A FORÇA DO ATO CRIADOR
Mary Heilmann, autobiografia plástica.
Narrativas pessoais são abordadas através de uma linguagem depurada, de cores vibrantes, tintas espessas e brilhantes.
Cada bloco de cor transmite memórias, amizades, lugares e músicas.
'Each of my paintings can be seen as an autobiographical marker'., Mary Heilmann
Mary Heilmann (São Francisco, 1940) pinta a sua própria vida. As grelhas, as riscas, as cores planas referem-se a experiências pessoais - a momentos específicos do passado e do futuro projetado. Cada pintura dá forma física a uma realidade mental. Cada pintura inclui num só espaço, vários tipos de espaço. Heilmann, enquanto pinta, trabalha com a ideia de que o olho e a mente vão-se alternando assim como o sentido de espaço - para a frente e para trás, para cima e para baixo. É uma pintura capaz de conter simultaneamente o limite que separa e a linha que aproxima; o contorno do espaço e a forma das coisas; o que rodeia e o que se sobrepõe. Heilmann consegue mover no tempo, um momento estático - uma só pintura pode assim ser olhada durante horas, como se de um filme se tratasse.
Heilmann estudou cerâmica, escultura, literatura e poesia. No final dos anos sessenta, as suas esculturas eram informadas pelo trabalho de Bruce Nauman, Richard Serra e Eva Hesse. Porém em 1969, tal como Heilmann escreve em The All Night Movie (1999): 'I was devastated not to be included in Anti-Illusion, a turning point show in 1969 at the Whitney. As a result, I abandoned the sculptural work I was doing and as a rebellious move, switched to the much-maligned practice, painting.'
Heilmann resolveu assim dedicar-se à pintura, apesar de ter sido dada como 'morta', apesar de ir contra a corrente conceptual que dominava o cenário artístico de então, apesar de que na verdade nunca iria abandonar a cerâmica nem a escultura (isto porque as suas cadeiras coloridas são sem dúvida também objetos).
Briony Fer, no texto 'Mary Heilmann, Painting, Her Way.' afirma que na prática de Heilmann tudo parece inacabado, provisório e por decidir. Embora Heilmann queira afirmar a pintura como a sua prática principal, fica sempre a dúvida se a tela saturadamente colorida é simplesmente um objeto, ou vários objetos que se encaixam e que se completam.
Foi no final dos anos setenta, após um agitado período em Nova Iorque, que Heilmann voltou a São Francisco e que descobriu um sentido novo (o mesmo que ainda hoje determina e justifica a sua maneira de trabalhar) para as suas pinturas geométricas coloridas - agora o trabalho apresenta um conteúdo totalmente singular, e tem uma origem puramente pessoal: 'Instead of working out of the dogma of modernist nonimage formalism, I began to see that the choices in the work depended more on content for their meaning. It was the beginning of postmodernism. It was a big minute for me. Everything would be different. I was listening to Brian Eno and John Cale and getting the idea that the work's style could be the work's content.'
Heilmann, a partir de então, teve a intenção clara de criar a sua própria pintura. Segundo Briony Fer, a noção de estrutura exterior (como se de um andaime se tratasse) é a origem de toda a pintura de Heilmann - e que constrói e cria composições em zigzag, com xadrez, com bolas, às riscas, com teias e rachas. Mas também, claro, a cor, é o instrumento mais poderoso e elástico que se estende pela pintura ou conjunto de pinturas e objetos que, por sua vez, se espalham na parede. É a cor que separa e que liga, que aproxima e que afasta, que dá leveza e que dá peso. A sua paleta de cores é muito variada - verde, preto, rosa, vermelho, amarelo, azul...- e é escolhida pela artista segundo um critério autobiográfico e não teórico ou pré-fabricado. A cor da pintura de Heilmann deixa transparecer a experiência plástica da cerâmica - o processo de moldar, de derreter, de fixar, de solidificar.
Sendo assim, a pintura autobiográfica de Heilmann é constantemente experimental e elástica - permanentemente suscetível de deslocar as coordenadas da vida de quem a observa.
Ana Ruepp