CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Venho a escrever-te cartas afinal respeitantes à nossa experiência de uma "aventureira" visita aos monumentos dos Templários em Tomar. Sai-me tudo de lembranças que tenho e guardo, mas vou sempre procurando encontrá-las também em escritos pertinentes a outras memórias, que sustenham e sustentem as minhas. Assim me funcionou, desde há muito, o espírito: não tem relação com a realidade, que não passe pela memória. Terei de me explicar melhor - se o conseguir - sobre o que aqui quis e acabo de dizer. E do meu receio tão íntimo: será que a nossa cultura hodierna - a do esquecimento por desenfreado apego à novidade - poderá acabar connosco? Isto é: estará cada um de nós condenado a desaparecer, ou seja, a olvidar-se, a já não saber situar-se, só por ignorar o passado e ser projetado no que acaba de se inventar na história e que nunca aconteceu, e apenas calha agora imaginarmos... Estaremos, dia a dia, a criar notícias que pareçam factos? A consciência do nosso passado - ou, simplesmente, da representação dele que nos foi transmitida - também nos constitui, na cultura onde nascemos. Dá-me, por vezes, amargo riso, Princesa, ver como tanto se desautorizam tradições antigas que, se bem lidas, podem ser documentos úteis ao nosso entendimento da vida e da cultura dos nossos tempos idos e do nosso atual, e em vez delas, sofregamente se devoram narrativas sem qualquer fundamento além da sua própria fantasia, nem outro objetivo além da sua pretensão, pseudocientífica, a baralhar, confundir e destruir memórias. Pode haver passado e passado, isto é, factos ocorridos e narrativas da sua tradição. Mas estas também são passado nosso, são a nossa cultura, aquilo que os nossos antepassados, em gerações sucessivas, nos foram transmitindo. São parte do ar que respiramos. Não te quero dizer com isto que abandonemos a investigação histórica e arqueológica, isto é, a busca do apuramento possível das realidades factuais que sustentaram aquelas narrativas. Antes pelo contrário, tal demanda ajudar-nos-á a entender melhor o significado, sentido e mensagem, das tradições acolhidas. E, quiçá, a separar, na nossa cultura, o trigo do joio, ou seja, a bondade do preconceito. Recebemos uma história, que também é uma certa visão do mundo. Podemos e devemos interrogá-la, procurar-lhe os fundamentos. Mas não podemos rescrevê-la ao sabor dos nossos desejos ou fantasias.
Não se inventa a história, o passado é incorrigível. Podemos, quando muito, procurar conhecê-lo e reconhecê-lo melhor, mas não temos o direito - penso eu, com o coração, Princesa -de pôr lá o que lá não esteve. Quem, através de exercícios pretensiosamente cabalísticos, sem qualquer análise nem fundamentação, pretende substituir trabalho sério por invenção leviana, antes pensasse em escrever só pura ficção, dessa que pode ser romanesca, policial, política ou "científica". Divertir e fantasiar não é crime nem maldade, muito pelo contrário. E até pode ser uma forma de nos interrogarmos sobre o sentido e saúde mental do que, por aí, com muita distração, se vai pensando acerca da vida e do mundo, de nacionalismo, democracia, economia e justiça, por exemplo. Aliás, curiosamente, essas novelas, escritas e filmadas, que se multiplicam na suposta "revelação" de segredos e escândalos, talvez não passem, também, de manifestações da corrente idolatria do dinheiro e da fama: vendem-se...
Mas enfim, Princesa, isto talvez seja rezinga de velho relho, está despachado o desabafo. Por feitio, ou por ter chegado a idade menos paciente para certos arroubos, borbulho com o frenesi dos que, com pouco trabalho e nenhum estudo, proclamam verdades secretas, sensacionais descobertas e novidades. Tal como - várias vezes te lo disse - embirro com os chamados (erradamente, penso) fundamentalismos, na medida em que se definem por uma obsessão com os limites de um campo de consciência. Porque, afinal, me faz pena que uma geração não saiba usufruir de uma imensa riqueza cultural, saborear as diversas versões de factos históricos, ideias concordantes e discordantes, debates e discussões, toda uma procissão de gentes como nós que se puseram em busca, e nos deixaram sinais na estrada...
E por aqui me fico hoje.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira