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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

     Minha Princesa de mim:

 

   Jerusalém, hoje ocupada pelos israelitas, há muito tem sido motivo de afrontamentos e conflitos, objeto de veneração e desejos de posse, como bem sabes. A cidade do Templo judaico é santa, também, para cristãos e muçulmanos, centro de orações, destino de peregrinações. Para os cristãos assim é, intensamente, desde o século IV.

 

   A sua conquista, em 614, pelos persas será anulada pela reconquista do imperador cristão bizantino Heráclio, catorze anos depois. Mas a expansão islâmica, pela jihad, no Médio Oriente e Norte de África, permitiu a sua ocupação pelo islão e veio dificultar, por vezes com violência persecutória, o seu acesso aos peregrinos da cruz. Lembra-te, todavia, de que o califa Omar, que ocupou a Cidade Santa em 637, respeitou a rotunda do Santo Sepulcro de Cristo, tornando Jerusalém santa também para o Islão, até porque Jesus é profeta maior no Corão.

 

   Carlos Magno conseguiu, no século IX, autorização dos califas para as visitas de cristãos peregrinos e, mesmo, para a instalação de mosteiros. Mas o advento do califado Fatimita, que ocupou Jerusalém em 965, estragou tudo, já que o califa Al-Haquim, fanático e perseguidor de judeus e cristãos, destruiu, em 1009, aqueles lugares santos. Seguiu-se um período de exclusão dos cristãos, até 1054, ano em que o imperador bizantino conseguiu um acordo com o califa fatimita da altura, acordo em que, inclusive, se previa a reconstrução da Rotunda. Mas o triunfo dos Turcos Selêucidas voltou a trazer perseguições e a impedir peregrinações, massacrando os participantes. Até que Godofredo de Bulhão, com seus cruzados (a primeira cruzada fora lançada pelo papa Urbano II em 1095), a conquista em 1099.

 

   Nasce então o reino cristão de Jerusalém, que terá de ser defendido. Tal como deverão ser protegidos, no seu caminho para lá, os fiéis cristãos que, tendo atravessado o Mediterrâneo, por terra vão chegar ao Santo Sepulcro. Em 1118, nove nobres cavaleiros francos decidem consagrar as suas vidas a essa tarefa de proteção dos peregrinos e congregam-se numa milícia a que chamam Cavaleiros Pobres de Cristo. Serão, no reinado de Balduíno II de Jerusalém, apelidados Templários ou Cavaleiros do Templo, depois de o rei lhes ter cedido, para residência na Cidade Santa, parte do seu palácio do Templo. Apoiados por São Bernardo de Claraval, o grande reformador cisterciense, distinguiram-se entre as ordens religiosas militares. 

 

   Escreve aquele abade no seu De laude novae militiae (1130):
Os Templários vivem sem nada terem de seu, nem sequer vontade própria. Vestidos com simplicidade e cobertos de poeira, têm o rosto queimado pelos ardores do sol, olhar brioso e severo; quando o combate se aproxima, armam-se de fé por dentro e de ferro por fora; as suas armas são seus únicos ornamentos; delas se servem com coragem no meio dos maiores perigos, sem temerem o número nem a força dos Bárbaros: toda sua confiança está no Senhor Deus dos Exércitos; e combatendo pela Sua causa, procuram uma vitória certa ou uma morte santa e honrosa. Ó feliz modo de vida, no qual se pode esperar a morte sem medo, desejá-la com alegria, recebê-la com segurança!

 

   Não esqueças, Princesa, que os templários cedo desempenharam também um papel reconhecido na reconquista cristã da Península Ibérica, tal como os monges de Cister no povoamento de Portugal, onde os seus grandes mosteiros foram centros promotores da colonização agrícola do território. As terras geridas pelo de Alcobaça, por exemplo, estendiam-se por cerca de 45 mil hectares! E o território confiado à proteção permanente dos Templários cobria, tal como as atribuídas a outras ordens de cavalaria, parte considerável do território nacional em consolidação, situando-se os principais castelos da Ordem do Templo em Tomar, Castelo Branco, Soure e Almourol. A presença dessas ordens militares e suas fortificações na Península Ibérica justifica-se pelas guerras da Reconquista, aliás vistas como cruzadas. Mas - até 1291, quando, a 28 de Maio, cai a cidadela cristã de São João d´Acre - o centro da vida templária era a Palestina, muito embora continuassem em França as suas raízes, e em Paris a sua casa principal, que desde o século XII recolhia depósitos das finanças reais. Aliás, voltarei a falar-te nisto, quando nos debruçarmos sobre a queda em desgraça e extinção da Ordem do Templo...

 

   Por hoje, recorro a La Vie des Templiers (Paris, Gallimard, 1974), de Marion Melville, com vários testemunhos coevos da vida dos cavaleiros em Jerusalém, por me parecer interessante "entrarmos" naquele ambiente:

«Entre as muralhas de Jerusalém e a Porta Dourada encontra-se o Templo. Há aí um espaço mais comprido do que um grande traço de seta, e com a largura de um lançamento de pedra, e daí se chega ao Templo. Esse espaço é lajeado e, passando o seu portal, encontra-se à esquerda o Templo de Salomão, onde moravam os Templários». Do terreiro sobem degraus até à Cúpula do Rochedo, o Templum Domini, onde os cavaleiros passeavam nas horas de lazer. O Templo era uma cidade na cidade, uma fortaleza na fortaleza. «À direita, do lado meridiano, encontra-se o palácio que dizem ter sido construído por Salomão. Nesse palácio ou edifício, vê-se uma cavalariça de tão maravilhosa e grande capacidade, que pode abrigar mais de dois mil cavalos ou mil e quinhentos camelos. Os cavaleiros do Templo têm muitos edifícios atinentes ao palácio, largos e amplos, com uma igreja nova e magnífica, que ainda não estava acabada quando a visitei» [...] O refeitório a que os judeus insistiam em chamar palácio era uma vasta sala abobadada e com colunas. Os muros estavam ornamentados com troféus de armas, desses que os Templários usam para decorar as igrejas: espadas, elmos forrados a damasco, escudos pintados, cotas de malha dourada tomadas ao inimigo. Os escudeiros arrumavam as mesas ao longo das paredes e cobriam-nas de toalhas de pano antes das refeições; os primeiros a chegar sentavam-se de costas para a parede, os outros à frente deles. Só o mestre e o capelão do convento tinham direito a lugares reservados. Juncavam-se as lajes de canas, como em todos os castelos, e apesar da proibição de os Templários caçarem, não faltavam cães deitados debaixo das mesas - e gatos também - sendo proibido dar-lhes os restos destinados aos pobres... Segundo João de Wirtzburg, «a casa do Templo dá esmolas suficientemente grandes aos fiéis de Cristo e aos pobres, mas nem chega ao décimo do que dá o Hospital». Todavia a caridade do Templo era grande e feita com muita cortesia. «E ainda é mandamento da casa que os irmãos, quando são servidos de carne ou de queijo, que cortem a sua peça de tal maneira que chegue para eles e fique a mesma bela e inteira tanto quanto possível... E assim se estipulou para que a peça fosse mais honrosa para ser dada a qualquer pobre envergonhado, e fosse mais honroso para o pobre aceitá-la». 

 

   Poderá soar-nos basto medievo este mandamento, que nos remete para um sentimento de honra eivada de brio. Mas não esqueçamos a sua inspiração cristã, essa boa novidade que foi a afirmação da igualdade intrínseca de todos os seres humanos, pois todos têm a mesma dignidade aos olhos de Deus. E nesse seu fundamental princípio assenta o dever - e a graça - do respeito mútuo, sem o qual não é possível haver caridade. Nem tampouco, dizemos nós hoje, democracia e justiça. Deixo-te, Princesa, a meditar nisto até à próxima carta...

 

     Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira