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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

Não existem dívidas Miguel. O tempo nunca desgastará aquela idade em que se não é pequeno nem grande, talvez majestosamente médios, sem propensões para romances ou peças de teatro. No entanto tudo arrebatador era, foi, em tentações que não macularam espíritos.

 

Não existiam dívidas Miguel. Nem mesmo quando os sobressaltos se avizinhavam e um de entre o nosso grupo nos acudia, ou quando a melancolia se agarrava a nós sem se explicar ao que vinha e depois ver-te, bastava, e saltávamos à corda a um ritmo de almas gémeas afinadas.

 

Não existiam dívidas Miguel. Por muito que não conseguisse imaginar nenhuma tempestade tão paralisante quanto a tua ausência na sala de aula. Sabia que te tinham colocado de castigo atrás de uma porta do fundo corredor da escola, e eu logo esquecia a tabuada toda. Titubeava que três vezes cinco era onde estava o Miguel e lá ia eu, muito ufana de merecer o castigo, e de ele me proporcionar a tua companhia e a do meu querido irmão que também já lá estava há mais tempo do que tu, e eu, sem saber, tinha cantarolado de manhã uma tabuada certa.

 

Não existiam dívidas Miguel. Ou antes o que existiu foi a ausência de se prender o indivíduo que nos recitava rimas que na verdade não rimavam, sendo essa atitude cruel. Era o professor de português que se permitia de quando em vez uma soneca enquanto nos deixava a pensar na razão das palmatórias tanto se afeiçoarem às nossas mãos.

 

Pela parte que me tocava, aquela régua a estalar-me na mão era o diabo à solta, mas enfim, eu tinha feito por isso para poder ir para perto de ti e do meu irmão. Enfrentava o diabo com tolerância, como por vezes hoje aceito má poesia escrita por bons poetas. Depois enquanto ali estávamos os três de castigo de cabeça para o canto da parede, íamos juntando mentalmente os tostões de todos para sabermos se dava para um furo na caixa dos chocolates Regina que faríamos depois do castigo terminar.

 

Sempre um de nós tinha mais uns cinco tostões do que o outro, mas o chocolate que saísse em brinde pela cor da bolinha que se aguardava por detrás do plástico da caixa e que traduzia o que nos tocava em sorte, era sempre dividido por igual, tranquilamente, na hora do recreio. Tentávamos mesmo compensar o meu irmão pelo tempo extra que estivera de castigo, dando-lhe mais chocolate do que a proporção dos tostões que dera.

 

Com muito afinco gabávamos sempre excelsamente o sabor do chocolate ou ele não nos tivesse aguardado até depois do castigo.

 

Não existiam dívidas Miguel.

 

Não existem dívidas.

 

Todos os caminhos vão dar a Roma quando o amor é o que faz girar o mundo.

 

Todos os caminhos vão dar à rima do professor das sonecas, ou não soubéssemos hoje que contra essa rima, deve ser interpretada uma grande parte da nossa vida.

 

Teresa Bracinha Vieira

Embora As Asas

 

Sim, haverá uma colmeia

E nela eu

Abelha

Na minha meia-noite

Numa plenitude de asas

Vou erguer-me

E vou

Parto da noite para o dia

Galgo o mel

E logo vejo

À beira do céu

A estrela azul

Ló onde

O tempo afinal

Entregue ao descanso

Das pedras tecidas com fio de seda e aço.

 

Não, não fui capaz de ser a ave branca

Aquela que flutua na espuma do mar

Meteoro de abelha enfim

Cera de vela

Apenas

Esperança, desejo ou medo

Tudo carmesim enquanto morre

Talvez

Mas sempre as crinas, os tumultuosos cascos

E os deuses, esses atentos e intemporais que somente eles

Não fecham os olhos 

 

Teresa Bracinha Vieira