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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

   

   Minha Princesa de mim:

 

   Nestes últimos anos, multiplicaram-se as publicações, largamente sustentadas, do simples escrito à rádio, tv e cinema, de novelas, discursos e especulações pretensamente históricas ou científicas, com o propósito de abalar, ou mesmo arrasar, a fidedignidade de escritos antigos, de tradições e de crenças que, durante séculos, vêm alimentando a vida espiritual - e a religiosa - de milhões de pessoas nas suas culturas. Pensa, Princesa de mim, por exemplo, em The Da Vinci Code, do Dan Brown, que, curiosamente, na sua primeira edição (Doubleday, New York, 2003) ostentava o subtítulo A Novel - o que honestamente o situava no campo da ficção literária, a que pertence - e posteriormente foi sendo editado sem essa designação, assim se confundindo com possível investigação ou mesmo descoberta histórica. Isto dito, até sinto alguma simpatia pelo divertimento do Dan Brown, bem longe da parvoíce saloia de quem lhe copiou as receitas de enredos e lucros... A base dessa novela encontra-se numa obra de três autores - Michael Bagent, Richard Leigh e Henry Lincoln - intitulada Holy Blood, Holy Grail (New York, Delacorte Press, 1982) que especulativamente, e sem qualquer argumentação histórica ou hermenêutica consistente, pretendia demonstrar que Jesus se casara com a Madalena e dela tivera descendência. Tais relatos são aliás constantes de lendas várias, relacionadas com o Santo Graal, os Templários, os Cátaros e os Merovíngios, todas hoje comprovadamente meras ficções. A talho de fouce, observo ainda que  Bagent e Leigh - nomes que, aliás, vão "batizar" a personagem Leigh Teabing do Da Vinci Code, Teabing sendo um anagrama de Bagent - dois dos autores de Holy Blood... moveram uma ação judicial contra Dan Brown, por plágio daquela teoria nupcial, causa que perderam porque o tribunal entendeu que a novela apenas ficcionava a tese deles. Se bem me lembro, tal ideia teria origem no apócrifo Evangelho de Filipe, e mesmo deste só poderia deduzir-se o casamento com prole exorbitando uma ténue referência a um beijo... Por mim, antes ponho Maria Madalena, primeira testemunha da Ressurreição de Cristo, como conta o Evangelho de São João, em apóstola destacada entre os apóstolos, lugar que o papa Francisco insistiu em sinalizar... E volto a confessar-te, Princesa, que até gosto de ler apócrifos cristãos: afinal, são registos de crenças a devoções antigas, disseminadas num universo de gentes e padrões culturais vários, em tempos de comunicações difíceis, demoradas e aleatórias... E mais acho, curioso, que, apesar de tudo isso, frequentemente os escritos apócrifos não divergem muito, até corroboram e reiteram os textos canónicos. Sinal de que a pregação e o entendimento geral da fé cristã era, ainda assim, bastante regular e credível. Mesmo em textos dissonantes, ou simplesmente não sinópticos, a Igreja acabou por encontrar imagens e ensinamentos que a tradição da devoção cristã "canonizou"... Por acaso, até nem surgiu nenhuma Salomé esmagada entre escudos de guardas de Herodes - como na ópera...

 

   Ultimamente, parece que se generalizou a ideia de que factos históricos credíveis só se encontram em escritos apócrifos, tais como o chamado Evangelho de Judas, cuja descoberta, em 2006, levou mesmo um popular jornal londrino, de larga tiragem, a proclamá-la the greatest archeological discovery of all time, documento que, de uma assentada, ameaçava [desautorizava] 2000 anos de ensino cristão. Mas como pode comparar-se tal escrito, entre outros apócrifos, com os evangelhos canónicos, isto é, aqueles que a Igreja - através de longo e elaborado processo de consulta dos testemunhos e ensinamentos correntes nas muitas comunidades de cristãos, e de decisões conciliares - reteve como memórias fidedignas da vida e da mensagem de Jesus Cristo? Serão eles contemporâneos? Será o apócrifo Evangelho de Judas anterior aos canónicos e, por tal maior proximidade das origens, mais digno de fé? Lamentavelmente, para qualquer obcecado com a prova "evidente" de que, por misteriosa propensão ao poder discricionário e ao autoritarismo, a Igreja primitiva escamoteou textos originais e impôs ideias, construções falsas, veja-se o Evangelho de Judas é que é um documento tardio, provavelmente produzido no seio de uma seita marginal que, como várias outras, quiçá pelo afastamento daquela comunhão das comunidades cristãs na nascente Igreja católica, isto é, universal e abrangente, iam pretendendo que só a versão sua (delas) estaria certa, e por isso tomavam outra opção (que, em grego, se diz heresia). Na realidade histórica, desde os primórdios foram aparecendo várias e diversas interpretações das escrituras e dos ensinamentos cristãos, a tal ponto, Princesa, que se pode dizer que o próprio islão nasceu do judio-cristianismo. Mas Alcorão não é texto canónico da Igreja cristã, tal como os escritos apócrifos não foram referendados pelo sentimento religioso da maioria conciliar das comunidades cristãs.

 

   E vem a calhar aqui uma referência ao anglicano livro Heresy, de Alistair McGrath, professor em Oxford e, anteriormente, no King´s College de Londres e em Cambridge, que, a dado passo, escreve (traduzo): O Evangelho de Judas retrata Jesus de Nazaré como guru espiritual, semelhante aos mestres Gnósticos do segundo e terceiro séculos, com ainda pouca relação com o retrato de Jesus constante dos Evangelhos sinópticos. O Cristianismo torna-se assim num culto de mistério baseado numa imensa burocracia que governa o cosmos, que o tal Jesus vai explicando, em requintado e desassossegado pormenor, a Judas. É difícil evitar a conclusão de que Jesus de Nazaré foi reinventado como mestre Gnóstico, com ideias Gnósticas. O Evangelho de Judas tem, na verdade, o potencial de iluminar o nosso entendimento do Gnosticismo dos meados do século II e depois, especialmente, a sua já apontada relação parasita com visões do mundo então existentes. Mas parece nada ter, que seja historicamente credível, para nos dizer acerca das origens do Cristianismo ou da identidade de Jesus de Nazaré. E não é, certamente, uma significativa "ameaça" ao Cristianismo tradicional.   


   Finalmente, penso eu, Princesa de mim, a questão importante não é saber se tanto disparate "ameaça", ou não, a tradição da crença. Antes será, assim sinto, surpreender uma moda do espírito contemporâneo, essa de que é "brilhante", isto é, "inteligente", contestar ou pôr em causa algo e tudo o que recebemos como herança cultural - não por qualquer pertinente razão que justifique um inquérito, um esclarecimento, mas só por pensarmos que, afinal, alguém tentou enganar-nos durante séculos. Não medimos, então, até que ponto, afinal, é de nós próprios que já duvidamos... Pois, gostemos ou não, sermos hoje é reconhecermo-nos também no nosso passado, isto é, na nossa vida antes de nós. Lembra-te, Princesa de mim, de como já outras culturas marcam pontos sobre a nossa, só por queridamente invocarem a sua própria tradição. Com esta triste mania de sermos "espertos", vamo-nos esvaziando...

 

   Não defendo, Princesa, sabe-lo bem, qualquer cultura estática, sem aggiornamento. A nossa herança tem de ser vivida no tempo e no modo das nossas vidas. Se soubermos fazê-lo, além de autênticos, verdadeiramente, seremos um salutar desafio para os que, noutras culturas, teimam em manter e impor qualquer status quo. O vero-bem-belo não é relativo, mas só existe na relatividade do tempo. Por isso, muito e também, entender o passado não é, não pode ser, entregarmo-nos a fantasias. E fica para outra carta o que te queria traduzir do frei Tiago Voragino. Homem notável, tão só por ser, no século XIII, alguém que recolheu e registou contos e lendas de tempos antigos, sempre procurando entendê-los sem batota...

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira