CRÓNICA DA CULTURA
Da inevitabilidade
Olhei para os bancos da cozinha todos juntinhos debaixo da mesa que os acolhia num abraço de sossego. Cada um estava pintado da sua cor: azul, verde, vermelho, rosa forte, amarelo-canário e branco. Nos topos da mesa as cadeiras dos pais e ao lado direito destas as dos avós. Aquela imagem surgia-me como a de um mundo melhor, um mundo no qual os espantos se trocavam à hora de almoço e se sufruíam em simultâneo no auge da vida fosse qual fosse a idade. Constatavam os mais velhos e diziam-no, que haveria sempre um quase morto que agradecia a Deus a criação da vida naquele momento, e nós, em franca alegria trocávamos as terrinas da sopa e as travessas da apetitosa comida da Julieta, e, atrevidos, olhando-nos uns para ou outros, lançávamos no ar naquele dia.
Então mas o quase morto não poderá antes dizer qualquer coisa do querer ir e do modo de ir ou da vontade de ficar? Não tem alternativa?
E continuávamos a falar inconscientes da pergunta. Também o éramos em relação ao tornarmo-nos adultos. Para nós, os dos bancos, a zona estimulante, propicia, romântica e realista era o facto de cada um de nós ter um banco com sua cor. Era o mesmo que nos sabermos pertencidos a algo pelo medo da possibilidade de se perder esse algo: o banco e a cor.
Naquele dia, que tão bem vejo daqui, a Maria levantou a lousa onde escrevera a giz azul.
Quem daqui sabe escrever sobre coisa nenhuma?
Respondeu o Zé, o mais velho de nós todos
Vocês sabem o que é a inevitabilidade? De certeza que não. Eu também não sei, escutei ontem a palavra ao tio Jorge, mas vou dissertar no meu caderno sobre ela e isso é escrever sobre coisa nenhuma.
Grita a Luísa
Olha, olha, isso é que não é, isso é porque és parvo e não sabes das coisas
A Alice, olhando para a mãe acrescentou
Mas eu não sei nadar e ontem, na praia, furei ondas e posso sim, escrever sobre o como é estar ali. E não sou parva.
Troquem de bancos!, disse a avó, a mais ríspida das duas que amávamos. Tenham juízo, não se insultem se fazem o favor!
Ó avó, hoje não, isto estava tão giro, lamuriou o Pedro. Pronto, inevitabilidade é como o que acontece às rodas das bicicletas quando pisam um prego e pronto, temos logo um furo. Mas mudar de bancos é o mesmo que aprender aos saltos sem proteínas e oxigénio. Ó avó, eu até leio Sócrates de novo, mas nestas férias prometeram-nos que cada um estaria no seu banco, sempre.
Não percebemos nem bem nem mal o que disse o Pedro, mas era o único que ia entrar para a universidade, e nós aspirávamos ao domínio do banco de cada um.
Dali, do ângulo onde estava, voltei a ver e a ouvir tudo muito nítido. Tão nítido que até parecia que por mim não tinha passado uma visão do mundo. Não tinham passado 40 ou 50 anos. Que os bancos não tinham desbotado na sua cor e que a inevitabilidade não me tinha feito perder o Pedro e a Alice, isto só para referir os por entre nós, os dos bancos.
Sentei-me a um canto da cozinha e procurei-me num caminho difícil mas possível para a liberdade. Um caminho que passa por muitos embaraços e revoluções de sofrimento e de sinceros esclarecimentos; um caminho que nos recorda que nenhuma palavra foi nossa em relação ao nosso nascimento e que face à inevitabilidade, devemos poder reivindicar autonomias de humanidade essencial que constatem o quanto a cor do banco de cozinha, fora uma escolha e um querer estar nela, em autonomia e dignidade, e sem perfume e luz e musica e tranquilidade não queremos ser.
A ajuda a uma hipotética reciclagem é uma devastação inumana que supostamente nos mantém vivos em coisa nenhuma. Vivos e sem bancos de cor. Vivos e sem a prodigalidade mensageira que nos diz que se pode passar a um sono ainda por vir, mas convidado certo à mesa dos bancos de cor que já então eram rumos pioneiros, danações, alquimia e elixir.
Teresa Bracinha Vieira
Março 2017