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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Aqui tens o prometido texto, tirado de Um Beijo Dado Mais Tarde que, escreve João Barrento, arrasta consigo o estigma de um diferimento afetivo, de um atraso no tempo, de uma tensão dilemática com a memória. Ou, poderíamos também dizer já, pensando neste não romance de Maria Gabriela Llansol, um desfasamento entre a língua que nos é dada e a voz própria que um dia assumimos -  ou não. Por mim, encontro nele, também, quiçá sobretudo, a saída de um espaço-tempo real, mensurável, que eu próprio muitas vezes experimento, como já te disse, Princesa, ainda que sem o devaneio onírico de Maria Gabriela. Dou-lhe, a ela, a palavra:

 

   Bach canta pela voz de Anna Magdalena, é aquele que ocupa o centro do toucador, junto do espelho.

 

   Será uma profanação fazer diligência por encontrar a arte nos restos humanos? Será errado encontrar-me com o sagrado neste quarto, a olhar a forma sentimental destas figuras acompanhantes, e destes móveis? O que é meu não é meu, estou na parte do templo destinada aos que vivem envoltos em mistério. Assafora jacente é o fim de que nasce um ser, e faço-lhe uma festa tímida na testa, ou à silhueta de navio do seu ir-se embora; que toda a obscuridade seja móvel, e deslize para fora do quarto, mesmo a minha, pois não sei exprimir a ideia que me provoca aquele ser finito, com substância infinita. Será realmente infinita, ou engano-me nas palavras, manchando o canto com que entrei?

 

   A música já não é minha, percorre o corredor do espaço até à sala de jantar onde, numa certa cena, construí a minha infância. Que grande terror terem-me mandado até aqui, já não como filha da casa, mas como neblina muito densa de onde se espera a luz; ao fixar uma salva, tenho um sonho de prata desenhado a lápis no meu pulso; dos lagos, no seio das águas do mar   com um golpe de navalha; a partir do que nele leio, reconstituo a minha visão, que gostaria que fosse ouvida pela minha tia doente: estou na grande sala onde habitualmente vivo, e somos, no máximo, três; de modo natural, é noite lá fora, onde há um jardim com árvores soltas, cantadas por alguém que conhece o espaço; fitas douradas, lianas capazes de doçura, pendem dos ramos fixando nossos olhos; a noite ressai até dentro de nós e reparo na cómoda onde essas mulheres guardam os nomes que dão às coisas da sua conveniência; na primeira gaveta entreaberta, chove. Vou busca-la, e vejo que algumas palavras estão negras, enquanto que outras são azuis e douradas. - Também há tristeza no paraíso - diz-me Bach, que se liga a outra mão para a segurar. 

 

   Respiro. Fazem permutar as palavras. Inebriada por esse álcool, encontro-me na rua, também eu munida de desejo e de poder. Vou a uma loja que tem a porta quase coberta por um monte de palavras. Alguém, deitado no chão, procura penetrar o monte e eu baixo-me para impedir que as palavras se espalhem na rua; surge então, em lugar inferior às sílabas / letras e acentos, um ninho de gatos brancos que reconheci serem aves do paraíso. - Também há alegria sobre a terra - diz-me Bach.

 

   Gosto muito desta escrita. Não lhe faço comentários "técnicos", pois para tanto me faltam conhecimentos, competência e jeito. Creio que este texto não foi redigido no exílio belga da autora, mas já depois, talvez em Colares ou Sintra. Não sei. Mas tenho-o, para mim, que ele traz a marca indelével de um exílio interior, é mesmo sinal de uma vocação de exílio. Recordo um passo de carta que Maria Gabriela escreveu em 1980, em Herbais, Bélgica, lembrando a partida: Em dezembro de 1965 abandono Portugal. À falta de alguém ou de um animal para acompanhar-me na viagem aérea, levo nas mãos os "Salmos" de David; está presente a ideia do Êxodo. O Êxodo é uma aventura interior, não necessariamente uma viagem no espaço. Vivi mais de metade da minha vida fora do meu país, e trinta desses muitos anos de exílio passei-os entre gente que não falava a minha língua. Tudo isso aconteceu por opção minha, sem outras pressões além de uma vocação de desprendimento. Maria Gabriela Llansol emigrou para estar com seu marido, refratário à guerra de África. Mas assumiu o exílio como decisão sua, precisou de interiorizar uma presença fiel na ausência, a essência da saudade. Aí me encontro profundamente com ela, que nunca conheci. Não só pela vivência de um rasgão, mas pelo modo como se compensa: amor à língua materna, carinhosamente tratada e educada, e ainda a perceção de que, como Gabriela tão bem diz, para mim, o exílio faz parte da escrita, e não quero perdê-los; dá-me o afastamento de pressões, a distância para poder ver sem entraves e imaginar...   ... O exílio. A língua portuguesa já não a ouço quotidianamente à minha volta; nem a falo; os livros dos escritores portugueses são-me enviados e eu principio a criar as representações da língua ausente... E sobre o extremo ocidental do Brabante, onde se refugiou, escreve: Reconheço que sempre vivi nesse país sem tentar mergulhar nele, e torna-lo meu; mas como poderia ser diferente, se eu própria me afastava daquele em que tinha nascido e, pouco a pouco, não possuía do passado senão uma língua de que nada, nem ninguém, conseguiriam separar-me.

 

   E será acerca do seu primeiro livro, inteiramente escrito na Bélgica, que ela confessará, no esboço de uma carta dirigida à Moraes Editora, em 1977, publicado, mais tarde, no Livro de Horas II - Um Arco Singular (Lisboa, Assírio e Alvim, 2010) que momento tão importante como o da aprendizagem da escrita foi o da escolha do exílio. Exílio corporal, não presença, mas também a lenta aquisição do espírito da distância, onde "O Livro das Comunidades" nasceu e se vai apagando a cartilha das referências, hierarquias que estratificam a posse e o uso do poder, e a categorização espontânea do tempo; os livros que se seguem (como dizer?) continuam a luta contra a minha cultura. Sempre penseissenti o amor como fator de transformação, posto que não pode, não deve quedar-se; antes vive precisamente por ser atuante. No entendimento dos casais, como na educação dos filhos ou discípulos, o labor amoroso também sabe remar contra a maré. Assim nós, portugueses, devemos amar a língua portuguesa, a nossa Pátria, diria Pessoa, cultivando-a. E qualquer cultura implica uma forma de amorosa violência... A ousadia é o princípio do amor, a transformação renovadora o seu pão de cada dia. 

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira