CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Singular escritora é Maria Gabriela Llansol. Morreu há oito anos, quando ainda tinha, cumpridos, mais onze anos do que eu. Descobria-a não sei bem quando, sei apenas que me apanhou de surpresa, como, anos antes, me prendera outra insólita escrita, a de Ruben A., o primo de Sophia. Hoje ainda, para mim, lê-los é um passeio de liberdade interior, a cedência à provocação de um abandono consentido. O prazer do leitor que incautamente se transforma na coisa lida. Desta feita, agarrei, de um caixote de livros que abrira para os arrumar nas estantes abertas do meu bucólico retiro, no Livro de Horas I - Uma Data em cada Mão - caderno de apontamentos esparsos tomados, entre 1972 e 1977, em Lovaina e Jodoigne... Conheci bem Lovaina e a sua universidade (quer a Leuven, quer a Louvain-la-Neuve), num período da minha vida em que a frequentei como, séculos antes, Damião de Góis, amigo de Erasmo, a amara e defendera. Também conheci as abadias beneditinas de Maredret e Maredsous, onde uma tia e um tio meu, respetivamente, eram oblatos, espiritualidade que partilhavam com o arquiduque Otão de Habsburgo, seu amigo, que em casa deles conheci. Muito jovem ainda, li e reli Eckhart e S. João da Cruz, passeei-me por Nietzsche... Sem saber que Maria Gabriela Llansol, no seu exílio belga, se repartia entre Jodoigne e Lovaina, frequentava Maredret e Maredsous, onde privava com São João da Cruz e Mestre Eckhart, e os relacionava com Müntzer e Nietzsche. A surpresa destas referências determinou-me uma noite de leitura, arrastado por inesperada simpatia, por alguém que, indiferentemente, calha em escrever tanto em francês como em português e que, tal como eu também, pode candidamente afirmar que retardo o momento de começar a ler o livro, antecipo-me ao prazer de ler, escrevendo. E fui descobrindo afinidades que são incautas concordâncias, como neste trecho escrito a pretexto de umas lebrezinhas que recolheu e alimentou:
As lebres são minúsculas, e quase acabadas de nascer. O que são três semanas? Um mês?
Ontem à noite, o Augusto dizia que eram três homens, três déspotas - Estaline, Hitler, Napoleão - voltadas, por força do ciclo eterno, ao sábio contacto com a erva verde.
Penso no amor, mas o amor não é o que correntemente se diz ser. Aceder à consciência do amor, de mim própria ter conhecimento, identificar-se é secundário.
O que é importante é fazer parte, diferenciando-se.
A frase é dela, carregado é meu, Princesa. Pois, apesar da intimidade espontânea do meu convívio com a Maria Gabriela e tantas das suas referências, não experimento igual gosto de um ambiente onírico, é bem mais despojado e chão o meu percurso místico. E, por muito que tivesse simpatizado e tentado compreender a condição feminina, nunca lhe fui alheio, mas sempre estranho, isto é, diferente. Aliás, acho que a diferença entre mulher e homem é condição necessária de ambos serem parte um do outro. Creio que, aí também, me encontro com Gabriela Llansol: a diferença faz a unidade, só entre seres diferentes pode haver uma comunhão, consciência desse corpo a que todos pertencemos e São Paulo dizia que é tudo em todos. Por isso, neste tempo de espera do Natal próximo - tão próximo que está fora do tempo, não sabemos quando virá finalmente - partilho da visão mística da cosmo-génese de Teilhard de Chardin, sem qualquer tentação panteísta, porque a união na harmonia não é nem pode ser monolítica, está antes próxima da visão do paraíso na profecia de Isaías, da pacificação dos antagonismos e dos medos: o menino põe a mão na toca da serpente... Não sei, Princesa de mim, se te lembras ainda duns escritos meus para o blogue do CNC, pelo Natal de 2012, salvo erro, evocando textos da Legenda Aurea de frei Tiago Voragino sobre a Natividade do Senhor, e daquele Presépio a que chamei cósmico. Voltava, afinal, a esse mistério da relação ontológica de Deus com o mundo, o homem, a história - que todavia não podemos entender pelas nossas categorias mentais, pois não se encontra no espaço, nem no tempo. Tal como só na contemplação mística enxergamos o nada de Deus, como diz Mestre Eckhart, o nada criador de tudo. Ou conseguimos, como São João da Cruz, só na noite cerrada ver a luz (mandar-te-ei um poema do carmelita espanhol, que traduzi para ti). Maria Gabriela, pensossinto, conviveu com tudo isso: Quando vêm Beatriz, o gato, Nietzsche ou Hadewijch, eles não são vários nem muitos. São uma parte de mim que sou uma parte deles. Entram sem falar e encontro-os, sem me surpreender, em qualquer sítio da casa; ocupam o que na imensidade é nosso e dos que hão-de vir -deixemos para cada um o seu provisório, para nós todos a vida eterna.
E, para terminar esta carta, deixo-te outra expressão de Maria Gabriela Llansol, que tão lindamente toca teclas minhas que também já soaram nas muitas cartas que te tenho escrito: Chegado o Inverno, ainda ficarei aqui sentada, às vezes, atrás da clematite que nessa altura não terá folhas. Que importa? Lembrar-me-ei, sobretudo saberei que o Inverno é um vazio cheio de sentido sempre com o propósito de elevar a matéria à vida eterna.
O tempo, creio, já não se move.
Quantas vezes, Princesa de mim, te terei falado do milagroso mistério da fecundidade destes campos que agora vejo frios, silenciosos, despojados?
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira