CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Muitas vezes terás visto uma qualquer cópia ou reprodução do famoso Cristo de São João da Cruz, ou o quadro de Salvador Dali representando Cristo crucificado. Pôs-lhe o pintor surrealista esse nome, porque, na verdade, ele inspira-se indubitavelmente - basta olhar para um e para outro - naquele desenhado pelo místico carmelita. Reparei em ambos - no quadro de Dali e no desenho de frei João da Cruz - ao folhear mais um dos livros que vou arrumando. E logo me ocorreu que te tinha prometido o envio duma tradução (livre) de um poema do santo. Aqui vai:
Noite Escura da Alma
Numa noite escura,
por ânsias de amor inflamada
- Ó ditosa ventura! -
saí sem ser notada,
da casa já sossegada.
Às escuras e segura,
por escada secreta, disfarçada
- Ó ditosa ventura! -
às escuras, pela calada,
da casa já sossegada.
Na noite ditosa,
em segredo. Ninguém me via,
nem eu nada apercebia,
sem outra luz, outro guia,
além do coração que ardia.
E essa luz me guiava,
melhor do que o meio-dia,
até onde me esperava
quem certamente estaria
onde mais ninguém surgia.
Ó noite que me guiaste!
Ó noite mais amável que a alvorada,
ó noite que juntaste
o amado com a amada,
amada no Amado transformada!
No meu peito florido,
que todo p´ra Ele guardava,
aí ficou adormecido,
e aí eu o mimava.
Com leque de cedro o refrescava...
O ar da madrugada,
quando o cabelo lhe sentia,
com sua mão de fada,
o meu colo já feria,
e meus sentidos suspendia.
Quedei-me e olvidei-me.
Reclinei o rosto sobre o amado,
declinei o meu cuidado,
às açucenas abandonado.
Em São João da Cruz, a experiência mística é uma criança que se abandona à confiança, a sua voz é poética, tem o lirismo intuitivo da inocência.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira