CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Ruben A.
Minha Princesa de mim.
Vivi hoje uma experiência intrigante para mim, quiçá despicienda para outros: cheguei a casa, aqui no meio do campo, depois de quatro dias de cidade e hospital, com uma cicatriz (?) inchada no pescoço, vaga memória de uma cirurgia e o habitual desarranjo dos antibióticos. Tudo OK! Vim direitinho a este gabinete onde me guardo de muitos malefícios, e passeei o olhar turvo para além da janela, sobre os campos que uma quieta tristeza invernal e uma paz sem tempo me descobriram bem belos... Foi um alívio, renasci, isto é, abri olhos novos. Tinha levado comigo, para entretém convalescente, Os Degraus do Parnaso, do M. S. Lourenço, A Restante Vida, da Maria Gabriela Llansol, e o 1º volume de O Mundo à Minha Procura, do Rúben A. Tenho coisas para te dizer de todos eles, ou melhor, dos passos deles que fui relendo. Mas agora, já caída a noite, e a caminho de um aconchego no silêncio que recolhe esta casa quase deserta, quero transcrever-te um trecho de O Mundo à Minha Procura - que levarei para vale de lençóis: Sou, portanto, contrário a que uma autobiografia se escreva no momento da reforma, quando se deixou de ser chefe de Estado, se abandonou a vida pública, ou quando da caneta já nada mais pinga. Uma autobiografia como O Mundo à Minha Procura só pode ser escrita por volta dos quarenta anos. Deixá-la para mais tarde é deixar vivência poderosa que se acarreta, mas que na pista dos quarenta tem de alijar parte da carga que trouxera das estações do passado. Dos quarenta aos cinquenta, limpa-se a casa. Põem-se telhas onde faltam, instala-se um novo sistema sentimental, e no jardim das delícias, no passeio depois do jantar, nas madrugadas sem Deus, ouvimos uma voz que nos buzina que dali para a frente a contagem é outra...
Reconheço-me, nesta vida campestre que há três meses iniciei, na limpeza da casa, nas telhas procuradas, num novo sistema de sentimento do mundo, num jardim com a delícia de inexplicável paz, nessa voz que me diz, todas as manhãs, que daqui para a frente a contagem é outra. Essa é, para mim, a voz da Misericórdia a acolher-me, e sempre me diz que não tenha pressa, pois o dia que chega é como todos os outros: traz suor e pão. Tampouco tenho com que escrever uma autobiografia, ainda que me aproximando de duas vezes quarenta... Seja como for, viver no campo faz do citadino de mim um velho novo.
Rúben A. publicou este primeiro volume da sua autobiografia em 1966, com quarenta e seis anos de idade, nove antes de morrer, de um enfarte, em Londres. O título está bem achado, o que o autor nos conta é a história dos seus encontros e desencontros com o mundo, a dialética dele mesmo com a sua circunstância, que tanto o faz tornar-se dela como dela fugir. Eis a vida de um ser em relação, narrada com a simplicidade de memórias autênticas, percebida com desconcertante ingenuidade, esta entendida como a inocência inicial. Quando há décadas li pela primeira vez o livro todo, aconteceu-me o que me sucedeu com El Amor en los Tiempos del Colera do Gabriel Garcia Marquez e O Ano da Morte de Ricardo Reis do José Saramago: levei o volume para a cama e só o fechei na manhã seguinte. Mais tarde, regressei a eles todos, para reler passos ou trechos, e também acabei sempre por descobrir coisas que antes não encontrara. Esta noite, reencontrei aquela parte em que Rúben A. nos conta: Vem-me logo à imaginação o caminhar apressado da rua para apanhar o elétrico que dava mesmo para a primeira aula, aquela rua sem fim, palmilhada com o credo na boca e que servia aos últimos momentos para, de livro em punho, saltando de cova em cova, estudar, rever, passar a limpo pela memória as conjugações irregulares dos verbos franceses, as descrições mineralógicas de cristais que viviam apenas na minha imaginação, e o muito teórico latim, o famigerado latim, o facinorado latim. E o horror que eu tinha em ir ser chamado, em ir pôr-me em sentido diante dos professores de gerações já passadas há muito tempo! Quem escreve aquelas linhas é licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra e no momento da escrita, penso, seria funcionário da Embaixada do Brasil em Lisboa. Ou antes será o adolescente que morava na casa grande da sua avó, na Quinta do Campo Alegre, no Porto (onde hoje é o Jardim Botânico) e vai a caminho do liceu?
Desta feita, o que descobri (novamente?) e me fez pensar foi algo que com alguma frequência pensossinto, sempre com receio de estar a ser injusto, isto é, de ter mais direito ou virtude do que outros. A dado passo, não é o jovem liceal que fala, mas certamente o homem maduro, mordido e marcado: Na sociedade portuguesa há um ciúme indescritível perante a coragem e perante a cultura. Que um dos seus membros se liberte pelo espírito ou pelo valor humano é o maior insulto que eles, atrasados culturais, julgam que se lhes pode fazer. Sentem-se ofendidos, reagem de certo modo com maledicência, uma vez que não tendo nem grandes amores nem grandes ódios oferecem apenas o mesquinho da perseguição, fechando as casas, achando as pessoas um peso, ou votando a um ostracismo aqueles três ou quatro - em cada década só há também três ou quatro aves migradoras - bodes expiatórios da purga mental da sociedade, ancorados para toda a vida a um inferno. Esquecem-se da felicidade que irá acolher os eleitos, os que souberam fazer a escolha depois de anos de amadurecida visão, depois de terem estado sós... ... Não compreendem, porque está fora do seu alcance, o sentido de plenitude contemplativa que paira em seres semelhantes mas de idioma mais delicado... ...São os cadáveres adiados que procriam, de que fala o genial Pessoa... ... Têm uma linguagem especial; raros são os que tentam novo alfabeto. Só conheci um homem rico e civilizado em Portugal - o resto são amigos uns dos outros, falam em cifras, comungam moedas, apertam a mão em notas e quando conjugam a primeira pessoa do presente do indicativo do verbo dar enganam-se e dizem o pretérito em dei. Já dei, já dei, como quem foge a esconder-se de uma peste. Não tenho tido, na vida, mesmo apesar de agressões sofridas, experiências traumatizantes. Talvez por sempre me ter lembrado desse ensinamento de minha Mãe que dizia como, perante, certos ataques ou negações da nossa circunstância, devemos pensarsentir que ça glisse sur la cuirasse de mon indiférence... Mas este passo de O Mundo à Minha Procura - que, neste particular, até me apetece, com alguma ironia, traduzir para francês como Ce Monde qui me Cherche - evoca em mim impressões mais ou menos vagas ou constantes da atmosfera grupocêntrica da sociedade portuguesa, composta de clubes ou partidos que gostam de se reunir no seu modo próprio, pensando sensivelmente da mesma maneira, repudiando por princípio o outro, olhando para a diferença com superioridade, desconfiança ou receio. Já reparaste, Princesa, que em vários sectores da nossa sociedade aparecem sempre os mesmos a perorar e sustentar-se? Nesse sentido, somos profundamente provincianos. E creio que, precisamente porque nos encerramos em ortodoxias e correções, não nos autodesenvolvemos. Vamos "lá fora" buscar ideias e vocabulário, nem sempre reparando em muitos erros de tradução. Deixa-me transcrever para ti um parágrafo de Uma Pérola para Fradique, texto inserto em Os Degraus do Parnaso do M. S. Lourenço: Eça de Queiroz convence ao desenhar um verdadeiro cosmopolita na figura de Fradique. Nós sabemos que este é o cosmopolitismo verdadeiro em virtude da perceção de Portugal que ele torna possível, uma perceção dura mas que sugere também um programa de regeneração: Portugal é na verdade um país traduzido do francês para calão. A descoberta cosmopolita de Fradique, de que os portugueses só utilizam uma variante reles da sua própria língua, contém no entanto em si a possibilidade de os mesmos portugueses deixarem de falar, de pensar e de sentir em calão.
Escrever-te esta carta, Princesa de mim, foi um exercício de alívio do incómodo físico em que me encontro. Bem hajas!
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira