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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Abraão e Moisés - afirmam hoje muitos conceituados investigadores - não terão tido, provavelmente, existência histórica, mas o que eles simbolizam e nos dizem da aventura da humanidade é indestrutível património nosso. Como Homero, que não sabemos quem foi, nem quantos eram...etc. Até a existência de Maomé não parece - dizem os especialistas - estar definitivamente comprovada. Mas o islão está aí e a umma diariamente o invoca como profeta de Alá. A realidade histórica de Jesus Cristo é aceite pela maioria dos historiadores hodiernos, mas tal não impede que haja ainda crentes adeptos de teses que negam a incarnação (Jesus é apenas Deus, sem condição humana, teoria aliás vinda da antiguidade cristã, e com alguma popularidade pelo correr dos tempos), tal como conheço incréus que defendem, cientificamente, a historicidade de Jesus de Nazaré. As teses propriamente "mitistas" - que encaram a pessoa de Jesus como mais uma representação de mitos antigos, de origem egípcia ou assírio-babilónica - surgem apenas na viragem do século XVIII para o XIX.  Por outro lado, muitas outras lendas e narrativas existem, desde as do Santo Graal a tantas outras, mais ou menos fantasiosas e romanceadas do que a desse cálice, relacionadas com hagiografias e muitas relíquias. [A mais rebuscada quiçá seja a que diz que o Graal é Maria Madalena, acolhedora do sangue de Jesus que transmitiria à prole de ambos...]  No século XIX, o romantismo apropriou-se de muitas delas, inventou outras, atirou-se à construção de histórias perfumadas de passado, na literatura como na ópera.  

  

  Voltando às Escrituras e à Tradição, um pouco ao que te disse já sobre textos canónicos e apócrifos, traduzo-te passos do brilhante ensaio de frei Yves Congar, no seu La Tradition et les Traditions, para depois nos debruçarmos sobre gnósticos e místicos. Esse teólogo e historiador dominicano mostra como o verbo grego paradidonai - em latim tradere - se pode aplicar à transmissão de escritos: o substantivo "tradição" rapidamente designou um ensinamento transmitido oralmente, distinto da Escritura. E todavia, o seu conteúdo era relativo à Escritura...   ... Essa tradição da Igreja é, em si mesma, oral. Se os apóstolos não nos tivessem deixado qualquer escrito, seria necessário e suficiente seguir a ordo traditionis por eles entregue àqueles a quem confiavam as comunidades. De facto, existem escritos apostólicos, porque os apóstolos pregaram primeiro o Evangelho, «depois, por vontade de Deus, transmitiram-no-lo nas Escrituras, para que se tornasse na base e coluna da nossa fé» (Sto. Ireneu). Existe também uma parte não escrita da tradição dos apóstolos...   ...Na perspetiva dos fiéis dos séculos II e III, pouco importava que a transmissão fosse puramente oral, desde que se verificasse a única relação que contava, a única que era uma garantia de autenticidade: as Igrejas receberam-na dos apóstolos, os apóstolos de Cristo, Cristo de «Deus». Congar, aliás, já lembrara a doutrina de Santo Ireneu: «A verdadeira gnose é o ensinamento dos apóstolos, plano antigo da Igreja à dimensão do universo, e marca do Corpo de Cristo que consiste na cadeia de sucessão pela qual os bispos puseram a Igreja em cada lugar: a explicação mais completa das Escrituras que até nós chegou, sem alteração, acrescentamento ou subtracção»... Assim, penso eu, se deve colocar a aprovação canónica dos textos circulantes que a Igreja reteve: na tradição apostólica e no debate e acordo conciliar. Não é ditadura. Diz frei Yves Congar, citando um trecho dos Atos dos Apóstolos (8, 30-31): «Compreendes o que lês?» pergunta Filipe ao eunuco da Candácia. «E como poderia, se ninguém me guia?» Os guias são os apóstolos que, discípulos do Mestre, também receberam o seu Espírito, e aos quais ele abriu o sentido das Escrituras (Lucas, 24, 45). Jesus dissera que os apóstolos espalhariam a fé começando por Jerusalém. A Igreja antiga, sabemo-lo, concebia-se a si mesma como a realidade dessa invasão do mundo a partir da nascente apostólica.

 

 

   Em próxima carta voltaremos, por Jerusalém, aos Templários.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Howard Hodgkin, o gesto demorado da memória mais íntima.

 

‘Life is not a problem to be solved, but a reality to be experienced.’, Soren Kierkegard

'You need things to look at, things to affect your feelings, and your intelligence and your heart.' Howard Hodgkin, 2001

Gestos espontâneos, repetidos, essenciais, prudentes, pacientes e contidos transportam para a tela intenções refletidas e memórias exatas. Um gesto de Howard Hodgkin (1932) pode demorar anos a tomar forma. A beleza aparentemente acidental das suas pinturas advém da demorada maturação de uma memória.

No início eram formas de contornos precisos e de cariz mais concerto. Hoje são pinturas objeto, compactas, densas, de texturas variadas, com uma paleta de cores vivas, luminosas e intensas.

Susan Sontag no texto ‘About Hodgkin’ (1995) escreve: ‘Each artist is responsible for creating his unique vision. A style is equivalent to a pictorial language of maximum distinctiveness: what declares itself as that artist’s language, and nobody else’s. To reuse again and again the same gestures and forms is not deemed a failure of imagination in a painter. Repetitiveness seems like intensity. Like purity. Like strength. And the extent to which everything by Hodgkin looks so unmistakeably by him.’

Advinham-se intensos contrastes entre a luz e a sombra, entre o íntimo e a grande escala, entre o delicado e o abrupto, entre o leve e o pesado.

'I hate painting most of the time it’s irrelevant. It doesn’t mean enough, ever, quite.', Hodgkin

A pintura de Hodgkin é a forma de expressão mais primária. É apoderação de espaços interiores íntimos, de naturezas mortas, de cenas ao ar livre, de retratos, de homenagens à história de arte. As pinceladas inacabadas e cruas sugerem narrativas – que se conseguem decifrar através dos títulos (In The black Kitchen, After Dinner, Discarded Clothes, Leaves, In Tangier, The Last Time I Saw Paris, Waterfall, Patrick Caulfield in Italy, After Degas, After Morandi…).

Cada bocado de cor pintada refere-se a um tempo particular, a um lugar específico, a uma determinada pessoa, a uma história submersa. São imagens que representam situações emocionais, que se relacionam com o eu criador e que tentam ser finitas, sólidas e objetivas, e que excluem o irrelevante e o confuso: ‘The idea is to put as much as possible, of color, of feeling, in each picture.’ (Sontag, 1995)

Enquanto pinta, Hodgkin ignora as diferenças entre o eu e o mundo, entre o escondido e o revelado, entre passado e presente, entre tela e moldura.

Sontag entende que Hodgkin não oferece um simples olhar sobre o mundo, não oferece somente uma impressão – isto porque uma situação emocional não é uma impressão. As pinturas de Hodgkin não se constituem por contornos distintivos e identificáveis. As formas (pintas, riscas, discos, arcos, faixas, setas, bandas, ondulações, pórticos) são alusivas mas intencionalmente representacionais. ‘Hodgkin aims to reinvent the sight of something after it has been seen, when it has acquired the heavy trappings of inner necessity.’, Susan Sontag.

'I’ve always thought that the first thing that painting should be is a thing – paintings should be like objects that exist firmly. Why is that so important – because everything else is so fleeting? Probably, yes. They have to be complete in themselves.’, Howard Hodgkin

Por vezes, as pinceladas transcendem os limites da madeira e transbordam para a moldura, outras vezes é a moldura que se duplica como que tentando conter o que não pode ser contido. São assim objetos autobiográficos delicados. São também evocações de sítios dos grandes mestres do passado: Índia, Itália, França, Marrocos, Egipto. A viagem é uma experiência ávida, intensificadora, incentivadora e assim necessária para Hodgkin – atua como filtro e distância ideal ao desejo de pintar. Há preferência pela contemplação das experiências mais íntimas mas que já acabaram – os quartos, os terraços, os jantares, os passeios noturnos, as visitas memoráveis.

‘The most common weather is rain; the season is invariably autumn; if a time of day is cited, it’s usually sunset. Art made out of a sense of regret… evoker of the sentiment of loss.’, Sontag

Hodgkin não desenha, não fotografa, confia antes plenamente no que a memória regista na sua profundidade emocional e pictórica. A matéria relevante para pintar é o que fica dentro e é transformada pela memória. As camadas e as pinceladas resultam de muitas decisões e são trabalhadas durante anos, de modo a encontrar a exata espessura da emoção transcendente. (Sontag, 1995)

'Art doesn't give me pleasure. Because I always think it should have been better. It shouldn't be as inadequate as it often seems to me to be. And yet, looking at the pictures behind you, I'm suddenly impressed.', Howard Hodgkin

 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Venho a escrever-te cartas afinal respeitantes à nossa experiência de uma "aventureira" visita aos monumentos dos Templários em Tomar. Sai-me tudo de lembranças que tenho e guardo, mas vou sempre procurando encontrá-las também em escritos pertinentes a outras memórias, que sustenham e sustentem as minhas. Assim me funcionou, desde há muito, o espírito: não tem relação com a realidade, que não passe pela memória. Terei de me explicar melhor - se o conseguir - sobre o que aqui quis e acabo de dizer. E do meu receio tão íntimo: será que a nossa cultura hodierna - a do esquecimento por desenfreado apego à novidade - poderá acabar connosco? Isto é: estará cada um de nós condenado a desaparecer, ou seja, a olvidar-se, a já não saber situar-se, só por ignorar o passado e ser projetado no que acaba de se inventar na história e que nunca aconteceu, e apenas calha agora imaginarmos... Estaremos, dia a dia, a criar notícias que pareçam factos? A consciência do nosso passado - ou, simplesmente, da representação dele que nos foi transmitida - também nos constitui, na cultura onde nascemos. Dá-me, por vezes, amargo riso, Princesa, ver como tanto se desautorizam tradições antigas que, se bem lidas, podem ser documentos úteis ao nosso entendimento da vida e da cultura dos nossos tempos idos e do nosso atual, e em vez delas, sofregamente se devoram narrativas sem qualquer fundamento além da sua própria fantasia, nem outro objetivo além da sua pretensão, pseudocientífica, a baralhar, confundir e destruir memórias. Pode haver passado e passado, isto é, factos ocorridos e narrativas da sua tradição. Mas estas também são passado nosso, são a nossa cultura, aquilo que os nossos antepassados, em gerações sucessivas, nos foram transmitindo. São parte do ar que respiramos. Não te quero dizer com isto que abandonemos a investigação histórica e arqueológica, isto é, a busca do apuramento possível das realidades factuais que sustentaram aquelas narrativas. Antes pelo contrário, tal demanda ajudar-nos-á a entender melhor o significado, sentido e mensagem, das tradições acolhidas. E, quiçá, a separar, na nossa cultura, o trigo do joio, ou seja, a bondade do preconceito. Recebemos uma história, que também é uma certa visão do mundo. Podemos e devemos interrogá-la, procurar-lhe os fundamentos. Mas não podemos rescrevê-la ao sabor dos nossos desejos ou fantasias.

   Não se inventa a história, o passado é incorrigível. Podemos, quando muito, procurar conhecê-lo e reconhecê-lo melhor, mas não temos o direito - penso eu, com o coração, Princesa -de pôr lá o que lá não esteve. Quem, através de exercícios pretensiosamente cabalísticos, sem qualquer análise nem fundamentação, pretende substituir trabalho sério por invenção leviana, antes pensasse em escrever só pura ficção, dessa que pode ser romanesca, policial, política ou "científica". Divertir e fantasiar não é crime nem maldade, muito pelo contrário. E até pode ser uma forma de nos interrogarmos sobre o sentido e saúde mental do que, por aí, com muita distração, se vai pensando acerca da vida e do mundo, de nacionalismo, democracia, economia e justiça, por exemplo. Aliás, curiosamente, essas novelas, escritas e filmadas, que se multiplicam na suposta "revelação" de segredos e escândalos, talvez não passem, também, de manifestações da corrente idolatria do dinheiro e da fama: vendem-se... 

   Mas enfim, Princesa, isto talvez seja rezinga de velho relho, está despachado o desabafo. Por feitio, ou por ter chegado a idade menos paciente para certos arroubos, borbulho com o frenesi dos que, com pouco trabalho e nenhum estudo, proclamam verdades secretas, sensacionais descobertas e novidades. Tal como - várias vezes te lo disse - embirro com os chamados (erradamente, penso) fundamentalismos, na medida em que se definem por uma obsessão com os limites de um campo de consciência. Porque, afinal, me faz pena que uma geração não saiba usufruir de uma imensa riqueza cultural, saborear as diversas versões de factos históricos, ideias concordantes e discordantes, debates e discussões, toda uma procissão de gentes como nós que se puseram em busca, e nos deixaram sinais na estrada...

   E por aqui me fico hoje.


Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

Vinicius de Moraes


 

(Do poema “O INCRIADO”)

 

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno

                                                              ruído do mar batendo

No entanto, como está longe o mar e como é dura a terra sob

                                                                                         mim…

Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema

                                                                                             fraqueza

E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques
                                                        onde a primavera é eterna.

 


Julgo que também por estas palavras o joio se separa do trigo e se aclara o momento que não nos espera. Ainda que a ternura peça ao mundo o vagar das vagas.

 


Teresa Bracinha Vieira

Teatro Manoel

 

EM MALTA, UM TEATRO COM ORIGEM E NOME PORTUGUÊS

 

Não é habitual, antes pelo contrário, encontrar referências a Portugal e a individualidades portuguesas ligadas a teatros estrangeiros, com a exceção óbvia dos países de expressão portuguesa. Precisamente por isso, mas não só, assume para nós relevância o Teatro Manoel de La Valeta, Malta.

E é de referir desde já dois aspetos: a impressionante qualidade do edifício em si, expressão notável da arquitetura teatral do século XVIII, excelentemente conservada e a intensa atividade do teatro, beneficiando sem dúvida do movimento turístico, mas revelando critérios de expressão cultural também extremamente assinaláveis.

Destaco a conservação exemplar do edifício e a valorização das programações respetivas, percorrendo todas as expressões das artes de espetáculo. Basta consultar o programa do denominado Teatru Manoel - Stagun 2016-2017 para se ter a noção dessa vitalidade exemplar, vastíssima mesmo tendo em conta o mercado turístico em desenvolvimento.

Importa entretanto ter presente que o Teatro Manoel deve-se à iniciativa do primeiro Grão- Mestre português da Ordem de Malta, D. António Manoel de Vilhena, nascido em Lisboa em 1633 e falecido em La Valeta em 12 de dezembro de 1736, cumprem-se em breve exatos 380 anos. E já agora recorde-se que 5 anos depois da sua morte, assumiria o cargo e a função outro Cavaleiro português, D. Manuel Pinto da Fonseca, Grão-Mestre de 1741 a 1773.

Mas o que aqui importa então salientar é a iniciativa de construção do Teatro. António Manuel de Vilhena foi eleito Grão-Mestre em 1722, no contexto de uma atividade que prosseguiria em sucessivas ações navais e militares e que marcaram o Mediterrânio, ao longo do século XVIII e não só. Antes, Vilhena foi sucessivamente nomeado Grão-Chanceler da Ordem, Bailio de São João de Acre e responsável pelas finanças da Ordem, o que na época de sucessivas guerras no Mediterrâneo, com os turcos, não devia ser fácil…


António Manoel de Vilhena marcou a política, mas também o património de Malta com sucessivas intervenções e importantes construções que duram até hoje: cita-se o Forte Manoel, estradas e pontes, e sobretudo, em La Valeta, o chamado Burgo Vilhena, vasta renovação urbana que incluiu um hospital.


Ora bem: em 1731, o Grão Mestre D. António Manoel de Vilhena manda também construir em La Valeta, um teatro “para o honesto divertimento do povo”. Denominado simplesmente Teatro Público, depois Teatro Real, ganha finalmente no nome de Teatro Manoel – Teatru Manoel, que hoje conserva.


Trata-se de um notável modelo da arquitetura teatral do século XVIII e que, nas duas vezes que o visitei, me recordou o Teatro de São Carlos, não obstante este datar de 1793. Designadamente, o ambiente e a decoração da sala, marcada pelo tom dourado dominante, representa, em ambos os Teatros citados, exemplo relevante da arquitetura teatral do século XVIII. E a verdade é que o Teatro Manoel, apesar de seriamente atingido durante a Segunda Guerra Mundial, resistiu e foi posteriormente restaurado ainda durante a administração inglesa.


E mantém uma atividade notável!


Repita-se: o Teatro Manoel constitui um exemplo relevante de arquitetura de espetáculo do século XVIII. “É pequeno mas muito bonito, com quatro ordens de camarotes, um palco pouco profundo” mais adequado para peças de cenário simplificado que não exija grande equipamento de cena, tal como refere Claire Etienne Engel citado por Alain Huber-Bonnal. (cfr. C. E. Engel - “Les Chevaliers de Malte” – 1972 e  A. Huber-Bonnal -  “Malte” – 1990).

 

DUARTE IVO CRUZ

LONDON LETTERS

 

You just don’t get it - Part II, 2016

Great politics; great events! No Cenotaph, em Whitehall, emoldurada pelo povo e escoltada pelos líderes políticos, religiosos e militares, com a Royal Family e os representantes da Commonwealth of Nations, HM The Queen Elizabeth II preside a cerimónia pela paz no Remembrance Sunday.

 Além Atlantic, após os instintos primários em abominável Circus Maximus, eis Mr Donald John Trump como 45.º presidente dos United States of America. Com o busto de Sir Winston S Churchill de novo a caminho do Oval Office, os atlantes are going back to the front of the queue. RH Nigel Farage reúne em New York com o recém eleito. — Chérie! Battre le fer pendant qu’il est chaud. Temem pela Pax Americana. O NATO Secretary General, Mr Jens Stoltenberg, adverte que "going alone is not an option either for Europe, either for the US." Já Frankfurt e Herr Wolfgang Schäuble acolhem a Euro Finance Week, para debater a Brexit e a banca de dinheiros em encontro onde pontua o ECB VP Vítor Constâncio. Temem pela Lex Germanica. — Hmm! I don't want to rain in your parade. Em vésperas da decisão no Supreme Court sobre o ready-to-go, o HM Government prepara o post-Brexit e planeia investir bilions na economia. Paris reabre o Bataclan, um ano após o horrífico atentado terrorista do 13/11, com Mr Sting no centro do concert hall. Os aliados tomam a histórica Nimrud ao Isis no Irak. Parte um samaritano da poesia, da música e da espiritualidade, presença muito cá de casa. Com Monsieur Leonard Cohen viaja o suave Mr Robert Vaughan. Hoje é noite da largest moon in 69 years.


Beautiful but freezy sunny days
at Central London, And, what a remarkable week! O fantástico elo entre a lua e a humanidade vive hoje momento alto ao crepúsculo, com o esplendor brilhante perante nós da largest moon since 1948. A maior das proximidades entre corpos celestes sucede a um emotional day of remembrance no Cenotaph. Her Majesty The Queen conduz as homenagens nacionais aos caídos de 1914-1919 em cerimónia onde a Prime Minister RH Theresa May saúda “those Servicemen and women killed in all conflicts since the First World War.” O reino faz dois minutos de silêncio nos memoriais ao sacrifício dos seus, enquanto London ouve os canhões e a passarada ao ritmo das bandas militares na tradicional romagem dos veteranos. Em honra dos Glorius Dead, a abrir a parada do Armstice Day com inconfundíveis palavras Mr Rupert Brooke, o Prince Harry of Wales belíssimamente recita The Soldier no National Arboretum: “If I should die, think only this of me: / That there's some corner of a foreign field / That is for ever England. / There shall be / In that rich earth a richer dust concealed; / A dust whom England bore, shaped, made aware, / Gave, once, her flowers to love, her ways to roam, / A body of England's, breathing English air, / Washed by the rivers, blest by suns of home. || And think, this heart, all evil shed away, / A pulse in the eternal mind, no less / Gives somewhere back the thoughts by England given; / Her sights and sounds; dreams happy as her day; / And laughter, learnt of friends; and gentleness, / In hearts at peace, under an English heaven.” 

 
Os ventos atlânticos sopram forte. O dito impossível, aqui previsto nos idos de January, acontece no derby do Oval Office. Contra todas as certezas da Press e do coro dos intelectuais prête-à-porter, vence Mr Donald J Trump. Para simplificar a Part II, resumamos o Trumphenomena com fórmula do tipo coca-cola: primeiro estranha-se, depois entranha-se. E resulta em pleno a operação política de terraplanagem. Os Republicats ganham a White House, o Senate e a House of Representatives, plus as chaves do Supreme Court. Não é de todo a marcha final do Chorus of the Hebrew Slaves, na Nabucco de Messer Verdi, pois mais bastiões vão em breve cair, mas as elites daquém e dalém finalmente estremecem com novo choque eleitoral de magnitude maior. Ainda assim, ao erguer das Atlantic Towers, algumas reagem com algo de Marie Antoinette no “Qu’ils mangent de la brioche.” No triunfo de Washington, quiçá consciente do imperial memento mori, porém ainda com unfinished businesses na bagagem, DJT é gracioso com quantos derrota. E aqui dois retratos de Tara. Bold and strong, Mrs Hillary R Clinton concede a presidência em discurso de valores maiores enquanto o President Barack Obama recebe na White House aquele que tingira como “unfit for the job.” Ora, visionar os dois homens juntos na sala presidencial tem tanto de estranho quanto de fascinante: o vitorioso street fighter que lhe negara até reconhecer o direito de berço e o cool leader que o fustigara sem dó durante the most bitter campaign ever. Diversa imagem oferece risonho encontro do New Hair Force One com RH Nigel Farage MEP, aquele um proud son de mãe escocesa e este the first British politician a reunir com o US President-elected, antes mesmo de este telefonicamente falar com Mr Vladimir Putin. Agora com o Real Donald ao leme, corrigidos que sejam os 3 M’s de Mexicans, Muslims & Misoginy, claro que a conspiração das circunstâncias continua.


As resistências à mudança do insustentável new normal igualmente prosseguem, lá e cá. Os locais Daily Mail, Sun e Daily Express estão debaixo de fogo de um ente autodenominado Stop the hate, que os quer enquadrar como veículos de xenofobia e de racismo. Pedem a anunciantes e leitores que os silenciem. Por acaso, só por acaso na campanha dos Newest Illiberals, o traço comum dos três jornais é terem uma posição editorial pró-Brexit. Fechemos antes, pois, com nota devida ao senhor Leonard Cohen (1934-2016). Emocional e intelectualmente, for me, one of the greatest ever, com lugar reservado no coração, na pele e nas horas vagas. Tanto que hesito como dizer farewell. Há You Want It Darker: what we know so far e profético “know that I am so close behind you that if you stretch out your hand, I think you can reach mine”; e há a tela familiar de Call you grass e “call you wind-bent slender grass / say you are full of grace /and grown by the river / Say what country / say what river / say what colour / Tell where is the clock / in the rose's face / tell where are the speared hands / bending the fences over / Call you loving in whatever room / in orchards on seas / knowing not whom you leave / whom you pass / who reaches after.” Com um profundo obrigado pela beleza, have a good journey, marvellous friend. See you, down on the road. — Well, well! Remember how Master Will blissfully plays with The Mechanicals and that Athenian craftsmen Bottom surrounded by some indispensable comic relief in A Midsummer night’s dream: — I have had a most rare vision. I have had a dream, past the wit of man to say what dream it was.

St James, 14th November 2016

Very sincerely yours,

V.

 

PS: Notaram a informação ice-cream type? Após meses de tinta incendiária, que sabemos do programa político do eleito nos US? Donde: Como será e quais os efeitos da fortress America?

A VIDA DOS LIVROS

 De 14 a 20 de novembro de 2016.

 

«Ouvir com Outros Olhos» de João Lobo Antunes (Gradiva, 2015) contem um conjunto significativo de ensaios de um dos mais estimulantes escritores contemporâneos. Com «Um Modo de Ser», e outras obras onde a experiência do médico e cientista se associa à do humanista, estamos perante uma leitura indispensável, que nos abre novos horizontes de pensamento e de vida.

 

  

UM INTELECTUAL COMPLETO
João Lobo Antunes era um intelectual completo. Como cientista e médico teve o reconhecimento, enquanto verdadeiro mestre que foi. Como cidadão empenhou-se nas causas nobres da construção de uma sociedade melhor, capaz de compreender os limites e a imperfeição. Como ensaísta e homem de cultura deixa-nos uma obra única, centrada na procura serena, complexa e multifacetada da dignidade humana. Numa palavra, faz-nos muita falta. Deixa um lugar praticamente impossível de substituir. O humanista pôs em diálogo efetivo a cultura e a ciência, salientando que a criatividade e a inovação correspondem a processos paralelos e semelhantes no intelectual, no filósofo, no artista e no cientista. «Ouvir com Outros Olhos» é uma reunião inesquecível de reflexões de uma extraordinária qualidade ética e cultural. Não esqueço o encontro com Fernando Gil, a ilustrar essa proximidade. E não compreenderemos as virtualidades da investigação científica nos dias de hoje se não a ligarmos à criatividade humana. Num tempo de crises e incertezas, não é demais salientar a importância crucial do ato inovador, que exige um diálogo efetivo entre cultura e ciência. Pode dizer-se que ao lermos a obra fecunda do ensaísta, descobrimos o homem na sua integridade – o que permite compreendemos melhor o fenómeno extraordinário da criação. As mãos do cirurgião e as do escritor procuram, afinal e sempre, o milagre do ser. E podemos aplicar-lhe, o que o próprio disse de um seu próximo, por laços familiares e por convergência de afinidades científicas – Pedro Almeida Lima: «viveu uma vida cheia, com um estilo que muitos invejaram e que se não aprende e só grotescamente se imita, cumprindo a obrigação moral que a sua inteligência lhe criara, mas também deleitando-se fidalgamente, com aquilo que fazia». E, nessa recordação, acrescentava não haver porventura maior bem-aventurança - invocando, com legítimo orgulho, o facto de o mestre lhe ter declarado um dia, quando ele fez uma intervenção cirúrgica no caso de uma doença do ramo que bem conhecia, que isso lhe dava certa satisfação por ser prova cabal «de que (o João) tinha algo do seu sangue»… Pode dizer-se que há um elo de exemplo e de vocação que liga as duas personalidades, prolongado pela especial vocação pedagógica do mais jovem. Fazer escola é, no fundo, compreender que nada de verdadeiramente relevante pode escapar à necessidade de comunicar às novas gerações a atitude, os conhecimentos e a capacidade de compreender. Invocando a memória inesquecível de João Pedro Miller Guerra, João Lobo Antunes lembrou a vocação essencial da Universidade, não limitada a proporcionar uma cultura especializada, mas capaz de ter um sentido de estimular a inquietação do aperfeiçoamento espiritual. Daí a importância da Ética, como abertura de horizontes à inteligência, à sensibilidade e à formação do caráter. Por isso, afirmou: «Não há dúvida de que não é possível praticar um ensino esclarecido, eficaz, aprazível, se as relações entre professores e alunos não forem inspiradas pela confiança e respeito mútuos, não assentarem em bases de honestidade e franqueza». E, no entanto, nem sempre isso acontece, por antagonismos, desconfianças, animosidades, egoísmos e ambições desmedidas… A cada passo encontramos essas resistências, daí que o exemplo e a experiência sejam as melhores matérias-primas no que à Ética diz respeito. É neste sentido que falo de um intelectual completo – uma vez que nele encontramos, naturalmente, uma encruzilhada de preocupações – do rigor científico, da exigência técnica, do humanismo, dos valores vividos e enraizados, da sensibilidade das humanidades, como letras e artes e, sobretudo, como atenção a tudo o que é humano.

 

O FASCÍNIO DO PENSAMENTO
Percebe-se o fascínio que nele exerceram grandes mestres, como Juvenal Esteves ou Artur Torres Pereira… E ainda sobre Miller Guerra, disse-nos: «Tive o privilégio de beber da sua extraordinária cultura e de o ouvir dissertar sobre os diálogos de Platão, os sonetos de Antero, os romances de Proust e Dostoiewski ou os escritos de Teilhard de Chardin, preferência esta própria do católico, então progressista, que não enjeitava ser». Mas o fascínio transmitiu-se à capacidade extraordinária que tinha de partilhar a qualidade de grande leitor dos melhores romancistas norte-americanos – para além do sólido conhecimento dos clássicos – e de fazer disso alimento do convívio e dos melhores banquetes intelectuais. Fui testemunha direta dessa qualidade, num júri literário, no qual beneficiámos só fugazmente da sua participação, pelas razões que o vitimariam. Sentimos o seu método, a sua exigência, a sua sensibilidade e o conhecimento de causa. Participou de corpo inteiro nos nossos trabalhos, não enjeitando esforços – e pondo sobre a mesa toda a experiência de criterioso leitor. Mas também beneficiei do seu avisado conselho na Fundação Calouste Gulbenkian, semanas atrás, sempre segundo uma razão temperada pelo espírito e pela medida. É memorável o ensaio que escreveu sobre a «Morte de Ivan Iliitch» de Tolstoi – no qual se nos revela de pleno o homem das várias culturas – literária, científica, artística… E a novela do genial autor russo surge-nos decifrada de um modo amplo, em que os sentimentos humanos aparecem descritos nas situações limite… E compreendemos que «no fundo, quanto a sentimentos, alma e coração misturam-se, e Aristóteles tinha razão ao pensar que era no coração que o espírito tinha assento» - do mesmo modo que a coragem é outro atributo da alma… Faz pleno sentido a citação emblemática de Richard Feynman, no que podemos considerar uma chave para a compreensão do ato de ser e de conhecer: «todas as ciências, e não apenas as ciências, mas todo género de trabalho intelectual, são um exercício para ligar entre si diferentes hierarquias, para ligar a beleza à história, para ligar a história à psicologia humana, a psicologia humana ao trabalho do cérebro, o cérebro ao impulso nervoso, o impulso nervoso à química, e assim por diante, para baixo e para cima, em ambas as direções». Ainda sobre o exemplo sublime de Rita Levi-Montalcini, prémio Nobel da Medicina e da Fisiologia de 1986, lembra-nos a ilustração fecunda da ideia de Valéry, segundo a qual o que conduz à descoberta científica «é pelo menos tão fascinante como a própria descoberta». Daí que a autobiografia da célebre investigadora tivesse como título «Elogio da Imperfeição». E aí encontramos uma história apaixonante de simplicidade, de entrega, de entusiasmo e de desencanto, de afetos, mas também de resistência à violência e ao ódio – de quem viveu a perseguição e o ostracismo. A vida e a obra de João Lobo Antunes representam um modo especial de ser, que nos remete para os grandes mestres das humanidades – como Montaigne. Quando lemos «Um Modo de Ser» (Gradiva, 1996) percebemos bem o sentido atual da afirmação do autor dos «Ensaios»: «Je suis moi-même la matière de mon livre…». Mas um eu atento à complexidade da vida que nos cerca…

 

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

     Minha Princesa de mim:

 

   Pensa que, ao tempo de frei Tiago Voragino, não havia internet nem wikipédias, nem sequer livros ou jornais impressos... Os manuscritos existentes, com mais ou menos iluminuras, eram pacientemente copiados em mosteiros, conventos e cabidos, e a respetiva consulta fazia-se in loco. Tal circunstância tornava demorada e laboriosa a tarefa a que hoje chamamos consulta bibliográfica. Assim, é tanto mais espantoso o rol de fontes informativas e citações constantes da Legenda Aurea, redigida por volta de 1275. Só para um dos três sermões que o Voragino escreveu sobre o Baptista - este, que tenho à frente, sobre a degolação do Percursor - o seu autor recorreu às fontes seguintes: Mitrale, de Sicardo de Cremona; História Escolástica, de Pierre le Mangeur; Libri Antiquitatum, de Flávio José; Commentarium in Mattaehum, de Hraban Maur; Sermões, de Sto. Agostinho; Commentarii in epistulas Paulinas, de São Jerónimo; Historia Eclesiástica, de Rufino; Historia Tripartida, de Cassiodoro; Historia Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia; Summa, de Beleth; Crónica, de Sigisberto de Gembloux; In gloria martyrum, de Gregório de Tours; Historia dos Lombardos, de Paulo Diácono; Diálogos, de Gregório Magno. É claro que também textos desses encerram lendas e boatos e veiculam mais tradições e contos do que verificações históricas. Mas não deixam, por isso, de retratar universos mentais, referências de crenças e devoções, tradicionais e coevas. Voragino, aliás, recebe umas melhor do que outras, aqui e ali até emite críticas ou dúvidas. Faz trabalho sério.

 

   As festas a cuja celebração se refere - todas à volta da degolação ou decapitação de São João Baptista - eram, ao tempo, quatro, conforme estabelecido no Ofício Mitral de Sicardo de Cremona: a primeira, ainda hoje celebrada a 29 de Agosto, é a do próprio martírio; a segunda é a da cremação e dispersão dos ossos do santo; a terceira celebra a invenção ou descoberta da cabeça decapitada (hoje celebrada com a primeira); a quarta tem a ver com a translação do dedo e a dedicação da igreja que lhe foi consagrada por Santa Tecla. Levo-te à festa da descoberta da cabeça, de que já te falara em cartas anteriores, precisamente por ser a que refere a mesma que nos foi lembrada, na charola do Convento de Cristo em Tomar, esculpida no topo de um capitel. Traduzo-te passos do texto do Voragino:

 

   Em terceiro lugar, comemora-se em razão da Invenção da sua cabeça. Porque diz-se que foi nesse dia que a encontraram. [cf. relato da audiência de Bento XVI em 29 de Agosto de 2012, em Castel Gandolfo] Segundo o livro XI da Historia Eclesiástica, João foi detido e decapitado na prisão de um castelo da Arábia, chamado Macheronte, mas Herodíade mandou transportar a cabeça para Jerusalém, e enterra-la, com precauções, junto à casa de Herodes, temendo que o profeta ressuscitasse se a cabeça fosse enterrada com o resto do corpo. Mas segundo a Historia Escolástica, ao tempo do imperador Marciano, que começou a reinar no ano do Senhor de 452, João revelou a localização da sua cabeça a dois monges que tinham vindo a Jerusalém. Apressaram-se a ir ao antigo palácio de Herodes, e encontraram a cabeça em sacos de pele de cabra, que, a meu ver, provinham das vestimentas que o santo trazia no deserto... A seguir, o Voragino conta que, depois, um oleiro de Emesa se juntara a eles e, avisado, em sonhos, por São João, fugira com a cabeça para a sua cidade. Mais tarde, confiou o segredo a sua irmã, e assim ele foi sendo confiado, por gerações sucessivas, a legítimos herdeiros, até São Marcelo, a quem o Percursor, em visão, deu o beijo da paz e revelou a urna onde se conservava a cabeça, a qual foi então colocada numa igreja, para lhe ser prestado o devido culto. Finalmente, por intervenção imperial, a relíquia iria parar a Constantinopla e guardada noutra bela igreja. E depois? - perguntas tu, Princesa de mim... Depois, a cabeça passou para as Gálias, para o Poitou, no reinado de Pepino, e pelos seus méritos muitos mortos foram ressuscitados - responde frei Tiago Voragino, que a seguir conclui o seu relato do movimentado destino da cabeça de São João Baptista:

 

   E, tal como foram castigados Herodes, que mandara decapitar João, e Julião o Apóstata, que ordenara que lhe queimassem os ossos, igualmente foram punidas Herodíade, que sugerira à filha que pedisse a cabeça, e a própria rapariga, que a pedira. Há quem diga que Herodíade não foi, afinal, condenada ao exílio, nem morrera em Lyon: enquanto segurava a cabeça de João, e rindo o insultava, por vontade divina a cabeça soprou-lhe na cara e ela morreu naquele instante. Eis certamente uma narrativa popular, e convém atermo-nos à versão, anteriormente contada, de que ela acompanhara Herodes no exílio e nela tivera um fim miserável; esta é, aliás, a versão que os santos narram nas crónicas. Quanto à filha dela, um dia em que passeava sobre o gelo, este quebrou-se debaixo dela e levou-a para o fundo da água, onde se afogou... Uma crónica afirma que a terra a engoliu viva, coisa que podemos entender à maneira do que se diz dos egípcios que foram engolidos pelo Mar Vermelho: A terra devorou-os [Êxodo, 15, 12].

 

   Atenção, Princesa, olha que o Pepino acima nomeado não é O Breve, avô de Carlos Magno, mas, sim, o neto deste, Pepino I da Aquitânia que, em 817, mandou construir a igreja de São João, ao que dizem, para albergar a relíquia, e assim ali, em Angély, se ergueu a abadia beneditina de Saint Jean d´Angély. O sítio foi estação de um dos itinerários do Caminho de Santiago. A abadia foi destruída e reconstruída mais de uma vez, sendo que, por volta de 1562 (creio), durante as Guerras das Religiões (entre católicos e huguenotes) foi alvo de atentado que provocou incêndio em que ardeu a pretensa cabeça se São João Baptista. Todavia, a devoção a esta manteve-se, e outras "candidatas" havia, como te referi em carta anterior, quer em França, quer noutras localidades e templos das igrejas cristãs romana e orientais, e mesmo em mesquitas. Não te esqueças de que o Profeta João também aparece no Corão. Nem de que a cidade de Emesa, acima mencionada, viria, com a ocupação muçulmana, e até hoje, a chamar-se Homs. Fica na Síria, a uns sessenta quilómetros do famoso Crac dos Cavaleiros, castelo fortificado que os cruzados levantaram e chegou a ser governado pela Ordem dos Hospitalários. Mas os Templários é que ficaram com a fama da devoção (até já lhe chamaram adoração!) da cabeça de São João Baptista...

 

   Mas disso, e de outros boatos sobre Templários falaremos em carta próxima. E, já agora, para acabar esta: está também na Síria, em Damasco, cidade capital, a Grande Mesquita dos Omíadas (séc. VII), que alberga um santuário onde alegadamente se enterrou essa cabeça, e onde uma tradição muçulmana pretende que Jesus comparecerá, no fim dos tempos. 

 

     Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Shirley Jaffe e a união na diversidade. (Parte II)

 

‘Some of my paintings begin with the memory of a movement or a dislocation of something but not all.’, Shirley Jaffe

 

Nas suas pinturas cada parte é importante, não há uma hierarquia. Verifica-se a existência de uma enorme diversidade não linear. Jaffe não acredita que uma forma se gera no seguimento de outra, porque a pintura não deve apresentar uma leitura lógica. Shirley Jaffe (1923-2016) não trabalha em séries mas por vezes explora certas ideias em várias pinturas. Existe espaço para a possibilidade de mudanças  imprevisíveis. Há o desejo de que cada elemento tenha uma coexistência. E as suas pinturas são iniciadas através uma determinada noção formal, para logo após procurar pelo momento em que se poderá modificar essa noção. E é nesse momento de mudança que o gesto é importante.

A precisão da aplicação das formas nas suas pinturas prova todo o trabalho meticuloso da pintora. Existe um equilíbrio exacto entre a ordem e o caos, entre o orgânico e o racional, entre o manual e o industrial. As formas pintadas parecem colagens, porque apresentam um recorte preciso no espaço. No entanto, Jaffe não se interessa pelo simples recortar e colar das formas – Jaffe assume-se como pintora e afirma o seu gosto pela marca do pincel.

É através de uma deliberada vontade em complexificar as formas que se evitam semelhanças e reconhecimento. O registo é sugestivo e intencionalmente instável e imprevisível. Evidencia-se a variedade e a diversidade de formas e de sinais quase caligráficos.
 

'I have never wanted to make a figurative painting. It doesn’t interest me, although I see a lot in figuration is very stimulating and gives me a lot of ideas. I don’t know whether a painting that is purely abstract in its content has a sustainable vitality.', Shirley Jaffe
 

De facto, conseguem-se encontrar afinidades com as colagens de Matisse, ou as pinturas de Mondrian, Arp, Malevitch, Kandinsky, ou Stuart Davis. No entanto, na verdade Jaffe menciona Sassetta como a sua principal influência, assim como Picasso, pela sua capacidade de constantemente quebrar a regra. De Matisse, Shaffe retira qualidades de vitalidade e de optimismo, através de complexidade e dissonâncias; 'I would like painting to make people feel alive, have a sense of stimulation, of possibility.'

Raphael Rubinstein no seu livro 'Shirley Jaffe. Forms of dislocation' explica que talvez as pinturas de Jaffe estejam relacionadas com a sua experiêcia de expatriada, ao estar longe do conhecido, do familiar e do aceitável. E talvez por isso as suas pinturas transportem intenções relacionadas com deslocação, desacordo, disjunção, dissonância, desvio à norma, autonomia formal, união através da diversidade e ligação na diferença.

 

‘I would like my paintings to give someone outside of me the feelings of the possibilities of life, that they awaken the energy to confront and face things. I would like to find another way to continue abstract expressionism. I believe the liberation of forms and gestures can express transformation of a general idea of exterior life.’, Shirley Jaffe

 

Nos nossos dias, é necessário abrir ainda espaço a uma cultura visual que diga tudo mas de forma subtil, que seja completa mas ambígua, liberta mas complexa, reconhecível mas cheia de vida. E as pinturas de Shirley Jaffe dizem tudo, contém tudo. São um desafio à nossa capacidade de descodificação. São como exuberantes registos cartográficos de sítios desconhecidos, são como textos escritos com uma linguagem totalmente nova.

 

Ana Ruepp

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

   

   Minha Princesa de mim:

 

   Nestes últimos anos, multiplicaram-se as publicações, largamente sustentadas, do simples escrito à rádio, tv e cinema, de novelas, discursos e especulações pretensamente históricas ou científicas, com o propósito de abalar, ou mesmo arrasar, a fidedignidade de escritos antigos, de tradições e de crenças que, durante séculos, vêm alimentando a vida espiritual - e a religiosa - de milhões de pessoas nas suas culturas. Pensa, Princesa de mim, por exemplo, em The Da Vinci Code, do Dan Brown, que, curiosamente, na sua primeira edição (Doubleday, New York, 2003) ostentava o subtítulo A Novel - o que honestamente o situava no campo da ficção literária, a que pertence - e posteriormente foi sendo editado sem essa designação, assim se confundindo com possível investigação ou mesmo descoberta histórica. Isto dito, até sinto alguma simpatia pelo divertimento do Dan Brown, bem longe da parvoíce saloia de quem lhe copiou as receitas de enredos e lucros... A base dessa novela encontra-se numa obra de três autores - Michael Bagent, Richard Leigh e Henry Lincoln - intitulada Holy Blood, Holy Grail (New York, Delacorte Press, 1982) que especulativamente, e sem qualquer argumentação histórica ou hermenêutica consistente, pretendia demonstrar que Jesus se casara com a Madalena e dela tivera descendência. Tais relatos são aliás constantes de lendas várias, relacionadas com o Santo Graal, os Templários, os Cátaros e os Merovíngios, todas hoje comprovadamente meras ficções. A talho de fouce, observo ainda que  Bagent e Leigh - nomes que, aliás, vão "batizar" a personagem Leigh Teabing do Da Vinci Code, Teabing sendo um anagrama de Bagent - dois dos autores de Holy Blood... moveram uma ação judicial contra Dan Brown, por plágio daquela teoria nupcial, causa que perderam porque o tribunal entendeu que a novela apenas ficcionava a tese deles. Se bem me lembro, tal ideia teria origem no apócrifo Evangelho de Filipe, e mesmo deste só poderia deduzir-se o casamento com prole exorbitando uma ténue referência a um beijo... Por mim, antes ponho Maria Madalena, primeira testemunha da Ressurreição de Cristo, como conta o Evangelho de São João, em apóstola destacada entre os apóstolos, lugar que o papa Francisco insistiu em sinalizar... E volto a confessar-te, Princesa, que até gosto de ler apócrifos cristãos: afinal, são registos de crenças a devoções antigas, disseminadas num universo de gentes e padrões culturais vários, em tempos de comunicações difíceis, demoradas e aleatórias... E mais acho, curioso, que, apesar de tudo isso, frequentemente os escritos apócrifos não divergem muito, até corroboram e reiteram os textos canónicos. Sinal de que a pregação e o entendimento geral da fé cristã era, ainda assim, bastante regular e credível. Mesmo em textos dissonantes, ou simplesmente não sinópticos, a Igreja acabou por encontrar imagens e ensinamentos que a tradição da devoção cristã "canonizou"... Por acaso, até nem surgiu nenhuma Salomé esmagada entre escudos de guardas de Herodes - como na ópera...

 

   Ultimamente, parece que se generalizou a ideia de que factos históricos credíveis só se encontram em escritos apócrifos, tais como o chamado Evangelho de Judas, cuja descoberta, em 2006, levou mesmo um popular jornal londrino, de larga tiragem, a proclamá-la the greatest archeological discovery of all time, documento que, de uma assentada, ameaçava [desautorizava] 2000 anos de ensino cristão. Mas como pode comparar-se tal escrito, entre outros apócrifos, com os evangelhos canónicos, isto é, aqueles que a Igreja - através de longo e elaborado processo de consulta dos testemunhos e ensinamentos correntes nas muitas comunidades de cristãos, e de decisões conciliares - reteve como memórias fidedignas da vida e da mensagem de Jesus Cristo? Serão eles contemporâneos? Será o apócrifo Evangelho de Judas anterior aos canónicos e, por tal maior proximidade das origens, mais digno de fé? Lamentavelmente, para qualquer obcecado com a prova "evidente" de que, por misteriosa propensão ao poder discricionário e ao autoritarismo, a Igreja primitiva escamoteou textos originais e impôs ideias, construções falsas, veja-se o Evangelho de Judas é que é um documento tardio, provavelmente produzido no seio de uma seita marginal que, como várias outras, quiçá pelo afastamento daquela comunhão das comunidades cristãs na nascente Igreja católica, isto é, universal e abrangente, iam pretendendo que só a versão sua (delas) estaria certa, e por isso tomavam outra opção (que, em grego, se diz heresia). Na realidade histórica, desde os primórdios foram aparecendo várias e diversas interpretações das escrituras e dos ensinamentos cristãos, a tal ponto, Princesa, que se pode dizer que o próprio islão nasceu do judio-cristianismo. Mas Alcorão não é texto canónico da Igreja cristã, tal como os escritos apócrifos não foram referendados pelo sentimento religioso da maioria conciliar das comunidades cristãs.

 

   E vem a calhar aqui uma referência ao anglicano livro Heresy, de Alistair McGrath, professor em Oxford e, anteriormente, no King´s College de Londres e em Cambridge, que, a dado passo, escreve (traduzo): O Evangelho de Judas retrata Jesus de Nazaré como guru espiritual, semelhante aos mestres Gnósticos do segundo e terceiro séculos, com ainda pouca relação com o retrato de Jesus constante dos Evangelhos sinópticos. O Cristianismo torna-se assim num culto de mistério baseado numa imensa burocracia que governa o cosmos, que o tal Jesus vai explicando, em requintado e desassossegado pormenor, a Judas. É difícil evitar a conclusão de que Jesus de Nazaré foi reinventado como mestre Gnóstico, com ideias Gnósticas. O Evangelho de Judas tem, na verdade, o potencial de iluminar o nosso entendimento do Gnosticismo dos meados do século II e depois, especialmente, a sua já apontada relação parasita com visões do mundo então existentes. Mas parece nada ter, que seja historicamente credível, para nos dizer acerca das origens do Cristianismo ou da identidade de Jesus de Nazaré. E não é, certamente, uma significativa "ameaça" ao Cristianismo tradicional.   


   Finalmente, penso eu, Princesa de mim, a questão importante não é saber se tanto disparate "ameaça", ou não, a tradição da crença. Antes será, assim sinto, surpreender uma moda do espírito contemporâneo, essa de que é "brilhante", isto é, "inteligente", contestar ou pôr em causa algo e tudo o que recebemos como herança cultural - não por qualquer pertinente razão que justifique um inquérito, um esclarecimento, mas só por pensarmos que, afinal, alguém tentou enganar-nos durante séculos. Não medimos, então, até que ponto, afinal, é de nós próprios que já duvidamos... Pois, gostemos ou não, sermos hoje é reconhecermo-nos também no nosso passado, isto é, na nossa vida antes de nós. Lembra-te, Princesa de mim, de como já outras culturas marcam pontos sobre a nossa, só por queridamente invocarem a sua própria tradição. Com esta triste mania de sermos "espertos", vamo-nos esvaziando...

 

   Não defendo, Princesa, sabe-lo bem, qualquer cultura estática, sem aggiornamento. A nossa herança tem de ser vivida no tempo e no modo das nossas vidas. Se soubermos fazê-lo, além de autênticos, verdadeiramente, seremos um salutar desafio para os que, noutras culturas, teimam em manter e impor qualquer status quo. O vero-bem-belo não é relativo, mas só existe na relatividade do tempo. Por isso, muito e também, entender o passado não é, não pode ser, entregarmo-nos a fantasias. E fica para outra carta o que te queria traduzir do frei Tiago Voragino. Homem notável, tão só por ser, no século XIII, alguém que recolheu e registou contos e lendas de tempos antigos, sempre procurando entendê-los sem batota...

 

          Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira