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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

  

   Minha Princesa de mim:

 

   A cabeça degolada de João Baptista, ninguém sabe, ao certo, onde está. Mas há muitas por aí, as relíquias são, umas mais, outras menos, como quadros de grandes mestres e seus falsários: a ânsia de as possuir relega para secundário plano a elementar prudência de as verificar. Seja como for, o facto dessa devoção ser muito antiga e, hoje ainda, se estender do oriente ao ocidente cristão - todas as igrejas celebram, além da festa do nascimento do santo (a 24 de Julho) o martírio da sua decapitação (em 29 de Agosto do calendário gregoriano nas católica, anglicana e luterana, ou do calendário juliano nas igrejas orientais) - diz muito sobre a importância de São João na vida e revelação de Jesus e na memória e no culto do cristianismo. 

 

   Mais adiante te contarei o registo de frei Tiago Voragino, a que eu tanto gosto de recorrer, por considerar que é uma bela súmula das devoções cristãs tradicionais, desde a Igreja dos primórdios às vésperas da Renascença... Por enquanto, apenas recordo que, em 29 de Agosto de 2012, o papa Bento XVI celebrava, numa audiência em Castel Gandolfo, a 2ª descoberta (no século V?) da cabeça do santo, então finalmente levada para Constantinopla (?), finalmente depositada na basílica romana de São Silvestre (San Silvestro in Capite), onde se encontra exposta à veneração dos fiéis. Conta-se que a primeira descoberta se dera no século IV, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, onde Santa Joana a enterrara, para a conservar, depois de a retirar do esterco em que a própria Herodíade, a companheira adúltera de Herodes Antipas, a pusera. Se era a mesma cabeça, ou a que se expõe na catedral de Amiens, ou na Residenz de Munique, ou noutras paragens ainda, não sei. Concluo apenas que é extensa a respetiva devoção, aliás muitas vezes efabulada e cabalizada, como em lendas acerca dos Templários, ou simplesmente inventada, como no caso dos chamados cátaros que, na verdade, tinham horror à tradição joanista do batismo por imersão ou simplesmente pela água. Para esses hereges - em seu tempo chamados Bons Homens e Boas Mulheres, praticantes de uma espiritualidade despojada e ascética, possivelmente de origem gnóstica - o batismo cristão já não é na água, mas em espírito, tal como, aliás, o próprio João ensinava quando se referia a Jesus Cristo dizendo "só vos batizo em água, mas no meio de vós está Aquele que batiza em espírito". Os cátaros praticavam tal batismo, por imposição das mãos, como já relatavam os registos apostólicos.

 

   Mas outra figura surge e se destaca, a par e em contraponto a João Baptista. Trata-se de Salomé, a filha de Herodíade, dançarina feiticeira que, em nome de sua mãe, pede a Herodes, para prémio do encanto do seu bailado, a cabeça do primo de Jesus. Por  agora, surge-me a lembrança da ópera Salomé, de Richard Strauss, que, nos anos 90, vi em Savonlinna, no nordeste da Finlândia, no interior de um poderoso e austero castelo medievo. Impressionante! O libreto, como sabes, Princesa, é de Hedwig Lachmann, mas praticamente uma tradução da peça Salomé do Oscar Wilde, escrita em Paris (1891), curiosamente, em francês. O dramaturgo irlandês queixava-se da docilidade obediente de Salomé a sua mãe, como parece resultar do texto evangélico. Para ele, a bailadeira melhor incarnaria outra coisa, bem longe da inocência: Por causa disso, acumularam-se e depuseram-se a seus pés, durante séculos, sonhos e visões, ajudando a fazer dela a flor cardeal de um jardim de perversão.

 

   Tenho diante dos olhos imagens de pinturas de Filippo Lippi e Peter Paul Rubens representando a festa de aniversário de Herodes e Salomé levando ao rei a cabeça do Baptista, numa salva. Na cena da decapitação, por Caravaggio, o prato é seguro por uma criada, uma velhota leva desesperadamente as mãos à cabeça, o quadro é violento e sinistro. Como também o de Hans Memling, em que o degolador põe, na bandeja segura por uma Salomé silenciosa e fria, a cabeça que acaba de cortar. A mesma repousa num prato de pé alto, belíssima e serena, no Andrea Solario, de 1507, que está no Louvre. Este diz-nos bem como as muitas lendas e narrativas acerca dos caminhos que aquela cabeça foi percorrendo levaram a que ela fosse vezes sem conta representada com fins devocionais.

 

   Mas voltando à Salomé de Wilde e de Strauss, essa parece inspirar-se mais num texto de Joris-Karl Huysmans em À Rebours, inspirado na visão de Gustave Moreau, exposta em duas telas, em 1876: Salomé dansant devant Hérode e L´Apparition. Escreve Huysmans que ela lhe surgiu qual divindade simbólica da indestrutível Luxúria, deusa da imortal Histeria, Beleza maldita, eleita entre todas pela catalepsia que lhe enrijece as carnes e endurece os músculos. E, como aparição: Aqui, ela era mesmo rapariga; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia, mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais requintada; despertava com mais energia os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domesticava mais seguramente as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em canteiros sacrílegos, criada em estufas ímpias.

 

   Certo mesmo é que o tema escandalizou muita gente: Guilherme II, o imperador da Alemanha, lamentou que Strauss tivesse musicado um Wilde que já indignara Lord Chamberlain. E Sir Thomas Beecham, o maestro que dirigiu a estreia da ópera em Covent Garden, confessa em A Mingled Chime, sua autobiografia: A mais extrema e derradeira concessão que conseguimos, foi que Salomé cantasse diante de uma bandeja totalmente coberta por um véu, mas sem que ali se pudesse pôr qualquer objeto, por pequeno que fosse, pois indiciaria, pela protuberância, a presença da preciosa cabeça. Todavia, o mal-estar causado pelos paradoxos que Wilde levanta é interior, perturba muito mais do que a eventualidade de Salomé estar praticamente nua quando dança, e vi-a assim em Savonlinna. No final da ópera, percebemos que a feiticeira foi vencida pela derrota dos seus próprios trunfos, os seus encantos não submeteram Jochanaan (o nome do Baptista na peça). Agarra-lhe a cabeça cortada, e exclama: Ah! Du woltest mich nicht deinen Mund küssen lassen, JochanaanNão quiseste deixar-me beijar-te a boca! Pois bem: beijá-la-ei agora, mordê-la-ei como se trinca um fruto maduro [...] Mas porque não olhas para mim, Jochanaan? Creio que, em carta muito antiga, já te contei, Princesa, essa cena final da ópera de Strauss: Que farei agora? Nem os rios, nem as grandes águas, podem estancar-me a paixão. Porque é que não olhaste para mim? Se tivesses olhado tinhas-me amado. Eu sei que me terias amado, o mistério do amor é maior do que o da morte... Herodes dirá então a Herodíade: A tua filha é um monstro, digo-te eu, ela é um monstro! E quando Salomé insiste, e à cabeça inerte repete: Ah! Beijei-te a boca. Os teus lábios tinham sabor amargo, será o gosto do sangue? Não! Talvez seja o gosto do amor, diz-se que o amor tem sabor acre [...] Herodes gritará aos seus soldados: Man töte dieses Weib! Matem esta mulher! E eles esmagam-na com seus escudos. Cai o pano. E frei Tiago Voragino ficará para a próxima carta.

 

   Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira