontalmente. As parábolas do bom samaritano e dos talentos estavam sempre presentes no seu pensamento. Conheci-o melhor na fugaz experiência governativa de Maria de Lourdes Pintasilgo, e depois não deixámos de estar em contacto regular. Não esqueço o seu contributo nos Estados Gerais lançados por António Guterres e saliento a consciência aguda que tinha dos problemas da educação e da formação, em ligação estreita com a criação de condições de justiça para todos – o rendimento mínimo garantido e a educação pré-escolar foram temas em que se empenhou e que refletiu intensamente. E quer no Conselho Económico e Social quer na Comissão de Justiça e Paz fui testemunha de uma ação determinada e muito inteligente no sentido de construir na opinião pública um ambiente de conhecimento e disponibilidade para os difíceis problemas da pobreza. Beneficiei também muito da sua ajuda no tocante ao tema da prevenção da corrupção – que se encontra paredes meias com a justiça social, já que esse flagelo, além de corroer os fundamentos da sociedade, retira meios indispensáveis para a justiça distributiva, para o emprego, para a correção das desigualdades e para o combate à exclusão.

 

DISTINGUIR DA EXCLUSÃO SOCIAL
Sei que a melhor homenagem que lhe posso fazer nesta crónica é relembrar o seu pensamento. Não me perdoaria se não o fizesse. Tantas vezes o ouvi repetir que é preciso clarificar ideias e não confundi-las para que os problemas possam ser solucionados devidamente. O fenómeno da pobreza deve distinguir-se da privação e da exclusão social. Não podemos misturar tudo, uma vez que fazendo-o afastamo-nos do cerne das ações necessárias. Bruto da Costa sempre nos disse, assim, que a pobreza é um grave problema político, a que importa dar atenção. A pobreza é uma situação de privação por falta de recursos, enquanto a privação em geral corresponde a não ter as necessidades básicas garantidas, por falta de recursos ou outra razão – desde a dependência de um vício ou de uma doença até à falta de capacidade para administrar os seus bens. Para cada um dos casos as soluções são muito diferentes. Na pobreza é preciso ajudar as pessoas a ter os meios necessários, na privação é indispensável apoiá-las a fim de que a gestão dos recursos seja melhor assegurada. A pobreza apenas se resolve com autonomia. A cana de pesca é importante, mas pode valer pouco, se não prepararmos as pessoas, de não as formarmos, se não as acompanharmos. A pobreza é uma das formas de exclusão social, mas não a única, há outras – como o isolamento dos idosos, que podem ter recursos materiais e a discriminação social de imigrantes ou deficientes etc..

 

POBREZA E DESEMPREGO
Também o desemprego é um fenómeno diferente do da pobreza, sem dúvida muito grave, mas diverso. Cerca de 40% dos membros das famílias pobres têm emprego e outros 30% recebem pensões de reforma. Ora, quando temos 40% de pobres ativos verifica-se que o problema não é apenas de distribuição, mas de repartição primária de rendimentos. A pobreza é um flagelo que exige políticas económicas – que corrijam as desigualdades. Muitas vezes pergunta-se se devemos ter primeiro crescimento económico para distribuir depois ou se das várias maneiras de crescer e criar riqueza devemos escolher a que assegura à partida uma melhor distribuição. Para Alfredo Bruto da Costa, tem-se demonstrado que a primeira hipótese não acontece – há décadas que se espera pelo dia e a hora em que já crescemos o suficiente para distribuir. Como diz a Constituição Pastoral «Gaudium et Spes» do Concílio Vaticano II: «Para satisfazer as exigências da justiça e da equidade devem fazer-se grandes esforços para que, dentro do respeito dos direitos da pessoa e da índole própria de cada povo, desapareçam, o mais depressa possível, as enormes desigualdades económicas unidas à discriminação individual e social, que ainda hoje existem e frequentemente se agravam» (nº 66). Importa, no fundo, jogar em vários tabuleiros: pôr a tónica no desenvolvimento humano, o que exige agir sobre as instituições, apostar na inovação, apoiar o capital social e humano, cuidar do emprego justo, criar riqueza sustentável e favorecer à partida a melhor distribuição possível. Michael Walzer fala, por isso, na ideia de justiça complexa. Os governos têm responsabilidades especiais, mas importa compreender que há resistências na economia e da sociedade que têm de ser superadas. Não basta, assim, a vontade ou a boa intenção que levam a uma lógica meramente assistencialista. A maior parte das medidas adotadas visa atacar a privação, o que já é bom, porque é um problema urgente, mas é insuficiente. Impõe-se que as políticas de desenvolvimento, de que falam o Padre Lebret e a encíclica «Populorum Progressio», se traduzam não apenas em medidas visando reduzir a privação – o que é positivo – mas em compreender que é a pobreza, ela mesma, com as suas especificidades que tem de ser combatida. O mal não está no que se faz, mas no que fica por fazer… E a grande lição, que continua na ordem do dia, é a de que o planeamento estratégico deve ligar criação de riqueza e de valor, sustentabilidade, disciplina, combate ao desperdício, defesa do meio ambiente e da qualidade de vida, distribuição, repartição e justiça. É o que fica por fazer que nos deve preocupar. Essa a herança e o testemunho de Alfredo Bruto da Costa que não poderemos esquecer!

 


Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

A Coroação de Carlos Magno.jpg

 

   Minha Princesa de mim:

 

   A Regra que governava os Templários teve certamente forte influência de São Bernardo, o ritmo dos dias conventuais era marcado pelas horas canónicas ou ofícios divinos, as celas eram sóbrias, o silêncio era disciplina geral, só a dieta lhes permitia maior consumo de carne: afinal, se frades eram, guerreiros lhes cumpria ser, precisavam de forças... Será difícil para um espírito hodierno entender essa obsoleta figura de monge guerreiro, em que se confundem a vocação religiosa e a militar ou bélica.

 

   As cruzadas devem ser entendidas à luz das sociedades e dos sobressaltos da época: dois séculos depois da queda do Império Romano do Ocidente, ou latino, a Europa debate-se numa barbárie caótica, de que irá procurar sair, sobretudo por força da cristianização dos bárbaros e do labor civilizacional da Igreja. E o surto islâmico irá conquistar e ocupar, não só os territórios africanos e palestinos do Império, mesmo os que sobraram para Bizâncio, como muitos da Ásia Menor, tirados à já Constantinopla e aos Persas. E a Península Ibérica. Sabes, Princesa de mim, como nestes cenários em que a vontade política  - essa afirmação da força do poder temporal e bélico - sobreleva o gosto da paz, tão chão dos povos e dos seus soldados possíveis, e podem ser arrastadas, arrasadas e esquecidas afinidades e pertenças mútuas, amizades e fronteiras aceites de convívio e entendimento...

 

   As Cruzadas, a exemplo da Jihad, foram isso também, mas o que mais me chocou nessa saga foi o orgulhoso afrontamento entre cristãos latinos e gregos... Constantino, dando, em 330, a Bizâncio o nome de Constantinopla, fez dela uma nova Roma, capital do Império. Mas o Império, institucionalizado cristão, guardaria a saudade fundadora do martírio de Pedro na antiga capital-símbolo...

 

   Facto é que o Império Romano do Oriente sobreviveu ao do Ocidente, sendo assim o rei dos reis na terra, o depositário do poder divino da realeza, o imperador bizantino. Mas Pedro, o primeiro papa, instalara-se e fora martirizado em Roma, de que era bispo. Por isso o imperador lhe reconhecia o primado honorífico, e a dado passo chegou mesmo a recorrer à sua arbitragem, sobretudo quando não lhe agradavam ou convinham as sentenças do patriarca bizantino. Por outro lado, não te esqueças de que o próprio São Gregório Magno, grande reformador da Igreja e papa de 590 a 602, se reconhecia, no plano temporal, súbdito do imperador de Constantinopla. Esta circunstância de tensão e animosidade latente - em que a questão da afirmação do poder até no plano religioso, determinou excomunhões mútuas - acabaria por conduzir ao Grande Cismo e, em 1204, à conquista e saque de Constantinopla pelos cruzados do ocidente. 

 

   Todavia, muito embora a coroação, pelo papa de Roma, de Carlos Magno como Imperador tivesse escandalizado o Império Bizantino, este acabara por aceitar que tal dignidade fosse reconhecida aos Carolíngios e, mais tarde, aos Otonianos, ainda que mantivesse a convicção de que, tal como há só um Deus e um só lugar tenente, também o Império é indivisível, pelo que, mesmo tendo o título de Imperador, o do Ocidente não podia ser, como o de Constantinopla, Imperador dos Romanos... Como vês, é sempre a "política".

 

   No plano propriamente religioso, ambas as tradições - romana e bizantina, grega ou latina - professam o Credo dos Apóstolos e comungam no mesmo Corpo de Cristo. Podem divergir em interpretações, calendários e ensino, mas nenhuma é considerada herética pela outra; podem variar formas de culto, línguas e liturgias, mas não esqueças que, no seio da mesma Igreja romana, por exemplo, se celebravam os ofícios divinos de acordo com ritos tão diferentes como o próprio romano, o moçárabe ou o visigótico. Afinal, o cristianismo sempre se deu com aculturações, tal como nunca deixou de sofrer tentações de autoritarismo, de vocação totalitária. Estas explicam o porquê de inquisições e perseguições, sobretudo quando divergências doutrinais pareciam ameaçar determinados processos de consolidação social e política. Há muitas histórias de guelfos e gibelinos, a compita entre papado e império, poder religioso e político, Igreja e Estados foi mudando de forma para permanecer...

 

   O processo dos Templários, a extinção da Ordem pela bula papal Vox in Excelso, bem como a respetiva recuperação pela sucessão atribuída a outras - como a de Cristo em Portugal - é quase vinte anos posterior ao fim da ação dos cavaleiros na Terra Santa, que a perda de São João d´Acre, em 1291 assinala. Resulta da presença templária numa França onde Filipe o Belo afirma o poder real e não gosta da dependência financeira em que a coroa está: na verdade, a Ordem do Templo é então o banqueiro dela. Noutros reinos, como Aragão, Castela e Portugal, o confronto da Reconquista continua e a vizinhança dos muçulmanos magrebinos é um facto. É aí bem diferente a circunstância da milícia templária. 

   Mas tal história fica para próxima carta.

 

       Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Por uma complexidade urbana.

 

'The expression of modern townscape must be found in the beauty of chaos, and not necessarily in that of harmony.', Kazuo Shinohara

 

Kazuo Shinohara escreveu longamente sobre a cidade. E desde sempre manifestou preferência pelo planeamento urbano que se baseia numa estrutura de lotes com pequena dimensão. Shinohara é fascinado pelo crescimento urbano aparentemente irracional, caótico e repentino - pela disposição de casas que apesar de estarem lado a lado nada têm a ver umas com as outras.

 

'There is a certain beauty in districts never intended for (aesthetic) appreciation, while beauty does not exist in modern communities in which individual houses were designed to be beautiful.', Kazuo Shinohara

 

Nesta forma de projetar, Shinohara vê uma possibilidade de trazer vida e complexidade para a cidade de modo a superar, por um lado, o movimento moderno introduzido logo após a Segunda Guerra Mundial e por outro lado, a mega escala repetitiva e inumana das gigantes formas orgânicas, geométricas e mecânicas propostas pelos arquitetos metabolistas, no início dos anos 60.

 

Para os contemporâneos de Shinohara era impensável projetar através de conceitos relacionados com a pequena escala, o caos, a complexidade, a irracionalidade e a arbitrariedade. Na década de sessenta, do séc. XX, o Japão assistiu a um crescimento urbanístico desmedido, associado a um rápido crescimento económico - o país transitou de uma sociedade que recuperava da guerra para outra altamente industrializada. E Shinohara explicita no texto 'Toward a Super-Big Numbers Set City and a Small House Beyond' (Shinohara, 2000) que os arquitetos mais progressistas, por esses anos, lamentavam a falta de conceito urbano nas cidades japonesas existentes e por isso projetavam as suas esperanças em cidades utópicas e infraestruturas colossais. 

 

Foi através da sua formação em matemática, mas também através da  investigação sobre a composição espacial dos edifícios tradicionais japoneses, que Shinohara começou a compreender a cidade como um sistema altamente abstrato determinado por um número infinito de funções urbanas - e este tipo de complexidade nunca tende para uma solução construída totalmente autónoma. Shinohara acredita que a essência da cidade é matemática e não uma expressão meramente formal. É uma entidade extremamente complexa e caótica, constituída por inúmeros elementos de diferentes dimensões em fluxo contínuo.

 

'A certain vibrant physicality and spatial sensibility that one comes across, whether in a crowded street or at some unknown street corner, is the starting point for my personal urban aesthetic of the contemporary city.', Kazuo Shinohara

 

Shinohara deseja criar um complexo sistema espacial que não se baseia simplesmente na zonificação, ordem, racionalidade e unificação, mas que se afirma na beleza do caos profundamente envolvido na tradição japonesa e nos aspetos mais essenciais da vida quotidiana. 

 

A raiz do conceito de anarquia progressiva, que Shinohara introduz, reside na intensificação dos fenómenos de confusão, fragmentação, simultaneidade e turbulência da sociedade contemporânea. A composição bem ordenada das cidades e dos edifícios foi um modelo de beleza dos impérios antigos, dos estados monárquicos e das ditaduras, como afirmação máxima de poder. Shinohara declara assim, que as cidades não devem ser desenhadas, nem controladas. Ao aumento da complexidade, vitalidade e viabilidade deve associar-se uma sucessiva perda de controlo político.

 

O excessivo planeamento urbano que domina a sociedade ocidental contemporânea deve, segundo Shinohara, dar então lugar a um sistema aberto e selvagem, feito de contrastes e desuniões, de modo a permitir a vitalidade das grandes cidades. A cidade deve, deste modo, ser capaz de refletir a beleza da diversidade, que coleciona todas as expressões individuais construídas e que corporificam o dia-a-dia de cada ser humano.

 

Ana Ruepp

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

     Minha Princesa de mim:

 

   Jerusalém, hoje ocupada pelos israelitas, há muito tem sido motivo de afrontamentos e conflitos, objeto de veneração e desejos de posse, como bem sabes. A cidade do Templo judaico é santa, também, para cristãos e muçulmanos, centro de orações, destino de peregrinações. Para os cristãos assim é, intensamente, desde o século IV.

 

   A sua conquista, em 614, pelos persas será anulada pela reconquista do imperador cristão bizantino Heráclio, catorze anos depois. Mas a expansão islâmica, pela jihad, no Médio Oriente e Norte de África, permitiu a sua ocupação pelo islão e veio dificultar, por vezes com violência persecutória, o seu acesso aos peregrinos da cruz. Lembra-te, todavia, de que o califa Omar, que ocupou a Cidade Santa em 637, respeitou a rotunda do Santo Sepulcro de Cristo, tornando Jerusalém santa também para o Islão, até porque Jesus é profeta maior no Corão.

 

   Carlos Magno conseguiu, no século IX, autorização dos califas para as visitas de cristãos peregrinos e, mesmo, para a instalação de mosteiros. Mas o advento do califado Fatimita, que ocupou Jerusalém em 965, estragou tudo, já que o califa Al-Haquim, fanático e perseguidor de judeus e cristãos, destruiu, em 1009, aqueles lugares santos. Seguiu-se um período de exclusão dos cristãos, até 1054, ano em que o imperador bizantino conseguiu um acordo com o califa fatimita da altura, acordo em que, inclusive, se previa a reconstrução da Rotunda. Mas o triunfo dos Turcos Selêucidas voltou a trazer perseguições e a impedir peregrinações, massacrando os participantes. Até que Godofredo de Bulhão, com seus cruzados (a primeira cruzada fora lançada pelo papa Urbano II em 1095), a conquista em 1099.

 

   Nasce então o reino cristão de Jerusalém, que terá de ser defendido. Tal como deverão ser protegidos, no seu caminho para lá, os fiéis cristãos que, tendo atravessado o Mediterrâneo, por terra vão chegar ao Santo Sepulcro. Em 1118, nove nobres cavaleiros francos decidem consagrar as suas vidas a essa tarefa de proteção dos peregrinos e congregam-se numa milícia a que chamam Cavaleiros Pobres de Cristo. Serão, no reinado de Balduíno II de Jerusalém, apelidados Templários ou Cavaleiros do Templo, depois de o rei lhes ter cedido, para residência na Cidade Santa, parte do seu palácio do Templo. Apoiados por São Bernardo de Claraval, o grande reformador cisterciense, distinguiram-se entre as ordens religiosas militares. 

 

   Escreve aquele abade no seu De laude novae militiae (1130):
Os Templários vivem sem nada terem de seu, nem sequer vontade própria. Vestidos com simplicidade e cobertos de poeira, têm o rosto queimado pelos ardores do sol, olhar brioso e severo; quando o combate se aproxima, armam-se de fé por dentro e de ferro por fora; as suas armas são seus únicos ornamentos; delas se servem com coragem no meio dos maiores perigos, sem temerem o número nem a força dos Bárbaros: toda sua confiança está no Senhor Deus dos Exércitos; e combatendo pela Sua causa, procuram uma vitória certa ou uma morte santa e honrosa. Ó feliz modo de vida, no qual se pode esperar a morte sem medo, desejá-la com alegria, recebê-la com segurança!

 

   Não esqueças, Princesa, que os templários cedo desempenharam também um papel reconhecido na reconquista cristã da Península Ibérica, tal como os monges de Cister no povoamento de Portugal, onde os seus grandes mosteiros foram centros promotores da colonização agrícola do território. As terras geridas pelo de Alcobaça, por exemplo, estendiam-se por cerca de 45 mil hectares! E o território confiado à proteção permanente dos Templários cobria, tal como as atribuídas a outras ordens de cavalaria, parte considerável do território nacional em consolidação, situando-se os principais castelos da Ordem do Templo em Tomar, Castelo Branco, Soure e Almourol. A presença dessas ordens militares e suas fortificações na Península Ibérica justifica-se pelas guerras da Reconquista, aliás vistas como cruzadas. Mas - até 1291, quando, a 28 de Maio, cai a cidadela cristã de São João d´Acre - o centro da vida templária era a Palestina, muito embora continuassem em França as suas raízes, e em Paris a sua casa principal, que desde o século XII recolhia depósitos das finanças reais. Aliás, voltarei a falar-te nisto, quando nos debruçarmos sobre a queda em desgraça e extinção da Ordem do Templo...

 

   Por hoje, recorro a La Vie des Templiers (Paris, Gallimard, 1974), de Marion Melville, com vários testemunhos coevos da vida dos cavaleiros em Jerusalém, por me parecer interessante "entrarmos" naquele ambiente:

«Entre as muralhas de Jerusalém e a Porta Dourada encontra-se o Templo. Há aí um espaço mais comprido do que um grande traço de seta, e com a largura de um lançamento de pedra, e daí se chega ao Templo. Esse espaço é lajeado e, passando o seu portal, encontra-se à esquerda o Templo de Salomão, onde moravam os Templários». Do terreiro sobem degraus até à Cúpula do Rochedo, o Templum Domini, onde os cavaleiros passeavam nas horas de lazer. O Templo era uma cidade na cidade, uma fortaleza na fortaleza. «À direita, do lado meridiano, encontra-se o palácio que dizem ter sido construído por Salomão. Nesse palácio ou edifício, vê-se uma cavalariça de tão maravilhosa e grande capacidade, que pode abrigar mais de dois mil cavalos ou mil e quinhentos camelos. Os cavaleiros do Templo têm muitos edifícios atinentes ao palácio, largos e amplos, com uma igreja nova e magnífica, que ainda não estava acabada quando a visitei» [...] O refeitório a que os judeus insistiam em chamar palácio era uma vasta sala abobadada e com colunas. Os muros estavam ornamentados com troféus de armas, desses que os Templários usam para decorar as igrejas: espadas, elmos forrados a damasco, escudos pintados, cotas de malha dourada tomadas ao inimigo. Os escudeiros arrumavam as mesas ao longo das paredes e cobriam-nas de toalhas de pano antes das refeições; os primeiros a chegar sentavam-se de costas para a parede, os outros à frente deles. Só o mestre e o capelão do convento tinham direito a lugares reservados. Juncavam-se as lajes de canas, como em todos os castelos, e apesar da proibição de os Templários caçarem, não faltavam cães deitados debaixo das mesas - e gatos também - sendo proibido dar-lhes os restos destinados aos pobres... Segundo João de Wirtzburg, «a casa do Templo dá esmolas suficientemente grandes aos fiéis de Cristo e aos pobres, mas nem chega ao décimo do que dá o Hospital». Todavia a caridade do Templo era grande e feita com muita cortesia. «E ainda é mandamento da casa que os irmãos, quando são servidos de carne ou de queijo, que cortem a sua peça de tal maneira que chegue para eles e fique a mesma bela e inteira tanto quanto possível... E assim se estipulou para que a peça fosse mais honrosa para ser dada a qualquer pobre envergonhado, e fosse mais honroso para o pobre aceitá-la». 

 

   Poderá soar-nos basto medievo este mandamento, que nos remete para um sentimento de honra eivada de brio. Mas não esqueçamos a sua inspiração cristã, essa boa novidade que foi a afirmação da igualdade intrínseca de todos os seres humanos, pois todos têm a mesma dignidade aos olhos de Deus. E nesse seu fundamental princípio assenta o dever - e a graça - do respeito mútuo, sem o qual não é possível haver caridade. Nem tampouco, dizemos nós hoje, democracia e justiça. Deixo-te, Princesa, a meditar nisto até à próxima carta...

 

     Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

RECORDAR: “lembrar-se, trazer à mente”, de RE-, “de novo”, mais COR, “coração”


A

António Alçada Baptista 

 

PLURALIDADE

 


Voltámos a pousar as palavras no local do seu nascimento. Fez-se um silêncio, e perguntaste

          - Queres ser minha vizinha? Farei o que for possível para que os olhos dos outros não deixem queixas nos teus

Vizinha sou e fui

(asilo e paz. Porta)

Eram sete os palácios brancos e habituámo-nos a deles partir sem nunca dizer adeus.

Não sei se nasci para este destino

(disse)

Pois também acho que deveria ser possível inverter o sentido dos dias

- Eu escolhia ontem e tu o amanhã. E ambos o mesmo ainda assim

E eu, dúvida, a pensar se acaso, os ponteiros do relógio se encurvam no meio dos dias e digo-te

- É que a aprendizagem também se converte no aprendido

(que se não resigna)

a superfície do mistério não existe. Olha-se de dentro das coisas

- Pois. O que interessa não é que a infância retorne. As perguntas não devem despistar

(também as quero com ternura)

-E?

Cada um tem o seu pedaço de tempo, de espaço, de vida. Não se deve viver na vida dos outros. Aliás isso faz confundir as mortes

Fazia frio. Recostei à lareira

e não é preciso ler para aprender

- Não, não é. A prometida razão expõe-se e tu sabes, se sabes que o caminho real passa pelo meio

(quando deixo de te escutar, pareces-me impossível)

Não digas isso. Uma pessoa, às vezes, agarra-se a tudo, até mesmo às contradições

- E o Borges também dizia que o mundo es el segundo término

cuyo primer elemento se há perdido.

 

Teresa Bracinha Vieira

Junho 2007

Cine-Teatro Gardunha

 

RECUPERAÇÃO DE CINETEATROS DOS ANOS 50: O CASO DO FUNDÃO

Ciclicamente, temos aqui referido antigos teatros e cineteatros, datados dos anos 30 a 50 do século passado, desativados, quando não arruinados: mas trazemos também notícia de iniciativas das Câmaras Municipais respetivas, no sentido de restauro e reaproveitamento desses edifícios.

 Importa aliás ter presente que o período foi pródigo, em todo o país, na implantação de cineteatros, muitos deles, aliás, projeto de conceituados arquitetos. Foi uma fase áurea da expansão do espetáculo teatral e cinematográfico pelo “interior”, como na altura se dizia. Mas os tempos obviamente mudaram, e a malha urbana, e as comunicações também. A televisão ajudou: e o resultado de todos estes fatores, no que respeita às artes do espetáculo e aos edifícios respetivos não foi o melhor ao longo da segunda metade do século XX. Antes pelo contrário: só mais recentemente assistimos, em grande parte por mérito do poder local, à recuperação de edifícios de espetáculo.

Neste sentido, é de louvar a iniciativa da Câmara Municipal do Fundão. Pois, tal como noutro lado escrevemos, nos anos 60 do século passado foi demolida uma bela sala oitocentista, integrada no chamado Casino Fundanense. A iconografia da época mostra-nos uma pequena sala à italiana, a certa altura transformada por obras de restauro, com camarotes e pinturas no teto e que retomou atividade em 1915. Mas importa porém referir que “sobreviveu” transformado em sala de espetáculos e mais tarde aproveitado pela Câmara Municipal como Museu Arqueológico.

Entretanto, em 1958, é inaugurado no Fundão o Cine-Teatro Gardunha, o qual na época se singularizou pela tecnologia aplicada na construção em betão pré-esforçado. Mas, já o escrevemos, o que mais se notava era o revestimento em cantaria de granito da região e sobretudo o torreão, a que se acede por uma escadaria a partir do foyer, num conjunto de muito boa qualidade arquitetónica. A lotação desta sala era de cerca de 750 lugares. Funcionou como teatro e como cinema, a partir de certa altura só como cinema: até que encerrou atividade já nos anos 90.

E no entanto, ainda hoje se impõe a singularidade do edifício, dominado por uma torre que se harmoniza com a paisagem e com a malha urbana da cidade.

Precisamente: a Câmara Municipal definiu um programa de recuperação e reabilitação do edifício, preenchendo assim uma lacuna a nível das infraestruturas do Conselho, no que respeita a equipamentos de espetáculo. E nessa componente técnico-artística participa José Manuel Castanheira, que tantas vezes aqui temos citado como arquiteto responsável nas áreas de recuperação de edifícios e espaços de espetáculo.

Importa ter presente que esta geração de cineteatros, além de constituírem, em si mesmos, um equipamento arquitetónico que merece ser preservado, representam uma importante expressão cultural, no ponto de vista de conceção, construção e exploração. Por esse país fora, muitos foram demolidos, muitos estão transformados, muitos abandonados: mas há que os conservar e recuperar. E o Cine-Teatro Gardunha do Fundão merece amplamente o investimento cultural e urbano que a Câmara Municipal está a concretizar.

Outros referiremos ao longo destas crónicas.

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

 

Great Balls of Fire Fun, 2016

 

Totally fun, indeed! RH Edward “Ed” Balls rumava até ao Treasury para desempenhar o cargo de Chancellor of The Exchequer quando o eleitorado lhe mostra cartão vermelho. Um ano depois, entre um livro das memórias políticas e um ensaio académico sobre a independência dos bancos centrais, ei-lo como estrela

em Strictly Come Dancing. E é um épico. — Chérie! La joie de vivre est la chose la plus facile à transmettre. No Labour Party regressa e segue o psicodrama. O Sunday Times anuncia o regresso de RH Tony Blair à vida política para preencher vazio no mercado, dado ver um Prime Minister “lightweight” e “a nutter“ Opposition Leader, coloridos ultrajes que porta-voz hoje nega. He is back to save us, of course! Também a hard Left manobra para deselecionar RH Hilary James Benn de MP por Leeds Central, depois do Comrade Jez Corbyn o despedir de Shadow Foreign Secretary e a House of Commons o eleger como Chair do Exiting the European Union Select Committee. — Hmm! Look to the helm, my good master. Já Mrs Theresa May exorta a comunidade de negócios a que auxilie o HM Government no restauro da erodida confiança no capitalismo. Além Channel, Frau Angela Merkel recandidata-se ao quarto mandato da CDU em Germany e Monsieur François Fillon esmaga nas primárias da direita em France. Italy vive a alta tensão de indefinido referendo constitucional. O US President-elected Donald J Trump apresta a sua administração e confirma a chegada dos hardliners à White House. Um magnífico Mr Andy Murray vence a ATP Tour na London Arena e solidifica o estatuto de World Number 1. Mr Eddie Redmayne apresenta um novo herói para era de winning game changers.

 

 

Freezy days at London, with a very windy coast along the English Channel after the Angus Storm. A temperatura roga à domesticidade quando os Christmas carols & lights recriam o ciclo mágico. E é um gosto colocar visionamentos, audições e leituras mais ou menos em dia, com olhar até para ver como estão as pollinators do tempo que há-vir. Os jornais do Weekend semeiam os sinais. Começa a operação de conquista ideológica no continente. Rome, Paris e Berlin centram radares, com a anti-establishment message de London e de Washington DC ainda ao microscópio. Se Frau Merkel aspira a 16 anos de governo conservador contra todos os populismos na Germanic Europe, após perder sucessivas eleições regionais, Berlin e Vorpommern-Rügen incluídas, interessante é acompanhar o thatcheriano Monsieur Fillon na candidatura ao Palais de l'Élysée quando a Front Nationale de Madame Marine Le Pen lidera as sondagens e faltam 152 dias para as presidenciais. De Italy para o mundo, sobretudo avulta a extensão da misericórdia bem gerida pelo Pope Francis. Por cá, celebrado o 68th happy birthday do Prince Charles of Wales, aguarda-se o Parliamentary big day do RH Philip Hammond. O Chancellor of the Exchequer apresenta o 1st Autumn Statement, revelando o mix de políticas com que o Treasury orienta o ciclo dos Brexit budgets em economia de transição apta para explorar as oportunidades geradas pelo cortar das amarras com o eurobloco. Que o investimento público nas infraestruturas, ciência e na defesa crescem, é segura heresia, havendo até dinheiro para finalmente restaurar o Buckingham Palace. A residência real inicia projeto de “a 10-year phased refurbishment,” cujo custo ascende a £369 million.

 

Cinco meses do “No” popular à European Union e ainda não aceitam quer o resultado, quer a ideia. O lamento e os manejos são tantos que a muitos resta pouca ou nenhuma paciência para escutar as mesmíssimas linhas do Project Fear, mesmo quando Downing Str matiza o Brexit means Brexit. Daí que, tarde ou cedo, fosse expetável um enough is enough ecoado em dó maior. Acontece ontem nas BBC Sunday Politics. “You are the Biggest Liars,” diz o veteraníssimo entrevistador Mr Andrew Neil ao confrontar, em direto, o dirigente da campanha Open Europe com o teor do seu último vídeo contra o Brexiting. Nem avanço no desconcerto de Mr James McGrory, o lobista dos ditos “Remoaners” que foi chefe de gabinete do RH Nick Clegg na coligação governamental. O ponto, porém, é outro e grave. Como seja o perigo que, à direita e à esquerda, estes bad losers constituem para o modelo processual democrático, enquanto escolha pacífica de alternativas políticas. Daí mais valerem as aventuras de a jolly good loser ― Ed B.

 

Como descrever? Não é o elegante Mr Fred Astaire de todo em todo, nem o gracioso Mr Gene Kelly; é sim, por inteiro, Great Ed Balls of Fire. Neste Saturday night, no Ballroom de Blackpool, vemo-lo em energético jive recriando o clássico de Mr Jerry Lee Lewis e o mínimo a dizer é ser never dull, always unpredictable and, really, really, such sport. Acompanhado de Ms Katya Jones, uma versátil bailarina de salão, o outrora chanceler de RH Ed Miliband agrega fãs em voto televisivo e soma já inesperadas nove semanas de competição no concurso da BBC. Há ali algo de irresistível, com agradabilíssimo toque de joie de vivre. Olhar atento descobre-lhe as rotinas em três tempos. Concluímos que nunca entrará no Royal Ballet. Mas ei-lo a a dançar samba, cha-cha-cha, quickstep, salsa, paso doble, mesmo o American smooth ou o Gangnam style. E é hilariante. Aqui como comboy com bandolim, ali como Black Knight contra os dragões a salvar a sua dama, lá e cá teme-se o paso out para logo jovial saltado o salvar em coreografia deveras encantadora. Assim é até possível que vença no bailarico. Só receio sobejo se qualificar o seu dancing como tal. Sabereis que o senhor é um pouco para o anafado, do tipo dorna na metade, not light in his feet. Seja como seja, com aquele sorriso e bonomia, a audiência delira a cada passo mais arriscado e tudo é great fun. Por mim, penso-o uma inspiração como a kind of the best worse dancer ever. Donde: Go, Ed & Katya!

 

Fantastic Beasts and Where to Find Them apresenta nos cinemas em volta a proposta de Mrs J.K Rowling precisamente para novo herói. Chama-se Newt Scamander, aparece transmutado na tela do Barbican pelo oscarizado Mr Eddie Redmayne (The Theory of Everything) e tem estória para encantar os fãs de Harry Potter. O filme recua à New York de 1926, em fundos cromáticos, retoma o imaginário do livro de 2001 entre magos e malas, possuindo quer a mão de mestre do HP Diretor Mr David Yates, quer um ministério da magia e cinco categorias de mostrengos. Com o magizoologist Newt e a sua Tina, Ms Katherine Waterston (Steve Jobs), surge galeria de personagens com pertença a diferentes casas-mãe e inventivas forma e tipologia de prodígios em volta – desde o superior indomesticável e letal ao alto perigoso, a tratar com meditado cuidado, do mediano competente nos talentos aos miúdos inofensivo e até enfadonho. JKR vaticina na premiere em London mais um anel de sortilégio e o conjunto tem já agendada pentagrama série pela Warner Bros. — Ho-ho! As Master Will hits in his Sonnet 114, be guarded with some of the lights: — Or whether doth my mind, being crown'd with you, / Drink up the monarch's plague, this flattery? / Or whether shall I say, mine eye saith true, / And that your love taught it this alchemy, / To make of monsters and things indigest / Such cherubins as your sweet self resemble, / Creating every bad a perfect best, As fast as objects to his beams assemble? / O,'tis the first; 'tis flattery in my seeing, / And my great mind most kingly drinks it up: / Mine eye well knows what with his gust is 'greeing, / And to his palate doth prepare the cup: / If it be poison'd, 'tis the lesser sin  / That mine eye loves it and doth first begin.

 

 

St James, 21th November 2016
Very sincerely yours,
V.

 

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 21 a 27 de novembro de 2016.

Acaba de ser publicado o «Novo Atlas da Língua Portuguesa» de Luís Antero Reto, Fernando Luís Machado e José Paulo Esperança (ISCTE-IUL – Instituto Camões, 2016) – onde se procede a um levantamento circunstanciado de elementos sobre a presença da língua portuguesa no mundo.

 

A INFLUÊNCIA DA LÍNGUA
A língua portuguesa é a terceira língua europeia mais falada no mundo, o idioma mais usado no hemisfério sul, uma das cinco línguas que já tem e terá maior utilização mundial no próximo século, com especial destaque para a internet e redes sociais, havendo provavelmente neste momento 200 mil estudantes que aprendem o português como língua estrangeira em sete dezenas de países… Mas todos estes elementos obrigam a que haja um especial cuidado na partilha de responsabilidades relativamente a uma realidade cultural complexa, com expressão em todos continentes e com uma diversidade notável. Como salienta o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva: além do mais, «o português é uma das línguas mais dinâmicas do mundo. Quer isto dizer que é das que proporcionalmente mais verá crescer o número dos seus falantes e mais verá alterar-se a sua geografia. Os dados mais relevantes, a este propósito, são os seguintes. Por um lado, estima-se que dos atuais 261 milhões de falantes, o português passe a contar com perto de 390 milhões, em meados do século, e uns 487 milhões no seu fim, Por cada falante atual, haverá, portanto, nessa altura 1,9. Além disso, se hoje a larguíssima maioria dos falantes da nossa língua reside no Brasil (são mesmo quatro quintos), prevê-se que no fim do século XXI, o número dos que a usarão em África será superior ao da América Latina, mudando assim qualitativamente a geografia e, em consequência, a variedade maioritária do português»… E assim a chamada «lusofonia» evoluirá num sentido da maior diversidade e de um nítido policentrismo. Estamos perante uma partilha e um condomínio da língua portuguesa – no que inequivocamente é uma língua de várias culturas e uma cultura de várias línguas. E as projeções realizadas apenas confirmam esta tendência. Se falamos desta expansão nos países onde a língua é oficial, não podemos esquecer os inúmeros países onde se desenvolve a diáspora portuguesa – para além da crescente importância das iniciativas económicas nos espaços onde se fala português, para além da importância cultural dos nossos escritores, artistas, músicos e criadores. No Japão, na Malásia ou na Indonésia, com a declaração do Fado como património universal pela UNESCO, houve um crescimento significativo do número dos estudantes de português moderno, muitos dos quais descendiam de falantes da língua franca do século XVI, o «papiar cristão». Como ainda refere o Ministro dos Negócios Estrangeiros, não falamos de uma realidade uniforme, propriedade de quem quer que seja. «Ela não é a “língua dos portugueses”, mesmo que sob a forma travestida de uma noção de lusofonia a que sub-repticiamente se atribuísse tal conteúdo normativo: ou a língua que, por já “ter sido” dos portugueses, seria responsabilidade primária deles acarinhar».

 

REALIDADE POLICENTRICA
Estamos perante uma realidade plurifacetada, policêntrica e pluricontinental. E é fácil de perceber que a evolução geográfica, as alterações no mundo global e as novas tecnologias de informação e comunicação irão favorecer uma língua plural e rica, não padronizada, definindo uma identidade de muitas diferenças e complementaridades. Como já hoje acontece nos meios mais lúcidos e cultos a diversidade e o intercâmbio só favorecem o enriquecimento mútuo. Lembremo-nos de que nas últimas décadas o falar do Portugal europeu já sofreu uma nítida influência dos retornados de África, dos emigrantes regressados à pátria, dos imigrantes brasileiros, cabo-verdianos e de outras origens no mundo onde se fala a língua portuguesa. E nesse ponto, estamos perante um sério desafio que corresponde à necessidade de ensinar a língua portuguesa como hoje se fala e se escreve, para que não sejam cometidos erros graves de sintaxe e para que o enriquecimento vocabular seja enriquecido, além de que se deverá avançar de modo partilhado, em especial com o Brasil, na elaboração de vocabulários científicos e técnicos, que favoreçam o rigor e a clareza na comunicação. O fazermo-nos entender com clareza e correção não é tarefa de gramáticos, mas de cidadãos empenhados em fazer-se entender sem equívocos ou ambiguidades. Não basta, pois, dizer que a língua portuguesa é uma das mais faladas, em todos os continentes e com inequívoco potencial económico. Há muitas resistências, dificuldades, complexos, inércias. Por isso, importa desenvolver ações de promoção coordenada e articulada da língua portuguesa. E nesse particular, falamos do apoio à formação de professores de português; da existência de uma rede transnacional de ensino do português como língua de herança na diáspora; da integração do português como língua estrangeira; no desenvolvimento de uma rede de cátedras, leitorados ou centros de língua e cultura; da oferta de cursos de português para ir ao encontro das necessidades das relações internacionais e do comércio; da promoção do português como língua internacional nas principais organizações mundiais; do desenvolvimento da cooperação entre países de língua portuguesa; da internacionalização da língua e da cultura, designadamente nas instituições de ensino superior, científicas e académicas; bem como da estruturação da ação cultural externa, com a presença dos nossos artistas e criadores, das indústrias criativas. Tudo isto deve culminar num reforço da cooperação entre instituições oficiais e da sociedade civil nos diferentes Estados que usem a língua portuguesa, de modo que a língua viva, se torne presente e atuante – como fator de desenvolvimento e de paz. Os dez capítulos de Atlas tratam da História e do Futuro da língua; da sua demografia e geografia; no ensino do português no mundo; da posição geoestratégica e da expressão económica dos países de língua portuguesa; do português como língua de negócios; da língua e da mobilidade; do património comum – desde a unidade à diversidade; da cultura, artes e ciência; das personalidades dos países de língua portuguesa e da língua portuguesa na Net. Há assim grande cópia de informação que deve ser lida com um grande rigor, já que estamos perante um pano de fundo, que não pode nem deve ser lido numa perspetiva paternalista ou triunfalista. Somos um país médio como responsabilidades exigentes ditadas pela história e pela projeção mundial da nossa língua e das nossas culturas, daí que necessitemos de uma estratégia inteligente capaz de mobilizar o máximo de esforços que for possível, favorecendo as complementaridades. Com compreensão do mundo, trata-se de fazer com que o bem comum seja um fator ativo de desenvolvimento humano.     

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

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