Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Está, creio que de passagem, como tudo, um dia de inverno e céu azul, cheio de sol e respirando um ar quieto, silencioso. Cedo de manhã, os campos à minha vista estavam brancos, como se tivesse nevado. Era a geada, a humidade humilde da terra dada ao frio da noite. Fiquei a ver o sol acordar e a levantar do chão, envolvendo as vides tolhidas e as árvores nuas, pelo ar pálido, um só manto de névoa etérea e fina. E deixei-me levar também, como se me aquecesse uma calada lembrança de Deus...

 

   Ao recordar agora esse momento telúrico de grande paz, ocorre-me um passo da carta do poeta Christian Bobin ao monge beneditino François Cassingena-Trévedy, a agradecer-lhe ter escrito um livro, que a Desclée de Brouwer recentemente publicou: Cantique de l´Infinistère, relato de um percurso místico pela natureza do Auvergne, simultaneamente caminhada física de longo curso. Escreveu Bobin: Gosto desse passeio a seu lado e do seu modo de fazer estalar a língua francesa, como neve azulada, sob a raridade de algumas palavras precisas, nunca preciosistas. Leva o leitor ao deserto, para que ele aí encontre anjos, anjos bons. Há duas noites que adormeço na neve, enamorado de uma vida tão elementar que acaba por ser a profundidade absoluta. Amar a vida é amar Deus sem o conhecer, e eis toda a ciência que podemos ter no coração. Para melhor entenderes, Princesa de mim, o que o poeta disse da escrita do monge, transcrevo, no francês original (terá de ser!), um trecho do livro que, em português, poderia ter o lindo título de Cântico de Infinisterra:

 

   La marche de longue haleine esseule, elle dessaoule de ce grand étourdissement, de cette distraction entretenue, de ce sacrilège continuel qu´est la vie courante (et pourtant si sédentaire). Elle exonere, elle débarasse l´homme, dans l´oubli de tout arriéré, et l´assortit au bleu, au vert, au brun, là-bas, vers lequel il pérégrine. Mais pour autant, c´est peu dire, c´est mal dire qu´elle spiritualise l´homme: elle l´incarne plutôt et l´enracine, elle l´installe solidement dans l´entier naturel de l´univers...

 

   Saboreado o francês do monge beneditino, sirvo-te também esta minha versão portuguesa: «A caminhada de fundo isola, desinebria dessa grande tontura, dessa distracção cultivada, desse contínuo sacrilégio que é a vida corrente (e contudo tão sedentária). Exonera, desembaraça o homem, em esquecimento de qualquer passado, e combina-o com o azul, o verde, o castanho, no além, para o qual peregrina. Mas todavia direi pouco, direi mal, se disser que ela espiritualiza o homem: antes o incarna e enraíza, instala-o solidamente na inteireza natural do universo».

 

   Esta manhã, bem cedinho, ainda estremunhado e medricas de frio, criei raízes na terra, sob a geada branca, fui descobrindo com o sol - que, afinal e sempre, se ergue para todos - fui descobrindo as cores da vida, e subi com elas, nessa névoa véu que voa... Assim envelheço, Princesa, como um rebento que espera a primavera. 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira