Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Vergílio Ferreira, na cerimónia em que lhe foi atribuído o prémio Europália, em 1991, leu um discurso onde afirma a ligação da língua portuguesa com o mar. Registamos aqui essa emblemática e representativa citação:
“A alma do meu país teve o tamanho do mundo (…). Uma língua é o lugar donde se vê o mundo, e em que se tratam os limites do nosso pensar e sentir. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor, como da dos outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação. Assim o apelo que vinha dele foi o apelo que ia de nós. E foi nessa consubstanciação que um novo espírito se formou”.
Tentando detetar e interpretar as linhas de força daqui emergentes, podemos concluir que foi viajando, pelo mar e através dele, que se descobriu e descobre a ousadia de Portugal, não se limitando à sua pequenez territorial, aprendendo que o mundo é um conjunto de territórios entrelaçados por oceanos. Sendo um país limitado por terra, por um maior e mais populoso, a ambição possível era o mar. Existindo vontade de crescer, ou ia por mar, no achamento de outras terras e povos desconhecidos, ou abria-se e voltava-se em pleno para a Europa, não lhe virando as costas, pois é também do mar que a vemos. A opção prioritária foi o mar. Não iam sozinhos os intérpretes de tais viagens. Outros viajantes os acompanhavam e ultrapassavam em termos de importância, intemporalidade e longevidade: a cultura, a língua e a religião. Sendo companhia e intérprete permanente de todos os outros, a língua acaba por assumir um lugar primordial, corroborado pelas suas inegáveis consequências na atualidade e em termos estratégicos.
2. O mar, para nós, portugueses, sempre foi, e é, um interesse permanente, pela sua imutabilidade e incontestável geografia marítima e situação geográfica de Portugal. Perdido o império, a ausência de interesse pelo mar foi suprida pelo novo desígnio de adesão e integração na Comunidade Económica Europeia, onde impera uma opção europeia pela continentalidade e em que a Europa passa a exercer uma atração centrípeta no essencial.
Mesmo assim, continuamos a ser uma nação de vocação marítima debruçada para o Atlântico. Onde a omnipresença do mar e da viagem é constante na arte, nos monumentos, na religião, nos costumes e tradições deixados pelo interagir sucessivo a partir das primeiras viagens. Assim como na expressão artística por excelência da nossa língua, ou seja, na literatura portuguesa e lusófona. E em que sobressai, ainda, a disseminação da língua portuguesa na sequência dos descobrimentos, pela diáspora portuguesa, lusófona e contemporânea, pela sua dimensão de mercado e potencial geoestratégico, dado ter sido capaz de atravessar espaços geográficos deslocalizados territorialmente e abraçados pelo mar, numa descontinuidade linguística banhada por vários oceanos e continentes, como transoceânica e intercontinental, enriquecendo-a e miscigenando-a.
Numa consciência e compreensão dos nossos interesses permanentes emergem, como defesa, continuidade e projeção do nosso ser e identidade o mar e a língua portuguesa, reciprocamente sempre interligados, com e pela a adesão à viagem, o que implica uma abertura ao outro, o que é reforçado por se constatar que o mar une todos os países de língua portuguesa.
Se o mar, pela sua natureza e por imperativo geográfico, é insuperável, tendo sempre sido, e continuando a ser, um interesse permanente, já o nosso idioma, embora também tenha, até agora, caraterísticas de permanência, está mais dependente de um ato de vontade nosso, firme e incessante, que podemos continuar a defender, se quisermos, perante toda e qualquer ameaça.
Joaquim Miguel De Morgado Patrício 07 de novembro de 2016
“A medicina já não me receita outra coisa senão viagens”
Noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.
Veneza a muito bela das cidades da Europa Meridional. Veneza aquela a que os italianos sentiam como a soave austero.
Neste livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, este novo texto, híbrido, entre tradução e «transplantação», quando Antero nos diz no ensaio sobre tradução, que, tradução é mais que transplantação, Veneza era plácida, e passaremos sempre a entendê-la não como Thomas George Bonney, a descreveu, mas necessariamente como o resultado de um novo livro de Antero, uma «transplantação» com inúmeros trechos da sua própria autoria.
Assim, Veneza, era a cidade à qual o viajante sempre chegava com a sensação de caminheiro e ali se perfumaria numa preguiça indolente e indolentemente cismava uma cisma entre pombas mansas e a falta de solo; entre o espanto da fisionomia latina, bizantina, ocidental e oriental e enfim maometana.
A importância da situação geográfica e política de Veneza durante toda a Idade-Média foi o que a tornou mediadora inteligente entre civilizações hostis. E continua: Veneza, apesar de decadente, é ainda bela.
Diria que ao ler este livro “Veneza – Versão de Antero de Quental”, esta beleza de Veneza surge-nos muito explicitamente de um monte de ilhas onde assentava a relação com Constantinopla, Egipto, Síria, Creta, Chipre, enfim um Rialto de mãos de génio, sendo o governo nos primeiros séculos pura democracia. Diria que saber que que o Doge era magistrado e não senhor sob pena de o expulsarem ou executarem, é como atesta Antero a consciência de que se vive como perdidos em estados tão grandes, que desconhecemos a coragem que implicava a simples e reduzida cidade ter em si a força criadora e inventiva de um poder e de uma arte tão própria quanto a da arquitetura veneziana.
E, como já dissemos pelas palavras do que lemos
noutro tempo não se chegava a Veneza senão por mar.
Fazem-me sentir estas palavras que só se assim for, se poderá iniciar a razão profunda e até íntima da razão e da elegância de Veneza desta forma ser. Afirma-se que o Canal Grande é para Veneza o que são para Paris a rua Rivoli, o Corso para Roma ou Regent-Street para Londres, e ao espreitarmos por uma gôndola lá está o Palazzo Cavalli ou a poética Ponte dos Suspiros sobre movediço chão, em corredor de ligação à prisão Estado de Veneza. São Marcos fantástico!, magistral!, e a Força e a Justiça em duas mulheres de mármore a ladeá-lo e de cujas mãos o Doge recebia a espada do governo.
E assim se diz também que por toda a parte Veneza é rainha de portas sarracenas e que se entre nela humildemente pois que não há maior contraste que os olhos possam ver. E tantos são os contrastes que noutra parte pareceriam disparatados, filhos de inabilidades, e aqui, aqui harmonizam-se, fundem-se ou o artista medieval não tivesse o sentimento do conjunto. E eis como um dia o artista com a liberdade e o poder da Renascença denuncia a sua energia com Bramante ou com Miguel Ângelo. E não descuida Quental que o mal, o defeito da Renascença, ou antes do movimento saído da Renascença, depois de esgotado o seu impulso primeiro e genial, foi a superstição da antiguidade, das regras clássicas, o culto do convencional.
A destreza com que o gondoleiro maneja o remo chamado fercola por canais estreitíssimos, é admirável, e o encanto do viajante é o desespero do arqueólogo na confusão de estilos ao gosto veneziano que permitem mulher formosa a cada janela rendilhada.
E do livro:
Em Veneza tudo fala do passado, por conseguinte da morte. E o que é a história, essa agitação de efémeros, durante um momento, entre duas eternidades?
É irónico que Antero de Quental nunca tenha visitado a cidade dos doges.
Ainda hoje parte do espólio de Quental se encontra na Biblioteca Marciana de Veneza.
Antero um dos notáveis da nossa literatura.
Para mim, este livro de um cuidado e beleza indizíveis, acolhe em jeito de segredo aquele que sempre soube que o tempo continua a ser o de chegar a Veneza por mar, esse mesmo que muito tem segurado por lá as canções silenciosas que batem à porta do coração.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Este livro magnífico teve a organização, introdução e notas de Andrea Senior. Giorgia Casara na revisão e Mariana Pinto dos Santos na atualização da grafia e na revisão. A todas agradeço por este magnifico trabalho, e expresso o meu contentamento especial à Pianola Editores por esta luz em 2015.
O Teatro Municipal de Bragança ilustra claramente a política cultural e urbana de renovação que, na área de arquitetura do teatro, tem marcado, a partir designadamente dos anos 90 do século passado, o interior do país. E no caso concreto, desde já se assinale que este notável Teatro Municipal, bem como o seu bem próximo e contemporâneo Teatro de Vila Real, também Municipal, se devem ambos à traça do arquiteto Filipe de Oliveira Dias: e ambos marcam, na notável modernidade harmoniosa dos projetos e dos edifícios, as urbanizações respetivas, numa linha de modernidade que não choca, antes pelo contrário, valoriza a tradição urbana e arquitetónica respetiva. Mas do Teatro de Vila Real falaremos noutra ocasião.
Importa entretanto, no que respeita agora a Bragança, o moderno Teatro Municipal retoma uma tradição de edifícios teatrais que remonta pelo menos ao século XIX. Em 1870 há notícia de um Teatro Brigantino que, 12 anos depois, beneficia de ampliação e passa a designar-se, a partir de 1891/92, por Teatro Camões, projeto do arquiteto António Augusto. Tinha para cima de 80 lugares de plateia, 4 frisas, 30 camarotes em duas ordens e uma galeria. Era propriedade de uma Associação de Artistas de Bragança.
Este teatro sofre nova reconversão a partir de 1923, e alinha no movimento de transformação e exploração urbana e social de cine-teatros, notável na época. De referir porém que já se fazia lá cinema desde pelo menos 1911, o que é também notável, tendo em vista, designadamente, a interioridade então dominante...
É de assinalar os aspetos de implantação/renovação da malha urbana e do centro histórico de Bragança. Sem “prejudicar” as tradições histórico-arquitetónicas e urbanas da cidade, salienta-se entretanto a proximidade da nova Sé, também notável na modernidade da sua estrutura arquitetónica e funcional. Bragança não perde a sua secular tradição, basta lembrarmos por exemplo a antiga Sé ou o Castelo: mas harmoniza-a com a adequação a novos estilos urbanos e arquitetónicos.
Ora no Teatro Municipal de Bragança, o que hoje mais impressiona é precisamente a ligação do edifício ao meio urbano, não, insista-se, pela reconstituição de estilo arquitetónico, aliás notável, mas, precisamente, pela modernidade da fachada, dominada por uma escadaria e por um imponente e grandioso “janelão” que abre por completo a cidade ao foyer e ao interior do teatro em si. O foyer de entrada é marcado também por um painel de cerâmica de Graça Morais.
A sala principal comporta cerca de 400 lugares de plateia, valorizada por revestimento de paredes e teto em painéis de madeira que se harmonizam com o tom vermelho das cadeiras. E é de assinalar os painéis do teto, dotados de uma “mobilidade” que permite adaptações técnicas e decorativas aos espetáculos e se adequa à acústica e à variedade das exigências de cena. E essa estende-se ao palco, também eminentemente adaptável às exigências dos espetáculos, e mesmo à abertura de um fosso de orquestra.
E mais: existe ainda uma sala de ensaios que em si mesma constitui uma segunda sala de espetáculos pela capacidade de produção autónoma com acesso direto ao público.
Repito: esta modernidade harmoniza-se com o património histórico-urbano da cidade. E esse, como sabemos, vai desde o Domus Municipalis ao Castelo e ao Pelourinho, à antiga Sé, entre tantos mais edifícios-monumentos históricos.
Oh Dear oh dear! Três doutos juízes do High Court revogam o voto maioritário de 17.4 milhões de pessoas no euroreferendo de 23rd June e devolvem a decisão da Brexit - Yes/No ao Parliament. Invocam a constituição histórica e não reconhecem poder ao HM Government para accionar o artigo 50 do Lisbon Treaty, por prerrogativa real, principiando os tratos do divórcio com Brussels.
Assim abrem alas aos eurófilos, a cavalgar sem freio contra o juízo popular e que visam congelar o processo na House of Lords. A Press aponta os sabotadores da Great Treason. O acórdão sobe agora para o Supreme, sob apelo da Crown, mas alguém se vai dar mal. Nas cartas figura uma snap election. — Chérie! Le plus court chemin est la ligne droite. A Home Front desnuda-se noutras áreas. O MI5 confirma a prevenção de 15 terror plots no UK durante os últimos três anos. O perigo espreita a ocasião. — Mm-hmm! No ghosts need apply. Sombreado está também o resto do mundo. Após várias peripécias e confusos sinais à navegação, a European Union e o Canada assinam finalmente o acordo mercantil bilateral. Nos US é o suspense total a 48 horas do sufrágio presidencial. O FBI retira da investigação ao Emailgate mas arrisca a vitória anunciada da Secretary Hillary Clinton. A batalha contra o Isis nas areias do Irak alcança as portas de Mosul. Pope Francis viaja a Sweden. Já a Prime Minister Theresa May ultima a visita à India e RH Boris Johnson vai a Berlin. Mr Andy Murray ascende a World Number One no Paris Masters. A Brit red poppy saúda o soldado desconhecido.
Cold weather at Central London, with an Artic freeze on the way. Com o tema musical do Dad's Army no ouvido, belissimamente tocado pelos Coldstream Guards numa rendição da guarda em Buckingham Palace, a red poppy atavia as lapelas em vésperas do Remembrance Sunday confiante no governo do dia. Também as efígies de Guy Fawkes ornamentam marches of idiots em Parliament Square e ardem com os usuais fireworks no Fifth of November. Entre a melancolia solar dos versos do “In Flanders Fields” pelo Lieutenant Colonel John McCrae e a flor de seda vermelha criada por Miss Moina Michael, um médico canadiano e uma académica norteamericana, a Royal British Legion dinamiza a homenagem aos caídos na First World War enquanto recolhe fundos para apoiar a família das forças armadas. A iniciativa tem história nobre. Criada em 1921, a RBL une as inspirações nas margens do Atlantic Ocean com volumosa encomenda de 9 milhões de flores a Madame Anna Guérin além Channel. A confortar as almas em quadra de tristeza, a empreendedora gaulesa para cá traz as Papaver rhoeas. O primeiro Poppy Appeal recebe massiva aprovação no reino, sendo todas as pétalas vendidas a 11 November 21 para assinalar o armistício. A legião arrecada cerca de £106,000, solidárias, uma fortuna aplicada a dar assistência médica, emprego e habitação a quantos regressam do combate. Mais: Soma à coragem da frente a gratidão da retaguarda, com ambas, em tributo de dor e de sangue, ganhando a paz – sempre transitória, também esta delicada como as boninas, até à próxima guerra, a deflagrar quando a deslembrança a ousa pensar impossível.
Sinal de respeito profundo para com toda uma jovem geração espalhada por diferentes trincheiras, eis senão quando, em 2016, a escrupulosérrima FIFA proíbe as equipas domésticas de ostentarem o símbolo nas camisolas. Não vale a tinta o argumentário avançado pela organização. O absurdo, porém, serve a que equivocados pacifistas censurem a papoila, e quantos a usam, por militarismo. Por sinal são os mesmos agitadores que usam apontar o dedo contra a defesa do West; e de Israel. Tamanha incompreensão alista-se na desmesura, mas acrescenta à ausência do canto da Flanders de algumas escolas ocidentais ― porque lá pintado como saudando um patriotismo inconveniente. Se tais arrojos servem a ignorância, cabe à memória ensinar a esperança. A clássica coletânea dos poems indark times, editada em 1919, abre com paisagem interior de quem luta pela vida e retém ainda divinal luz para captar a beleza em terras regadas a seiva humana. O Dr McCrae falece nos instantes finais do conflito de 1914-19, ceifado em funções de cirurgião na Second Battle of Ypres (Belgium) ― tristemente sabida pelo gás contra os aliados. Três anos antes, a cuidar chão alheio, ali acompanha na morte o amigo Lt Alexis Helmer e o sepulta em jardim eterno. A 3 May 1915 escreve dor imensa: In Flanders fields the poppies blow / Between the crosses, row on row, / That mark our place; and in the sky / The larks, still bravely singing, fly / Scarce heard amid the guns below. || We are the Dead. Short days ago / We lived, felt dawn, saw sunset glow, / Loved and were loved, and now we lie / In Flanders fields. Sobrevém uma dúvida, com Ecclesiastes, na luta contra os fascismos vários: Quem não tem por que morrer, seja pelo King/Queen and Country, seja pela Liberty, terá por que viver?!
Dizia Sir Winston Churchill que na política se expira muitas vezes. E a sete fôlegos de gato aspira RH Tony Blair. O ex Prime Minister apela à realização de segundo referendo à questão europeia. Desgosta do desfecho do EU Referendum Act. “We don’t know what we’re getting into,” sustenta o decisor da Iraq War. Guarnecido por mais uma análise meteorológica de bad weather for Britain pela Standard & Poor's, a agência que três dias após o Brexit vote retira à esterlina o estatuto áureo do Triple A, o ido Labour Man persiste na tese que os britânicos mudarão de rota quando sentirem “the catastrophe” na pele. Cedo RH Jeremy ‘Reluctant’ Corbyn e outros hasteiam a voz em glosa. Só a realidade teima em contrariar o previsto dilúvio dos Remainers, no ensaio de demitir o povo. A economia cresce 0.5% no terceiro trimestre, justamente o período que medeia do voto do adeus. A recessão adia-se, pois, para o ano. Haverá que esperar pela desaceleração nas indústrias, de que não se vislumbra sinal dado o ímpeto exportador gerado pela queda de 18% da libra face ao dólar, tal qual pelo evaporar do emprego, na senda do anúncio da Nissan de um novo mega investimento automóvel no reino. Mesmo o Governor Mark Carney fica firme ao leme do Bank of England até ao Summer de 2019. E há o incomensurável “We, The People,” Daí que ao Comeback Kid responda o ukipper mor RH Nigel Farage MEP em registo deveras singelo: “Is just another example of the European Union forcing votes until they get the result they want.” O Labour recua.
Com os vestígios de mais uma bonfire of incompetence’s night na envolvente, no caso secular: o fracasso de Mr G Fawkes em explodir as Houses of Parliament, em 1605, durante a State Opening a presidir pelo King James I face aos pares e aos comuns do reino, observância para as instruções da old nursery rhyme quanto ao “Remember, remember the fifth of November.” As altas razões do decreto setecentista que declara a data como “a national day of thanksgiving and remembrance” sumarizam-se na tríade “gunpowder, treason and plot.” No mais, vem a tradicional ronda infantil para reunir os pennies for the guy e os fogaréus espalhados pela ilha como pretexto de diversão. Em ano findante do 400th anniversary of Shakespeare’s death, companhia sem mácula nas 2016 London Letters, busco alusão à modelar conjura de patetas havida nos seus trabalhos. Tomemos o manual padrão para plotters & conspirators que hoje anima, entre outras, political storylines como as da grandiloquente House of Cards saída da mente observadora de Lord Michael Dobbs. — Oh no you don’t! For sure Master Will peacefully plays at The Globe with the terror and those characteristic brave men in The Tragedy of Macbeth: — ‘Who’s there? ‘Here’s an equivocator that could swear in both the scales against either scale, who committed treason enough for God’s sake, yet could not equivocate to heaven.
St James, 7th November 2016
Very sincerely yours,
V.
PS: Até ao anúncio dos resultados eleitorais, por momentos, with the right reasons, imaginem um West com os USA do President Donald John Trump. It is just in the divided America…
Miguel Veiga em «Os Poemas da Minha Vida» (Público, 2004) lembra Wislawa Szimborska: «na língua da poesia, em que cada palavra é cuidadosamente pesada, nunca nada é vulgar nem normal (…) E sobretudo nem uma qualquer existência neste mundo».
UMA PERSONALIDADE ESPECIAL «Menino e moço cedo me levaram os meus pais a ler poesia» - assim começa a apresentação de «Os Poemas da Minha Vida» de Miguel Veiga. Falo de uma personalidade especial. É um paradigma do que há de melhor no Porto – a cidade livre, que acolheu D. Pedro de braços abertos, como sua casa constitucional. Um dia o Miguel disse: «não passo de um buscador do mundo. O segredo da busca é que não se encontra. Nunca se encontra. Acho-me um obstinado errante». Assim, foi sempre fascinante encontra-lo, contar com a sua palavra, com a sua inteligência. Acontece isso comigo há mais de quarenta anos. O seu infinito foi sempre a curiosidade das coisas. Vi-o sempre desperto para compreender o lado misterioso das coisas, mas com uma clareza de espírito digna do nosso Sá de Miranda – de «antes quebrar que torcer». Para ele, política sem ética é uma vergonha. E tem razão. Por isso, pensou sempre por si e agiu segundo a sua consciência. Foi sempre incómodo, Sendo a política a mais nobre das atividades cívicas, tem de ser exercida com independência. E Miguel Veiga sempre me ensinou que temos de estar permanentemente em condições de dizer não., com todas as consequências – sem dependências ou receios. A ética da responsabilidade é a natural contrapartida da ética da convicção. E, sendo um homem de valores, liga o bem, o belo, o bom, o justo e o verdadeiro. O culto da estética é a consequência de uma ética enraizada na vida. Tem a ver com as pessoas de carne e osso, como dizia Unamuno. Daí a compreensão do pluralismo e das diferenças – na linha de Popper e de Isaiah Berlin. Filho de mãe francesa e de pai beirão soube sempre ligar o requinte e a subtileza da cultura parisiense ás antigas raízes do Portugal inconformista e cioso das suas liberdades, que Garrett e Herculano defenderam de armas na mão e também pela escrita e pelo estudo. Em casa de Miguel Veiga, na sua infância, dir-se-ia que coexistiam Descartes e o lirismo lusitano. «Busque Amor novas artes, novo engenho, / Para matar-me, e novas esquivanças; / Que não pode tirar-me as esperanças, / Que mal me tirará o que não tenho…». Quantas vezes ouvimos o Vasco Graça Moura a repetir a supremacia de Camões… E não podemos esquecer como Miguel não esquecia o seu tio Pedro, homem do Movimento de Renovação Democrática (com Domingos Monteiro, Delfim Santos ou Eduardo Salgueiro…) e dos combates pelas liberdades públicas – cujos traços de personalidade tantas vezes se encontram em Miguel.
MARCAS DE UMA PERSONALIDADE Liberdade e independência eram as marcas da sua personalidade e da sua ação. Com Francisco Sá Carneiro e Artur Santos Silva participou ativamente na fundação em maio de 1974 do PPD. Então o conheci e iniciámos uma relação muito boa, até aos dias de hoje – em que as afinidades eletivas da cultura portuguesa e de um necessário cosmopolitismo têm sido constantes. As idas ao Porto (cidade de algumas das minhas raízes, que representei com muita honra no Parlamento durante década e meia) eram sempre motivo de uma imersão total no fervilhar das ideias. E, como disse já, Vasco Graça Moura fez parte desde muito cedo desse Porto de encontro, acolhedor e hospitaleiro. No Campo Alegre estavam bem presentes Sophia e seu primo Ruben A., mas havia ainda o magistério intelectual do Bispo do Porto D. António. Na Foz, os passeios a usufruir do sol e do mar eram inesquecíveis. «As gaivotas. Vão e vêm. Entram / pela pupila. / Devagar, também os barcos entram. / Por fim o mar. / Não tardará a fadiga da alma. / De tanto olhar, tanto / olhar» - com disse Eugénio de Andrade. Foi assim pela vida fora, designadamente com um amigo comum, o Mário Melo Rocha, muito jovem, de quem tenho muitas saudades… Não esqueço uma memorável noite com Gonzalo Torrente Ballester. Foi um banquete de puro espírito, no sentido do humor e do prazer de encontrar um grande escritor e uma personalidade fascinante, que nos lembrou a génese de «Filomeno, a mi pesar», com todas as suas peripécia galaico-portuguesas, e com quem rimos com gosto sobre a «Crónica del rey pasmado»… As amizades constroem-se pela riqueza das experiências, não pela superficialidade dos chistes.
DIÁLOGO SEMPRE ENRIQUECEDOR Miguel Veiga é uma referência, cujo diálogo é sempre enriquecedor. Já tive oportunidade de recordar como foram importantes o Francisco Sá Carneiro, o Artur Santos Silva, o António Leite de Castro – e ainda o grupo de Coimbra, o António Barbosa de Melo, o Mota Pinto, o Figueiredo Dias, o Costa Andrade. Ao lermos a declaração de voto sobre a Constituição da autoria de Barbosa de Melo compreendemos como o compromisso de 1976 pôde tornar-se duradouro e enriquecer-se em 82, em 89 etc. Assim se pensava o futuro como uma sementeira de ideias. Sinto haver nesta tradição de liberdade, personificada por Miguel Veiga, algo da causa de D. Pedro de autonomia e solidariedade. E o Miguel gosta de falar de «decência» - como seriedade, trabalho competente, higiene de espírito, hombridade… Tem razão. Eu sei que hoje se acha pessimista, mas não esqueço que para os mais novos (como eu era em 74), o Miguel Veiga apontava-nos o caminho da cidadania ativa e empenhada. Ele é do Camus e do Raymond Aron – e continua a ser. Ele é da «Heterodoxia» do Eduardo Lourenço. Miguel Veiga é um exemplo de independência, de liberdade, de horizontes claros e abertos…
UMA NOTA FINAL SOBRE O PORTO Nos últimos anos, a minha relação com o Porto foi marcada pelo encontro com Paulo Cunha e Silva. Antes de o conhecer pessoalmente li os seus textos e amigos comuns fizeram-me chegar as melhores referências. Sendo mais novo que eu dez anos, era alguém que marcou desde muito cedo os campos em que agiu. Era mais um exemplo de um médico que se sentia bem no mundo das artes e da cultura. Quando o encontrei pessoalmente, tudo o que me tinham dito dele foi amplamente excedido. Era um homem culto, atento, disponível, inteligente, multifacetado, desperto para o que de mais importante ia acontecendo e ciente do que uma cidade europeia como o Porto precisaria. Nas primeiras conversas que tivemos revelou-se uma personalidade com sentido prático, sem tempo a perder em aspetos laterais ou em superficialidades. Tinha ideias claras, sabia que o importante era poder obter consequências positivas na valorização da cidade do Porto. Deixou-nos, porém, inesperadamente. Poucos dias antes teve a amabilidade de ir a uma iniciativa em que eu participava. Foi sempre de uma grande generosidade na partilha de ideias e de projetos. O Porto deve-lhe muito. Ainda agora, quando Paulo Cunha e Silva já não está entre nós, o seu impulso e o seu exemplo continuam a fazer-se sentir. A melhor homenagem que pode fazer-se a um homem de ação é reconhecer-se que o seu trabalho e a sua orientação continuam a influenciar o campo de ação!
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
A cabeça degolada de João Baptista, ninguém sabe, ao certo, onde está. Mas há muitas por aí, as relíquias são, umas mais, outras menos, como quadros de grandes mestres e seus falsários: a ânsia de as possuir relega para secundário plano a elementar prudência de as verificar. Seja como for, o facto dessa devoção ser muito antiga e, hoje ainda, se estender do oriente ao ocidente cristão - todas as igrejas celebram, além da festa do nascimento do santo (a 24 de Julho) o martírio da sua decapitação (em 29 de Agosto do calendário gregoriano nas católica, anglicana e luterana, ou do calendário juliano nas igrejas orientais) - diz muito sobre a importância de São João na vida e revelação de Jesus e na memória e no culto do cristianismo.
Mais adiante te contarei o registo de frei Tiago Voragino, a que eu tanto gosto de recorrer, por considerar que é uma bela súmula das devoções cristãs tradicionais, desde a Igreja dos primórdios às vésperas da Renascença... Por enquanto, apenas recordo que, em 29 de Agosto de 2012, o papa Bento XVI celebrava, numa audiência em Castel Gandolfo, a 2ª descoberta (no século V?) da cabeça do santo, então finalmente levada para Constantinopla (?), finalmente depositada na basílica romana de São Silvestre (San Silvestro in Capite), onde se encontra exposta à veneração dos fiéis. Conta-se que a primeira descoberta se dera no século IV, no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, onde Santa Joana a enterrara, para a conservar, depois de a retirar do esterco em que a própria Herodíade, a companheira adúltera de Herodes Antipas, a pusera. Se era a mesma cabeça, ou a que se expõe na catedral de Amiens, ou na Residenz de Munique, ou noutras paragens ainda, não sei. Concluo apenas que é extensa a respetiva devoção, aliás muitas vezes efabulada e cabalizada, como em lendas acerca dos Templários, ou simplesmente inventada, como no caso dos chamados cátaros que, na verdade, tinham horror à tradição joanista do batismo por imersão ou simplesmente pela água. Para esses hereges - em seu tempo chamados Bons Homens e Boas Mulheres, praticantes de uma espiritualidade despojada e ascética, possivelmente de origem gnóstica - o batismo cristão já não é na água, mas em espírito, tal como, aliás, o próprio João ensinava quando se referia a Jesus Cristo dizendo "só vos batizo em água, mas no meio de vós está Aquele que batiza em espírito". Os cátaros praticavam tal batismo, por imposição das mãos, como já relatavam os registos apostólicos.
Mas outra figura surge e se destaca, a par e em contraponto a João Baptista. Trata-se de Salomé, a filha de Herodíade, dançarina feiticeira que, em nome de sua mãe, pede a Herodes, para prémio do encanto do seu bailado, a cabeça do primo de Jesus. Por agora, surge-me a lembrança da ópera Salomé, de Richard Strauss, que, nos anos 90, vi em Savonlinna, no nordeste da Finlândia, no interior de um poderoso e austero castelo medievo. Impressionante! O libreto, como sabes, Princesa, é de Hedwig Lachmann, mas praticamente uma tradução da peça Salomé do Oscar Wilde, escrita em Paris (1891), curiosamente, em francês. O dramaturgo irlandês queixava-se da docilidade obediente de Salomé a sua mãe, como parece resultar do texto evangélico. Para ele, a bailadeira melhor incarnaria outra coisa, bem longe da inocência: Por causa disso, acumularam-se e depuseram-se a seus pés, durante séculos, sonhos e visões, ajudando a fazer dela a flor cardeal de um jardim de perversão.
Tenho diante dos olhos imagens de pinturas de Filippo Lippi e Peter Paul Rubens representando a festa de aniversário de Herodes e Salomé levando ao rei a cabeça do Baptista, numa salva. Na cena da decapitação, por Caravaggio, o prato é seguro por uma criada, uma velhota leva desesperadamente as mãos à cabeça, o quadro é violento e sinistro. Como também o de Hans Memling, em que o degolador põe, na bandeja segura por uma Salomé silenciosa e fria, a cabeça que acaba de cortar. A mesma repousa num prato de pé alto, belíssimae serena, no Andrea Solario, de 1507, que está no Louvre. Este diz-nos bem como as muitas lendas e narrativas acerca dos caminhos que aquela cabeça foi percorrendo levaram a que ela fosse vezes sem conta representada com fins devocionais.
Mas voltando à Salomé de Wilde e de Strauss, essa parece inspirar-se mais num texto de Joris-Karl Huysmans em À Rebours, inspirado na visão de Gustave Moreau, exposta em duas telas, em 1876: Salomé dansant devant Hérode e L´Apparition. Escreve Huysmans que ela lhe surgiu qual divindade simbólica da indestrutível Luxúria, deusa da imortal Histeria, Beleza maldita, eleita entre todas pela catalepsia que lhe enrijece as carnes e endurece os músculos. E, como aparição: Aqui, ela era mesmo rapariga; obedecia ao seu temperamento de mulher ardente e cruel; vivia, mais refinada e mais selvagem, mais execrável e mais requintada; despertava com mais energia os sentidos em letargia do homem, enfeitiçava, domesticava mais seguramente as suas vontades, com o seu encanto de grande flor venérea, crescida em canteiros sacrílegos, criada em estufas ímpias.
Certo mesmo é que o tema escandalizou muita gente: Guilherme II, o imperador da Alemanha, lamentou que Strauss tivesse musicado um Wilde que já indignara Lord Chamberlain. E Sir Thomas Beecham, o maestro que dirigiu a estreia da ópera em Covent Garden, confessa em A Mingled Chime, sua autobiografia: A mais extrema e derradeira concessão que conseguimos, foi que Salomé cantasse diante de uma bandeja totalmente coberta por um véu, mas sem que ali se pudesse pôr qualquer objeto, por pequeno que fosse, pois indiciaria, pela protuberância, a presença da preciosa cabeça. Todavia, o mal-estar causado pelos paradoxos que Wilde levanta é interior, perturba muito mais do que a eventualidade de Salomé estar praticamente nua quando dança, e vi-a assim em Savonlinna. No final da ópera, percebemos que a feiticeira foi vencida pela derrota dos seus próprios trunfos, os seus encantos não submeteram Jochanaan (o nome do Baptista na peça). Agarra-lhe a cabeça cortada, e exclama: Ah! Du woltest mich nicht deinen Mund küssen lassen, Jochanaan! Não quiseste deixar-me beijar-te a boca! Pois bem: beijá-la-ei agora, mordê-la-ei como se trinca um fruto maduro [...] Mas porque não olhas para mim, Jochanaan? Creio que, em carta muito antiga, já te contei, Princesa, essa cena final da ópera de Strauss: Que farei agora? Nem os rios, nem as grandes águas, podem estancar-me a paixão. Porque é que não olhaste para mim? Se tivesses olhado tinhas-me amado. Eu sei que me terias amado, o mistério do amor é maior do que o da morte... Herodes dirá então a Herodíade: A tua filha é um monstro, digo-te eu, ela é um monstro! E quando Salomé insiste, e à cabeça inerte repete: Ah! Beijei-te a boca. Os teus lábios tinham sabor amargo, será o gosto do sangue? Não! Talvez seja o gosto do amor, diz-se que o amor tem sabor acre [...] Herodes gritará aos seus soldados: Man töte dieses Weib! Matem esta mulher! E eles esmagam-na com seus escudos. Cai o pano. E frei Tiago Voragino ficará para a próxima carta.
'I am interested in non-centrality, coexistence, constant invention-making movements that are not repetitious but function together as a whole. There is always an element of non-belonging that holds everything together in tension. I don’t want a lyrical beauty. One could say I want to capture an unborn reality.', Shirley Jaffe
Logo após a experiência geométrica, do final dos anos sessenta, Shirley Jaffe (1923-2016) começou a pouco e pouco a aproximar-se do registo que a caracterizou até ao final da sua vida.
Lê-se no livro 'Shirley Jaffe. Forms of dislocation', de Raphael Rubinstein que por volta de 1983, a artista começou a construir composições com fundo branco. E a partir de então, no campo da tela flutuam gestos solidificados que não se repetem.
Desde sempre Jaffe tenta manter as suas pinturas libertas do que denomina ‘formas secundárias’, isto é, formas que acidentalmente se referem aos objetos do mundo real. E o seu princípio da não repetição também a afasta da criação de padrões e do movimento Pattern and Decoration que surgiu em Nova Iorque, nos anos setenta, em reação aos movimentos minimalismo e conceptualismo.
Até então, nenhuma cor funcionava como fundo - existiam sim diversas e marcadas zonas de cor.
E a descoberta do branco acentuou a complexidade das formas e acentuou a diferença com o mundo real.
Apesar de parecer um fundo, muitas vezes as áreas a branco são decididas já no final da composição. O campo branco é, assim como um espaço positivo e negativo – funciona como ligação entre as formas e existe para ser uma forma intermediária. As formas coloridas não se tocam, muitas vezes por causa das áreas brancas aplicadas entre elas.
'That’s what’s quite exciting about continuing to live and paint. The element of chance, but also taking from experience. One has to constantly push some visual idea to unforeseen conclusions. It might start as an unconscious tendency but has to become a conscious force.', Shirley Jaffe
As formas, que Jaffe cria, são assim transportadas para um estado instável mas sugestivo, um estado em que a separação entre o figurativo e o abstrato é quase inexistente. As formas sugerem algo quase reconhecível e familiar mas apresentam um desafio ao observador - podem ser mãos, folhas, rabiscos, sombras, faces, ondas, signos caligráficos. Curiosamente nos guaches de Jaffe, estas formas quase reais, são muito menos evidentes - o registo é mais rápido, livre e solto, não há fundo branco e a pincelada é visível.
No seu sermão, frei Tiago Voragino irá contar, ao gosto do seu tempo, uma vida de Santa Madalena. Começa por lhe dar família certa, de sangue real, pai chamado Siro, mãe Eucária, irmão Lázaro, irmã Marta. A família de Betânia, de que todavia não constam, no Novo Testamento, os nomes dos progenitores aqui mencionados. Maria é Madalena, porque, da herança paterna, lhe calhou o castelo de Magdala. Dá para filme do Walt Disney, é imaginário, mas sem as presunções e pretensões pseudocientíficas de um Dan Brown, ou qualquer dos seus indigentes seguidores. O arcebispo de Génova, contudo, não poupa nos retratos pessoais: Lázaro dedicava-se sobretudo a empresas militares, Marta administrava com cuidado os bens de sua irmã e seu irmão, e ainda conseguia prover com o necessário os soldados, os servos e os pobres; quanto a Maria, essa não se inibia da entrega desenfreada aos prazeres dos sentidos.
Passo a traduzir: Mas como Madalena usufruía de riquezas, e a volúpia é companheira da abundância de bens, quanto mais ela brilhava pelas suas riqueza e beleza, tanto mais abandonava o próprio corpo à volúpia; e até perdera o próprio nome para somente responder ao de pecadora. Ora, quando Cristo pregava ali e alhures, Madalena, inspirada pela vontade de Deus, apressou-se para a casa de Simão o leproso, onde, ouvira dizer, Cristo fora convidado a jantar; mas não ousando, enquanto pecadora, misturar-se à companhia dos justos, deixou-se ficar atrás, aos pés do Senhor, que lavou com as suas lágrimas, enxugou com o cabelo e cobriu de precioso unguento [...] E quando Simão dizia para consigo que, se Jesus fosse um profeta, não deixaria que uma pecadora lhe tocasse, o Senhor repreendeu-o pelo orgulhoso juízo e absolveu a mulher de todos os seus pecados. Tal é portanto essa Maria Madalena, a quem o Senhor concedeu tão grandes benefícios e a quem deu tantas marcas de afeto. Pois expulsou sete demónios do corpo dela, abrasou-a totalmente de amor por ele, fez dela a sua amiga preferida e hospedeira; quis que fosse ela a ter cuidado dele em seu caminho, e defendeu-a com doçura em todas as circunstâncias. Na verdade, justificou-a diante do fariseu que a dizia impura, de sua irmã que a chamava preguiçosa, junto de Judas, que a acusava de prodigalidade. Vendo as lágrimas dela, não pôde reter as suas. Graças ao seu amor, ressuscitou-lhe o irmão ao fim de quatro dias; em nome do seu afeto, libertou a sua irmã Marta de um fluxo de sangue que há sete anos a afligia; e graças aos seus méritos, Marcela, a serva de sua irmã, foi digna de pronunciar essa palavra tão doce e cheia de felicidade: «Bendito o ventre que te pariu!»
Terás notado, Princesa, que se confundem, propositadamente, aqui, vários passos dos evangelhos: Mateus, 26, 6-7; Marcos, 14, 3 e 16, 9; Lucas, 7, 37-50 e 8, 2 e 10, 38-42 e 11, 27; João, 11, 1-44 e 12, 3-8.
Frei Tiago era, certamente, grande devoto da santa - a quem dedica um dos mais longos capítulos da Legenda - esta sendo uma figura maior da hagiografia medieval, sobretudo na Igreja latina ocidental que aceitou a figura das três Marias numa, forjada por Tertuliano, reconhecida pelo papa Gregório Magno. Na Igreja oriental, greco-bizantina, manteve-se a distinção das três mulheres referidas. No Ocidente, todavia, a devoção popular, e o pertinente culto, juntou ainda, às três Marias evangélicas, a figura de outra pecadora: Maria Egipcíaca, personagem que não escapou ao nosso querido António Alçada Baptista. E que, com o nome de Thaïs, é heroína de uma novela de Anatole France e da ópera de Jules Massenet, nele inspirada e com o mesmo título. Cortesã, é convertida por um santo cenobita e acaba por viver no deserto, em oração e penitência. Frei Tiago também põe a Madalena a viver trinta anos num deserto (algures, no Midi da França?), antes de ser arrebatada ao céu por um bando de anjos... Mas a ópera acaba, na versão que tenho cá em casa, com a morte de Thaïs-Renée Fleming a cantar Ah! Le ciel! Je vois... Dieu! e o monge Athanaël-Thomas Hampton exclamando Morte! Pitié!, pois se tinham, entretanto, invertido os papéis, e o pobre cenobita quedara-se enfeitiçado pelos encantos da mulher...
Como acontecerá com a cabeça degolada de João Baptista - assunto para próxima carta - a veneração de Madalena reclamar-se-á da presença corporal da santa, ou das suas relíquias, em variadas paragens, desde Éfeso, na Turquia atual, donde a terá expulso o ódio dos judeus, até Constantinopla e Jerusalém, passando, e demorando-se, por diversas localidades do sul de Itália e, sobretudo, de França: Vézelay, num caminho de São Tiago de Compostela, Marselha, Saint Maximin da Provença... Aqui, conta uma crónica, a descoberta, em 1279-1280 (12 de Dezembro de 1279?), por Carlos d´Anjou, do sarcófago da santa numa capela funerária paleocristã levou à construção de uma basílica, confiada aos dominicanos, e a um surto do respetivo culto, tornando-se aquele convento um destino de popular peregrinação provençal. Ainda hoje dura, apesar de Éfeso, Jerusalém ou Vézelay reclamarem também para si o repouso final do corpo de Maria Madalena...
Pensossinto agora, minha Princesa de mim, como nos é tão familiar - aceitável, direi, corretamente proposto e edificante - o tema da mulher pecadora que se redime. Recordo a Traviata, poderia lembrar a Butterfly, há sempre maneira de invocar a culpa da mulher e o sacrifício dela... Quiçá por isso, eu, que não sou devoto, talvez compreenda a primazia dada a Santa Maria Madalena, mulher insigne no panteão de tantos homens - muitos clérigos - sempre santos... Será a misoginia uma mancha indelével no cristianismo? A mulher, se não for a Imaculada Conceição - a Virgem Maria nascida sem pecado original - lembra sempre o pecado, logo desde o original...
Nobel em 2013. A sua produção literária, a sua obra musical, tornou-o um dos grandes vultos culturais dos últimos 100 anos.
Deito mão ao tradutor e autor do prefácio Joaquim Palma ao livro de R. Tagore para dizer melhor da singularidade deste ser que nos deixou a companhia de um tudo.
O livro “A Asa e a Luz” que surge das características de cada um dos livros “Pássaros Perdidos” e “Pirilampos” é uma edição de 2016 da Assírio e Alvim, a quem ficamos a dever também o conhecimento deste espírito inovador de Tagore.
Nasce em Calcutá em 1861 numa família abastada e contrariando objetivos familiares abandona o curso de Direito e inicia uma estrada muito sua. A sua natural expressão é a poesia tendo composto e interpretado cerca de 200 canções que muito influenciaram o ocidente.
A pintura não lhe foi alheia e o seu legado é profundamente respeitado. Numa dedicação sincera às questões sociais, não deixou de fundar a escola Santiniketan, ainda hoje viva a um legado de desenvolvimento harmonioso entre saberes académicos e as bases da real espiritualidade do ser, tendo sido a verba do Nobel aqui desenvolvida.
Confesso que me atrai também em Tagore, o seu pensamento pelas ideias de Mahatma perguntando-se pela «violenta» da não-violência de Gandhi. Belicismo oculto? Enfim, muitas correspondências com Einstein, André Gide, Roland, Wells, entre outros, abriram muitos dos caminhos da ciência, da religião e da liberdade.
Para Tagore os limites geográficos já tinham perdido o seu significado e a proximidade entre as gentes só se podia dar através do amor. Esta busca de verdade sai reforçada nas suas viagens ao Japão e à China por volta de 1916 levando-o a uma experiência do real e do transcendental, únicas.
E diz:
Perdi a minha gota de orvalho, lamentou-se a flor para o céu da manhã que tinha perdido todas as estrelas.
(…) Deixem em paz o meu descanso que, quando não tenho que fazer, isso me traz uma indizível quietude na sua profundidade de paz, como o anoitecer num areal de águas serenas. (…)
O melhor não vem sozinho. Ele vem na companhia de tudo. (Não quero estar errado para o mundo, para que ele não esteja contra mim. A súplica repreende-me por eu, secretamente, a mendigar.
A poesia haiku embora seguida sem preocupações de perfeição, acaba por provar o quanto não são precisas muitas palavras para nos expressarmos. Tagore fica na planície do aforismo, dos breves poemas, verdadeiros exércitos literários, mas rarefeitos ao silêncio que por eles espreita. Assim penso, permita-se que o diga. Acima de tudo, hoje este é o desafio que faço à leitura deste livro. E tão nítido
«Vou remover a minha lamparina,
sem me preocupar
se ela ajuda ou não a remover a escuridão»,
diz a estrela.
(…) Antes do fim da minha jornada,
que eu possa chegar dentro de mim mesmo
àquilo que é tudo,
deixando o invólucro da pele
ir flutuando à deriva com a multidão
na corrente do acaso e da mudança!
Quero tanto a música igual a um sorriso que um dia vi. Sonho com uma viagem na sua direção. Quero tanto e tanto o brilho da curiosidade por este livro.
Assinalamos aqui uma, chamemos-lhe “tradição oitocentista” de edifícios de teatros e /ou cineteatros na cidade de Santarém: mas refira-se que o mais significativo, no ponto de vista urbano, técnico e arquitetónico, está abandonado, mais ou menos arruinado e dele restará, mal, a fachada – e isto, apesar da tradição, da memória e inclusive, da organização recente de movimentos de cidadãos para o restauro daquilo que resta.
O que resta é a fachada do Teatro Rosa Damasceno, projeto do arquiteto Amílcar Pinto, inaugurado em 1938 e de certo modo inspirado no Eden lisboeta. Mas assinala-se que este Teatro, ou melhor, este cineteatro de Santarém, ou o que dele resta, situa-se rigorosamente no local onde, em 1884, se inaugurou um então chamado Teatro de Santarém, com 800 lugares de plateia, 60 camarotes e geral. E esse é que, em 1893, passa a chamar-se Teatro Rosa Damasceno, homenagem à atriz que viria a falecer em 1904 e que inaugurou o Trindade de Lisboa.
O projeto original do Teatro Rosa Damasceno de 1884/1893 deve-se ao arquiteto José Luís Monteiro e inspira-se de certo modo no velho Teatro Gymnasio de Lisboa.
Jorge Custódio, num relatório elaborado para a Camara Municipal de Santarém e que cito em “Teatros de Portugal” (ed. INAPA 2005 págs. 65/66) compara os dois Teatros Rosa Damasceno numa perspetiva de análise arquitetónica.
Assim, no primeiro, (1884) “nota-se a influência clássica assumida na organização da fachada, na modelação de frontões circulares e quebrados das janelas e no apontamento das pilastras decorativas que ritmam o 1º piso”.
Isto, no que se refere pois ao primeiro Teatro Rosa Damasceno. Porque, quanto ao segundo, Jorge Custódio sublinha a diferença de estilos arquitetónicos: “Se na primeira sala o teatro responde ao gosto romântico, eclético rebuscado de arquitetura e arte de belle époque, a nova sala procura romper com a tradição oitocentista da arquitetura de Santarém, enveredando claramente pela arte moderna, pelo internacional style, pela art deco (…) uma obra-prima”…
E este segundo Teatro Rosa Damasceno, de que resta apenas a fachada, merece destaque encomiástico de José Manuel Fernandes, documentado por uma fotografia: “assume uma qualidade invulgar quer no desenho e volumetria exterior, quer no ambiente interior. Projeto de 1939, de Amílcar Pinto, apresenta interessantes desenhos de luz nos foyers e camarotes e uma luminosa geometria nos envolvimentos da fachada” – que foi o que restou… (in “Cinemas de Portugal” ed. INAPA pág. 128).
E deve-se referir ainda uma tradição de teatros e de espetáculos em Santarém, que descrevo no meu livro acima citado. Assim, refiro um Teatro S. João de Santarém ou São João de Alporão, que entre 1849 e 1876 ocupou e transformou a velha Igreja de São João de Alporão, onde se instalaria o Museu Arqueológico. E já antes se produziram espetáculos na Igreja de São Martinho, em 1810/11, no quadro das invasões francesas; ou uma representação do “Frei Luís de Sousa” em 1847, a que Herculano teria assistido…
E cito para terminar algumas referências expressas e ambientais a Santarém no teatro português: desde logo “O Alfageme de Santarém” (1842) e “Falar Verdade a Mentir” (1845) de Garrett, onde uma das invenções compulsivas do protagonista Duarte é “ter sido recebedor em Santarém”; ou “A Tomada de Santarém por D. Afonso Henriques” (1846) de José Maria Bordalo, ou tantas mais peças de Salvador Marques, Alves Redol, ou, até pelo, pseudónimo, as peças de Bernardo Santareno!