Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
1. Na província não neva (o poeta é um fingidor) e, mesmo que nevasse, nunca passei um Natal na província. Também nunca passei um Natal na neve ou com neve. Confesso que tenho alguma inveja. Um Natal, como esse da Judy Garland em "Meet Me in St. Louis", com muitos bonecos de neve e a dita a bater leve, levemente. "Have yourself a merry little Christmas". Também a mim, o Natal, em províncias technicoloridas e lares aconchegados, me faz sonhar saudades. Mas não se pode ter tudo. Sobretudo não se deve ser mal agradecido. Os meus natais lisboetas e sintrenses já dão pano para mangas, atravessando quatro - ou cinco - gerações felizes, ou imaginariamente felizes, em noites de tantíssimos anos, de tanta gente que já dos meus olhos se apartou ou que os aos meus olhos começa a aportar. Quantos foram? Horror, a lembrança das datas? Horror não é palavra que rime com os meus Natais nem com as minhas lembranças. Dos antiquíssimos que recordo, era eu dos mais crianças, aos recentíssimos, sou eu dos mais velhos, a sucessão é boazissimamente boa e o Natal fica-me bem como bem eu me fico nele. Por isso, não esperem de mim conversas de maldição à sociedade de consumo, de raiva à paganização, de mentira às famílias, conversas "desmistificadoras". Natal de manhãzinha ou de noite dentro, de rabanadas e de perus, de missas do galo e de presépios, de sapatinhos ou de chaminés, de tudo conheci e de todos vivi. E não os troco por nada.
2. Ao princípio (estou a falar dos anos 40 e muito poucos picos) a véspera do Natal era só isso: a véspera do Natal, a ansiosa espera pelo dia seguinte. O Menino Jesus ia nascer à meia-noite, quando eu estivesse a dormir, e ia descer dos céus "pela abaixo chaminé", para me deixar no sapatinho todos os presentes que eu desejava ter. Os crescidos não me deixavam entrar nas salas em que se sussurravam segredos e mistérios. Depois de jantar, antes de me deitar, dois rituais fatalmente sucedâneos, deixavam-me finalmente entrar na sala grande para depor junto à lareira o famoso sapato. Crianças dormem como anjos? Nessa noite, não era bem assim. Acordava muitas vezes, à espera de ouvir, lá longe, os passos do Menino carregadinho de prendas. Às vezes, ia jurar que o ouvia. Mas tinham-me catequizado devidamente. Não sei se a tia que me contou todos os contos já me tinha contado o do Barba Azul. Sei é que, na minha memória ou na minha imaginação, o que me aconteceria, se acaso ousasse levantar-me e ir lá ver, era o mesmo que aconteceu às mulheres do Barba Azul quando entraram no quarto proibido. Não só ficaria manchado para sempre, como os presentes que o Menino trouxe - ou havia de trazer - o Menino os levaria e eu ficava culpado e solteiro. Por isso, nunca ousei. O pior era quando o dia começava a clarear. Pela única vez no ano, as horas mais doces do meu sono tornavam-se as mais agitadas. Inabalável era a minha fé que os presentes já lá estavam, mas nenhum passo precoce me era consentido. Restava-me esperar horas infindas pelo acordar dos pais. Finalmente, entravam-me pelo quarto e juntávamo-nos os quatro (o quinto dos irmãos só nasceu anos depois) no corredor, à espera do "já podem" mais apetecido de sempre. Em cima de cada sapato, a pilha de presentes. Só com os meus filhos e com os meus netos, aprendi retrospetivamente quão estremecente eu ficava, antes de me precipitar a rasgar papéis e a abrir caixas. Incrivelmente, milagrosamente, o que eu tinha pedido cumpria-se. "Se algum dia pedires, com verdadeira fé, à montanha que se mova, a montanha mover-se-á." É a imagem mais aproximável que consigo dar para a sensação que tinha. Também me tinham dito que, se tivesse asneado muito, no Natal só receberia carvão. Mas o Menino era Todo Misericordioso, embora não Todo Distraído. Entre as prendas ubérrimas havia um carvãozinho. Ele lá sabia e eu também sabia. Mas aquilo ficava entre nós e em nada atenuava a desmedida alegria. Depois, ia ver os presentes dos outros, depois o dia passava a correr no gozo de prazeres novos. À noite, chegavam os tios e os primos para um jantar de 16 pessoas, 12 na mesa grande e os quatro miúdos numa mesa pequena. Até hoje, o menu não mudou: canja, folhados de camarão com salada russa e salada de agriões, o peru (com o recheio, o molho, os rabanetes, as batatas fritas aos palitos), depois, à sobremesa, as rabanadas, os sonhos, a "mousse" de chocolate, o ananás. Um jantar de horas à mesa, servido por duas criadas impecavelmente fardadas, de crista e luvas brancas. Só no dia 26, a vida de cada dia retomava o seu dia, até um jantar de idêntica ementa, idênticas presenças e idêntica euforia no Dia de Ano Novo. Só mudava o "décor". Em vez da nossa casa, a casa dos meus únicos tios que eram casal, ali na Rodrigues Sampaio. Mas não havia risco que qualquer de nós (adultos ou crianças) disséssemos ou pensássemos o que um neto meu disse há uns anos, quando falou da casa daquela tia em que o jantar é sempre a mesma coisa. Além de uma educação mais severa, o peru, nesses anos, era exclusivo do Natal e do Ano Bom. Dias antes do Natal, chegavam vivos e de boa saúde, oferta dos alguéns que deviam favores. Depois, em sótãos onde não nos deixavam entrar, a cozinheira embebedava-os com aguardente, antes de lhes cortar as goelas e calar os últimos berros desesperados. Outro sinal dos tempos: antes de jantar, telefonava, de Portimão onde vivia, o irmão mais novo do meu pai, que só nesses dois dias telefonava, não por alheamento da família (que, para ele, era a única verdade), mas porque um telefonema de tão longa distância era manifestação perdulária, só admissível em datas especiais. Precipitávamo-nos todos para o auscultador, um minuto, um minuto apenas, que as chamadas eram caríssimas.
3. Até que chegou o dia fatal, tinha eu oito anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Um colega explicou-me, a um canto do recreio, que não havia Menino Jesus nenhum e que os dadores não eram divinos mas os meus humaníssimos pais. Recusei-me a acreditar, mas a dúvida já cá estava. Chegado a casa, perguntei à mãe se era verdade. Confessou-mo. "Então os pais também mentem?" Ela explicou-me a diferença entre mentira e imaginação e como as coisas bonitas se podem sobrepor às verdades nuas. No futuro, interpretei-a muito latamente, mas disso não teve ela culpa ou se a teve foi uma "felix culpa". Não fiquei com os traumas que pedagogos perversos atribuem a revelações dessas. Só que no ano seguinte achei menos graça ao Natal e dormi melhor nessa noite. Quando chegou a minha altura de ser pai - e já se discutia seriamente entre "casais modernos", se se devia ou não contar isso do Menino Jesus às crianças - não hesitei na atitude a tomar. Talvez seja por isso que os meus filhos se maravilharam com o Natal tanto quanto eu me maravilhei e todos eles tenham contado a mesma história aos filhos deles, terceira geração maravilhada da família. Só acabou - e eu não me consolo - o Menino Jesus e os sapatinhos, que apenas sobreviveram até ao tempo dos meus filhos. Para os meus netos, já foi sempre o Pai Natal. E como até um reacionário como eu se tem que adaptar aos tempos que correm, eu próprio me converti no Pai Natal, mascarando-me dele na noite do dito, para, enquanto todos esperam no corredor, e as luzes se apagam, bater muito com os pés no chão, soltar alguns uivos medonhos e fugir precipitadamente, mas não tanto que alguns não jurem que viram o velho encarnado, tão real e perfeitamente como está nas renas. Também mudou o ritual dos dias e das noites. Crianças, agora, não vão para a cama a seguir ao jantar, à espera do dia seguinte, como eu, os meus irmãos, os meus filhos ou os meus sobrinhos. Ficam à espera da meia-noite. A hora do milagre é agora noturna e não diurna. Tem, aliás, desde que me casei, um extra que não fazia parte da minha educação, mas que incorporei, já que tradições as incorporo todas e quantas mais melhor. Como a família da minha mulher (pelo lado do pai dela) vem mesmo da província e dos lares aconchegados da Vila da Feira de outrora, a festa, no caso dela e na casa dela, era a noite de 24, ao jantar, com o caldo verde, o bacalhau e mil variedades de sobremesas (ovos mexidos e bilharacos). Igualmente passou a acontecer, desde que troquei Lisboa por Sintra, nos idos dos anos 50. Qual é a sucessão? Jantar de consoada; distribuição dos presentes (já não entre 20 mas entre 40) com as crianças interditas de entrar na sala e uma confusão dos diabos (crescidos e multiplicados, sucedem-se as chegadas de pessoas-sacos de presentes, a distribuir em montões por cuja ordem zelo eu); escuridão à meia-noite para a minha metamorfose em Pai Natal; reacender das luzes para a entrada da turba em êxtases renascidos; depois, a ceia (que já vem dos meus 12-13 anos) com os "palitos de la reine", a "tête d'achard" (receita arcana da minha mãe), as rabanadas, o chocolate com natas, os presuntos, os queijos, o bolo-rei. Depois, as crianças caem de exaustão e de orgasmos, e os crescidos ficam nos copos até às tantas. Invariavelmente, desde os anos 60, o cenário é a minha casa, variavelmente, no jantar do dia 25 e dos perus de plástico, em casa de um dos meus irmãos (este ano, pela primeira vez, uma sobrinha minha será anfitriã). O camarão dos folhados também não é o camarão vindo do mar dos meus verdes anos; a salada russa é comprada feita; e qualquer semelhança entre as batatas fritas de agora e as de antanho é pura coincidência. Desapareceram as cozinheiras, desapareceram as criadas, as travessas estão em cima da mesa e cada um trata de si e Deus de todos. Mas o dia 25 é um epílogo, não um cerne. Um recanto, não um canto. O canto e o cerne continuam a ser na véspera, na noite em que é Natal e vamos a Belém adorar o Menino que a Senhora tem. E o melhor do mundo são as crianças. A acreditar que tudo é possível, sendo que até hoje - graças a Deus! - tudo foi e é mesmo possível. Diante de mim, seja em que recanto for, ninguém amaldiçoará o Natal. Do Menino, e desde menino, da Baby Born, às "asas a sério para a Vera voar" (carta da Vera para o Pai Natal) sou fanático.
por João Bénard da Costa 24 de dezembro 2004 in Público
Após dias dramáticos de severo alerta terrorista e ainda a processar o massacre dos inocentes em Manchester perpretrado por um jihadista, o reino carry on. Um jovem Brit, de 22 anos, fruto de refugiados do regime líbio de Gadaffi generosamente cá
acolhidos e dado ao consumo de drogas, ruma para o delírio das ‘70 virgens’ enquanto assassina adolescentes e crianças que sorriem no final de um concerto pop na Arena. Entre as vítimas deste “evil loser”, como o reputa o President Donald J Trump, está a pequena Sophie de 8 anos. — Chérie. Qui sème le vent, récolte la tempête. A campanha eleitoral pára por momentos. A apresentação dos manifestos partidários revela a deslocação à esquerda. O Corbynism ganha tração com um líder em Father Christmas mood e radical programa de re-nacionalizações, vasto investimento público e altos salários. — Shocking days, indeed. O French President Emmanuel Macron viaja a Berlin e Moscow para a enésima jura de reforma continental. O POUS faz um périplo ao Middle East e Europe, com paragem em Jerusalem e no Vatican, discursando sobre o Islam e a contabilidade da NATO. A Bundeskanzelrin Frau Angela Merkel anuncia o fim da aliança ocidental e conclui que Europe “must take destiny in its hands.”
Dark days in the Realm. O ambiente em volta é de alta tensão, entre o choque e a fúria face à matança dos inocentes. O alerta da segurança nacional sobe de crítico a severo, regressando à atual categoria de existir forte probabilidade mas não estar eminente um novo atentado terrorista. Forças especiais capturam uma dúzia de jihadistas em várias paragens, à mistura com detonações controladas em catedrais, casas e centros comerciais. Soldados e polícias protegem áreas sensíveis. Mal refeitos da cadeia de acontecimentos, com um tigre à solta num zoológico de Cambridgeshire e o caos informático a suspender os voos da British Airways em Heathrow e Gatwick, a honorável Press revela a presença de 23,000 extremistas islâmicos na watch list. O número do terror assusta e o clamor popular pede medidas. Afinal, a rede de controlo 24 h+7x7 é perfurada em Manchester, berço do jihadista e geografia aparentemente inclinada a produzir extremistas entre os assíduos da Mosque sem que haja mão nos hate preachers. As ondas de choque face ao Homegrown Jihadism e ao ataque de May 22th continuam a evoluir. O reino reage com as velas e as vigílias, mas há mais. Na internet, de rosto tapado e familiar sotaque, o Isis faz ameaças de morte aos filhos do infidel. Nas ruas questiona-se o… até quando?
Já hoje à noite sopra vento de normalidade. A Sky News apresenta o grande debate político das #2017 General Elections. Em estúdio, red-looking, estão Mrs Theresa May e Mr Jeremy Corbyn. É a Battle for Number 10. A segurança é um entre vários temas quentes abordadas num TV show formatado a dois tempos: um após outro, os líderes do Labour e do Conservative Party respondem a questões da audiência (em modalidade Townhall) para depois se submeterem a entrevista com o (not so) temível Mr Jeremy Paxman. Ambos vão bem no geral, mas chegam aqui a diferentes velocidades. Os Tories estão em queda nas sondagens, com a vantagem inicial a cair dos 20% para os 5-8%, após lançarem um manifesto incluindo exigente reforma na segurança social, no meio de cortes nos benefícios e apelos à responsabilidade individual. Os contornos da proposta central são tais que, logo etiquetada pelas oposições de “dementia tax,“ a reação do espetador imparcial é de perplexidade: What are they thinking! Se os Red Tories ousam ir longe de mais na distribuição das libras orçamentais, já o Populist JC Labour tem vento pela popa à custa de querer taxar os ricos. RH Jezza promete agir “for the many, not the few.” Nacionalizará combóios, telecomunicações, correios, água e eletricidade ― mas não bancos. Aonde vai buscar o dinheiro para pagar a fatura? Aos impostos e ao crédito internacional, que o paraíso chaveznista não teme as dívidas soberanas. Só as simpatias de Mr Corbyn &co para com os movimentos revolucionários armados causam inquietação, entre o apoio ao IRA ou a amizade com o Hamas. Faltam 10 dias para a 2 horses race e 21 para o início das negociações da Brexit.
Estes são também dias da partida de Mr Roger Moore, o suave “James Bond” que se aventurou em Portugal. É ainda tempo para um dos meus eventos favoritos na capital: o Chelsea Flower Show. A mostra é sempre uma inspiração para quantos amam o English Garden. Na abertura por lá passam HM Queen Elizabeth II ou Dame Judy Dench. A recreação natural corresponde às expetativas do mais rigoroso dos jardineiros locais. E os Iris Louvois nos London living displays da Royal Horticultural Society apresentam-se gloriosamente surpreendentes em nova coloração. Para a semana, de 7 a 11 June, é a vez do RHS Chatsworth Flower Show em Derbyshire e da tradicional visita à glasshouse com que Mr Joseph Paxton MP em 1836 induz a traça dos Crystal Palaces no meridiano atlântico. — Well. Keep in mind those floral wording of Master Will in A Midsummer Night's Dream: — “I know a bank where the wild thyme blows, / Where oxlips and the nodding violet grows, / Quite over-canopied with luscious woodbine, / With sweet musk-roses and with eglantine: / There sleeps Titania sometime of the night, / Lull'd in these flowers with dances and delight.."
«José de Almada Negreiros – Uma Maneira de Ser Moderno», o catálogo da exposição comissariada por Mariana Pinto dos Santos e Ana Vasconcelos (Gulbenkian, 2017) constitui um repositório fundamental para a compreensão do modernismo português e do lugar que nele desempenhou o autor de «Invenção do Dia Claro» ao lado de Fernando Pessoa e da geração de Orpheu.
PERSONALIDADE MULTIFACETADA José de Almada Negreiros é uma personalidade complexa e multifacetada que não pode ser compreendida nem através de interpretações conjunturais nem de simplificações anacrónicas. A sua vida e o seu tempo foram plenos de contradições que devem ser encarados com uma prudente distância que permita usar o rigor da análise e o entendimento relativo dos compromissos. A história portuguesa do início do século XX foi demasiado carregada de fatores paradoxais, correspondentes a uma tensão evidente entre a situação de um país periférico e as aspirações de um escol urbano que estava em contacto com a evolução da Europa culta. E não podemos esquecer que também nesse campo aberto ao exterior havia o confronto entre aqueles que assumiam uma perspetiva aberta e cosmopolita e os que, em consonância com a hipervalorização dos nacionalismos, punham a tónica na lógica identitária… Antero de Quental e a sua geração, na sequência dos grandes românticos, como Garrett e Herculano, já prenunciara, na célebre conferência sobre as Causas da Decadência, profeticamente, a necessidade de haver um sobreaviso relativamente às simplificações cosmopolitas e identitárias. Muito do debate do bom senso e do bom gosto está nas conferências de Almada Negreiros e na escolha de um símbolo, Dantas, como noutro tempo fora escolhido Castilho. E a verdade é que a geração de «Orpheu» representa uma encruzilhada onde, naturalmente, encontramos todas as contradições, que conduzem tantas vezes à desvalorização ou à hipervalorização do significado criador desses artistas.
O ÚNICO AUTÊNTICO MODERNISTA Eduardo Lourenço fala de Almada como o “único autêntico modernista em sentido estrito de sintonizado com o vanguardismo (ou sucessivos vanguardismos) da época”. E sobre Fernando Pessoa, salienta, ao invés do delírio, a “consciência das insolúveis contradições do mundo moderno e da mesma modernidade, porventura até, rejeição do seu próprio espírito”… (Cf. O Labirinto da Saudade). Se virmos o percurso de Almada compreendemos que esse gosto absoluto da novidade o leva a crer, menos na lógica dos sistemas, e mais na força da criação. Nesse sentido, quis ser ele mesmo, permanentemente interrogante, ávido da busca. “Os sistemas e os programas servem para conduzir e jamais para criar”. Quem, por isso, suscita a hipótese de se estar perante um artista do regime, deve dizer-se que, para além do seu pensamento político, não deve esquecer-se a ideia de autonomia da arte que defendeu e que Gustavo Rubim refere a propósito de um texto importante publicado nos cadernos “SW - Sudoeste” (nº2, 1935): “A Arte não pode viver antes de criar a sua própria autoridade de autonomia dentro da coletividade”. Contudo o artista é o primeiro a reconhecer que essa capacidade criadora tem “dias melhores e outros piores”. Em 1945, com Fernando Amado no Centro Nacional de Cultura insiste, aliás, nessa ideia de autonomia do artista na sociedade. Eis por que razão há sempre uma luta na capacidade criadora – e essa luta obriga a uma exigente demanda. Dêem-se dois exemplos: o dos painéis da Gare da Rocha do Conde de Óbidos (1945-48) e o da obra “Começar” na Fundação Calouste Gulbenkian (1968-69). Estamos perante duas abordagens bem diferentes, mas que representam facetas complementares da mesma atitude. Hoje sorrimos perante o relato das pressões exercidas por aqueles que consideraram esses painéis perigosos, não só pela eventual influência de Portinari, mas também pelos temas dos saltimbancos e da emigração, supostamente inconvenientes para receber visitantes estrangeiros. E foi a intervenção de João Couto, diretor do Museu de Arte Antiga, que poderá ter evitado (quem sabe?) a destruição dos painéis. A verdade, porém, é que estamos diante de obras-primas da pintura portuguesa de sempre, que Almada considerou como as mais próximas da sua própria capacidade criadora, “pinturas da nossa solidão”, onde o sentido criador assume plenamente a autonomia da Arte que o artista defendia. Se o cubismo se faz sentir inequivocamente, há também a procura de alternativas no domínio do espaço pela geometria. Na composição “Começar” temos uma verdadeira síntese de vida e de incessante pesquisa, dando continuidade à tapeçaria “O Número” executada para o Tribunal de Contas (1958). Há uma procura do cânone geométrico e simbólico, que “não está exclusivamente nos exemplos da Idade Média, não está só nos exemplos da Suméria, não está só nos de Creta, Gregos, Bizantinos, Árabes, Hebraicos, Romanos ou Góticos. Ele está sempre e é por isso mesmo que ele é cânone. E cada época tira do cânone as suas regras…”. A obra é impressionante e pretende demonstrar que “a arte precede a ciência, a perfeição precede a exatidão”. Afinal, “a perfeição contém e corrige a exatidão”. E, como salienta Mariana Pinto dos Santos: “Em Almada a abstração matemática e geométrica não é um fim em si mesmo, mas sim meio para encontrar uma linguagem comum, sem pátria, intemporal e imemorial da comunicação visual, raiz de toda a representação”. Na busca do cânone não há recusa de representação. A abstração corresponde, assim, a uma fase superior da reflexão.
UMA PAIXÃO TEATRAL A paixão de Almada pelo teatro, referida por Ana Vasconcelos, invoca ainda a preocupação do encenador, designadamente quando dispõe as figuras nos painéis, como o da Rocha do Conde de Óbidos. É a sociedade heterogénea, multifacetada e inconformista que se manifesta. Essa paixão teatral recorda as suas peças, “Antes de Começar” (1919), “Deseja-se Mulher” (1928) e “Pierrot e Arlequim” (1931), bem como a amizade muito próxima e quase familiar com Fernando Amado, com especial destaque para os tempos do Centro Nacional de Cultura e da criação da Casa da Comédia. É significativo o “Diálogo entre Almada Negreiros e Fernando Amado” de 1946 (“Cidade Nova, nºs 5 e 6, 1950). Por seu lado, os sessenta e quatro desenhos de “O Naufrágio da Ínsua” (1934) mostram-nos um verdadeiro ensaio entre a banda desenhada e os desenhos animados – onde o humor e a ironia revelam a “linha clara” do caricaturista exímio que ilustra a ligação entre o cinema e a ilustração narrativa. José-Augusto França fez a síntese adequada sobre o artista: “Almada situa-se na história da arte portuguesa contemporânea como uma figura única, no seu valor estético tanto quanto no valor referencial da sua mensagem poética”. Se em 1993, por ocasião do centenário não foi possível realizar a grande exposição retrospetiva, o certo é que agora temos um repositório de inequívoca qualidade. A expressão “português sem mestre” caracteriza plenamente o artista completo que procurou abrir caminhos novos – “chegar a cada instante pela primeira vez” – com originalidade e um sentido próprio de praticar diferentes artes com subtil mestria, tendo na galáxia dos modernismos não um lugar de escola, mas uma posição de múltiplos caminhos e influências…
Há poucas semanas, fui surpreendido pela reação de uma assistente de caixa da FNAC. Comprara um livro, ela perguntou-me se eu tinha cartão FNAC, ao puxar por este arrastei um da Bertrand que lhe caiu em frente. Diz, com maus modos: "Isto não é cartão FNAC, é da Bâârtrende!" Pedi desculpa, explicando que caíra por vir colado ao outro, que logo apresentei. E, com um sorriso, perguntei: "Porque é que diz Bâârtrende, à inglesa, um nome de origem francesa, que em francês se diz Berrtrrãnd e nós por cá vamos pronunciando Bertrã?" Resposta gritada: "Eu digo como quiser, você não tem nada a ver com isso!" Paciente reação minha: "Olhe que nenhum de nós pode dizer as palavras como quer, temos de dizê-las para serem entendidas..." Seguiu-se um disparate de berros, com afirmações tão substanciais como "Nem ao meu marido eu admito que me corrija, ouviu?"
Esqueci o episódio, nem pedi livro de reclamações. Mas fui moendo o sentido da ignorância teimosa, pensando quão facilmente se ouve, hoje em dia, dizer, repetir, reproduzir, divulgar os mais diversos disparates, sem qualquer motivação de instrução, verificação, correção ou simples procura de entendimento. "Aí vai disto Eu é que sei!" parece ser o grito cultural na moda... Há poucos dias, três conhecidas e reconhecidas personalidades televisivas batiam o papo acerca de cinema:
"Lembram-se desse grande filme, Casablanca, com o Humphrey Bogart e aquela estrela maravilhosa..." E todos em uníssono: "A Lóren Beiquel!", assim mal pronunciando o nome da Lauren Bacall, ainda por cima mal dado à parceira do Bogart naquela fita, que era, simplesmente, a Ingrid Bergman. Pouco depois - estava num dos raríssimos dias em que vejo alguma televisão - reparo que uma legenda em português traduzia hand writing por ortografia... E por aí fora, até aos sisudos e "responsáveis" jornais económicos que vão traduzindo ingenuity (= engenho, coisa de génio) por ingenuidade.Et j´en passe, para não ter de te falar da ignorância propriamente dita, seja qual for a língua utilizada para a transmitir.
Vêm-me estas rabugices de velho relho, por ter lido na cama, na passada noite, um artigo de José Pacheco Pereira, no Público de 3-4-2017, intitulado Nó Górdio, e outro do professor Tom Nichols, na revista Foreign Affairs (Março-Abril-2017) com o longo título de How America Lost Faith in Expertise - And Why That´s a Giant Problem. Consolou-me sentir que, afinal, encontro vária e pensante companhia para as minhas - tuas tão conhecidas -- cogitações sobre cultura, comunicação, confiança, memória, rigor e humildade (ou a falta crescente e esquecimento de tudo isso) nas nossas sociedades hodiernas. Não vou remeter-te para cartas minhas, nem mesmo transcrever-te textos delas. Fico-me pelos autores que me acompanham a solidão nestes meus achaques quotidianos de algum desgosto pela multiplicação das asneiras, sem que lhes acuda espírito crítico nem capaz preocupação com o sentido do que se vai atirando por aí...
Pacheco Pereira encabeça o seu artigo pela afirmação de que o problema atual da ignorância é que ela nunca teve tão boa imprensa, tão bons defensores. E prossegue: Dedicado à memória de José Medeiros Ferreira, que uma vez, numa entrevista, falou do "nó górdio" a uma jornalista que lhe disse que não sabia o que era e recebeu como resposta: "Se não sabe, devia saber". E, mais adiante, diagnostica: Não nos devemos iludir quanto ao valor que a escola, a universidade, a sociedade, a comunicação, - já para não falar das chamadas "redes sociais" - e a política dá hoje às humanidades e estudos clássicos. Esse valor é quase nulo. Pelo contrário, é entendido como um conhecimento inútil, que justifica o corte de financiamentos, a colocação no último lugar da fila, quando não da extinção curricular, das disciplinas do Latim e do Grego, que conseguem ficar atrás da filosofia. Por mim - como já repetidamente fui escrevendo, inclusive em cartas para ti - acredito que o saber não ocupa lugar, sobretudo se considerarmos que ele não é essencialmente erudição mas a sementeira que produz as raízes do nosso espírito, donde brotarão ramos de conhecimento, e, antes deles, o tronco que é a faculdade de ajuizar, algo muito marcado pela cultura que nos deram, isto é pelo nosso modo de laborar a inteligência. Em vez de terra lavrada, adubada e semeada, a nossa cabeça é cada vez mais um oco vaso de vidro onde todos os dias se põem flores colhidas em "sites" que por aí abundam, sem origem nem rega conhecidas. Quando murcham, por aí se apanham outras... O que quero dizer é que a "cultura" não é mais do que o cultivo que cada um de nós faz do seu espírito.
O artigo do professor Nichols, Princesa de mim, traz-me outras preocupações que, afinal, me reconduzem à efeméride com que te abria esta carta, tornando o simplesmente ridículo ou despiciendo em algo talvez considerável. Começa assim (traduzo): Em 2014, depois da invasão russa da Crimeia, o Washington Post publicou os resultados de uma sondagem que perguntava aos americanos se os Estados Unidos deveriam intervir militarmente na Ucrânia. Só um em seis inquiridos conseguiu localizar a Ucrânia num mapa; a média das respostas errava por mais ou menos 2500 quilómetros. Mas esta falta de conhecimento não impediu as pessoas de expressarem pontos de vista. Na verdade, os respondentes favoreciam a intervenção na proporção direta da sua ignorância. Dito de outro modo, as pessoas que pensavam que a Ucrânia estava situada na América Latina ou na Austrália foram as mais entusiastas a favor do uso, lá, de força militar.
No ano seguinte, o Public Policy Polling perguntou a uma ampla amostragem de eleitores democratas e republicanos se apoiariam o bombardeamento de Agrabah. Cerca de um terço dos republicanos respondeu que sim, contra 13% que se opunham à ideia. As preferências democratas foram "grosso modo" inversas: 36% opunham-se, 19% eram a favor. Agrabah não existe. É um país de ficção no filme de 1992, da Disney, Aladino. Os liberais berraram que a sondagem revelara as tendências agressivas dos republicanos. Os conservadores retorquiram que ela mostrara o reflexo pacifista dos democratas. Peritos em segurança nacional não deixaram de observar que 45% dos republicanos e 55% dos democratas interrogados tinham uma visão real e definida do bombardeamento de um lugar num desenho animado.
Cada vez mais, incidentes como este são mais norma do que exceção. Não é só porque as pessoas não sabem muito de ciência, política ou geografia. Claro que não sabem, mas esse problema tem barbas. Maior problema, hoje em dia, é que os americanos chegaram a um ponto em que a ignorância - pelo menos no tocante ao que geralmente se considera saber adquirido em matéria de coisa pública - é considerada realmente uma virtude. Rejeitar o parecer de peritos é afirmar autonomia, caminho para os americanos demonstrarem a sua independência de nefastas elites - e isolarem os seus crescentemente frágeis "egos" de qualquer possibilidade de lhes dizerem que estão enganados.
Tal triunfo da ignorância não é só atributo dos americanos em geral ou da senhora da FNAC em particular. Pior ainda, em Portugal, por exemplo, é o "reino" das capelinhas que se presumem muito sábias e, como os gatos, vão marcando o seu território profissional, "influencial" e mediático... Todos os dias desligo rádios e tv´s, fecho jornais e revistas vários, só para evitar o contacto pernicioso de uns quantos selecionados para nos falarem de tudo... O triunfo da ignorância também começa com o monopólio de uns gurus sobre os comentários destinados à opinião pública. Falam do que não sabem, muito do que pouco ou nunca viram e apenas vislumbraram noutros livros consultados à pressa, aparentemente convictos, sombriamente cautelosos em afastar possíveis intervenções de quem sabe, até escamoteando ou omitindo nomes e citações... Muitas vezes me lembro daquela cena de O Primo Basílio em que entra o Conselheiro Acácio:
- Já esteve no Alentejo, Conselheiro? - Perguntou-lhe Luísa.
- Nunca, minha senhora - e curvou-se. - Nunca! E tenho pena! Sempre desejei lá ir, porque me dizem que as suas curiosidades são de primeira ordem.
Tomou uma pitada duma caixa dourada, entre os dedos, delicadamente, e acrescentou com pompa:
- De resto, país de grande riqueza suína!
O mais triste, nisto tudo, talvez até nem seja a vaidade ridícula dos títeres da "cultura", o seu receio de menos consideração, nem sequer a respetiva "dor de cotovelo"... Nem, só por si, essa presunção de brilhar, fechando portas e janelas, apagando outras luzes... É a auto glorificação de supostas "elites" num panorama de ignorância generalizada. Porque - fixa bem, Princesa, - se vai dividindo a comunidade possível entre o que poderia ser partilha e entendimento e, afinal, é o pensarsentir-se em privilégio e superioridade... Saber é sempre ato humilde, uma aprendizagem que é escuta e diálogo. Gosto do verbo francês apprendre, pois tanto diz aprender como ensinar. E é bem verdade que ambos são partilha.
Nesta evocação de teatros dos Açores, que visitamos e referenciamos em livros sucessivos sobre o património português de arquitetura de espetáculo, referiremos hoje dois exemplos de boa arquitetura mas, sobretudo, de descentralização cultural, vinda de tempos e épocas em que deslocar uma companhia teatral ou uma orquestra para os Açores não era fácil. E o mesmo se dirá da própria projeção arquitetónica dos edifícios, alguns do século XIX, outros mais recentes: e muitos deles de qualidade indiscutível.
A cidade da Horta, no Faial, dá-nos pelo menos dois exemplos dessa qualidade e modernidade epocal e permanente.
O Teatro Faialense, na Horta, consagrou uma tradição que vem pelo menos de meados do século XIX, com a edificação, em 1856, de um entretanto desaparecido Teatro da União Faialense. Este seria demolido nos anos 10 do século passado, para edificação, no mesmo local, do Teatro Faialense.
Trata-se de um belo exemplar de arquitetura de teatro, sobretudo na estrutura, que se mantém, com camarotes que marcam, efetivamente um estilo e merecem uma conservação tantas e tantas vezes descurada… É certo que o camarote, como tal, pode dificultar a visão do palco e sobretudo do ecrã de cinema, nas salas que, a partir dos anos 20 do século XX, foram adaptadas à exploração cinematográfica, sofrendo adaptações, quando não a demolição pura e simples: não faltam exemplos.
Porém, repetimos, do ponto de visita arquitetónico, as salas e edifícios mais antigos representam um fator de indiscutível qualidade.
A primeira vez que visitei o Teatro Faialense foi num período de menor atividade da sala. No que se refere ao historial recente, Márcia Dutra informa que o Teatro funcionou até 1980, tendo sido municipalizado e reaberto em 2003, e beneficiando de obras de restauro dirigidas pelo Arquiteto José Lamas, que manteve a estrutura do edifício e da própria sala.
Mas houve uma intervenção global de restauro e modernização: tal como refere Márcia Dutra, o edifico “beneficiou de uma nova caixa de palco, um auditório e um centro de conferências” alem da renovação da infraestrutura de serviços. E mais: no teto da sala de espetáculos “exibe-se uma nova pintura contemporânea, alusiva à musica, do artista plástico açoriano Nuno da Câmara Pereira” (cfr. “Teatro Faialense” in “Portugal Património” ed. Circulo de Leitores 2006 –vol. X pág. 40).
E nesta crónica dedicada a salas de espetáculo na Horta, é oportuno referir a Sociedade Amor da Pátria, inaugurada em 1934, e que aqui já evoquei, a propósito dos teatros e cineteatros do Arquiteto Norte Júnior: destaquei a fachada dominada por elementos decorativos e heráldicos, típicos de uma época e de uma estética e que, nesse aspeto, contrasta com a ortodoxia do Teatro Faialense.
Citei então uma referência de José Sarmento de Matos, a propósito do velho Cineteatro Carlos Manuel de Sintra, hoje Centro Cultural Olga Cadaval, também segundo projeto inicial de Norte Júnior: “neste seu desenho sintrense (Norte Júnior) não levou até às ultimas consequências a conjugação do espírito imaginativo com bom gosto que deixou bem vincado no magnífico edifício afim da Sociedade Amor da Pátria na Horta, Açores” (cfr. “Teatros em Portugal-Espaços e Arquitetura” ed. CNC e Mediatexto 2008 pág. 64).
O que só por si mostra a qualidade do património da cidade da Horta, na Ilha do Faial.
Em 1965, a revista francesa Vogue, teve como capa um vestido sem mangas decorado com as cores primárias da Composição com Vermelho, Azul e Amarelo de Mondrian, concebido pelo estilista francês Yves Saint Laurent, parte integrante da Coleção Mondrian, tida como um golpe de génio. Nunca um vestido tinha feito tanto furor e fora tão copiado. Revolucionou o vestuário feminino e foi o grande lançamento e universalização da casa e marca Yves Saint Laurent.
Eis um exemplo de como o poder da visão estética de Mondrian e do neoplasticismo influenciou o mundo das artes em geral, neste caso o da moda, tida por muitos como uma arte menor, mas cada vez mais exposta nos melhores museus do mundo, o que por si só representa uma inversão da aludida menoridade em favor de uma gradual arte maior, algo impensável em tempos ainda recentes.
Na Coleção Mondrian, a exemplo do neoplasticismo, reduzem-se os elementos básicos da perceção visual à linha horizontal, à linha vertical, às cores primárias do vermelho, amarelo e azul, a zonas quadradas ou retangulares, incluindo o branco e o preto como fundo ou como corpo das linhas pintadas a negro, respetivamente, evocando planos horizontais e verticais de coordenadas e conotações simbólicas inerentes a toda a humanidade.
Yves Saint Laurent possuía no seu apartamento parisiense telas do holandês Piet Mondrian, cuja arte tinha como pura, considerando que ninguém podia ir mais longe, o que demonstra a influência que assimilou nos princípios artísticos defendidos pelo pintor.
Se para Mondrian menos é mais, pretendendo uma arte pura, depurada, esmerada, resistente, irredutível e irreduzível na sua simplicidade, também para Saint Laurent era preciso simplificar, numa moda de estilo simples, nítido e preciso, como um gesto, com linhas funcionais, limpas e simplificadas, baseadas em geometrismos e harmonias de planos de composições assimétricas, usando as cores primárias, neutralizadas pelo branco e riscas pretas, o que retratou nas suas criações, nomeadamente na Coleção Mondrian.
O vestido YSL mais famoso, foi o vestido tubinho (1965), em linha tubo, de cores primárias, de linhas pretas verticais e horizontais de vários comprimentos, achegado ao corpo, sem mangas, com comprimento até à altura do joelho, cuja estampa da parte frontal foi inspirada na pintura duma Composição com Vermelho, Amarelo e Azul, de 1921. Tido como um ícone do universo da moda e da alta costura da década de sessenta do século XX, copiado e adaptado em sucessivas variações de experimentação ao longo dos anos, foi rematado e vendido por 35 000 euros, num leilão da Christie`s, em Londres, em 01.12.2011.
YSL absorveu e inspirou-se em vários artistas para as suas criações, como Matisse, Picasso e Andy Warhol. Mas foi Mondrian quem mais o inspirou e celebrizou, inspirando outras formas artísticas que vão da decoração, brinquedos, fatos de banho, calçado, legos, borrachas, mobiliário, sacos e malas de mão, carros desportivos, ímanes para frigoríficos, iphones, até à escultura e arquitetura.
Lutando pela beleza, elegância e simplicidade, eis como ícones da alta costura estreitaram os laços entre a moda e a arte moderna, numa atualização permanente devidamente adaptada a tempos idos e aos nossos dias.
Ao que poderíamos chamar a grande arte ou a grande poesia, exigem memória precisa, clareza de interpretação e finura na concentração. O que é erudito tem sempre um faro escondido atrás da mão da alma, e só assim descortina o que existe por baixo da profundidade. Chega-me à memória um vedor que visitava com regularidade a quinta de meu pai. A mim parecia-me que ao rodarem os pauzinhos que o vedor tinha entre as mãos, escreviam eles no ar, a palavra silêncio, ou não estivéssemos perante a indicação de um pormenor da ínfima luz que se mostra claríssima, na pujança da erudição maior, tão logo a água jorrasse intérprete da primeira grandeza.
Desta água ao tecido que o poema expõe surge a voz escrita do estilo do intérprete que vai cartografando realidades alquímicas que reiteram sem dificuldade a força do que está em causa.
Inevitavelmente recordo a erudição tamanha de Gershom Scholem, as suas explicações de textos cabalísticos (mística judia) de influência fantástica sobre a teoria literária em geral, sobre o modo de ler a poesia de críticos e investigadores não judeus e plenamente agnósticos. Sabe-se que fechados em revistas escritas em hebraico se encontram algumas das obras de Sholem não obstante títulos publicados pela Princeton University Press que se dirigem inequivocamente a um público instruído.
A Life In Letters (1914-1982) de Gershom Scholem que tive a oportunidade de ler em plena convivência com um admirador e conhecido de Scholem, deixou-me a necessidade de conhecer aquele que fosse o grande poema, a grande arte como tributo a este enorme servidor da inteligência.
Scholem é aquilo a que eu chamaria um homem do pensamento formado na erudição. Do pouco conhecimento que dele tenho e sempre terei, intuo dele uma mestria grávida de uma realidade nunca herdada. Sinto-lhe um anarquismo necessário à desconfiança pelas convenções, um misticismo religioso com origem no cético. E mais não ouso. Era e foi sempre ele um dos grandes vedores que conheci ou imaginei nas mil quintas do mundo. Dele tenho obtido muitas ajudas para a minha iniciativa de lhe reler as páginas que possuo. Ajuda-me a compreender o passado como o faria um profeta da luz sobre o futuro.
E não serão os escritores da profundidade estes profetas da luz? Scholem também sempre voltou a Kafka sobretudo quando a tensão se instalava de si para si.
E Scholem pedia que lhe perguntassem
O que entende por «o nada da revelação»
Ou a revelação não fosse o processo que está para aparecer, com ou sem validade, com ou sem significação.
E se entretanto o só, nele está Celine, Borges, Canetti, Duras, Aristóteles, a Geografia, o Desenho, as Línguas, a Ciência, a Economia Política, a Astrofísica, a Paleontologia, a Poesia enfim a recompensa extraordinária que em nós só a universidade é e pode.
«Lo que cuenta no es mañana, sino hoy. Hoy estamos aqui, mañana tal vez, nos hayamos marchado»
«Amada pastora minha,
Teus repentes me maltratam,
Os teus desdéns atormentam-me,
Teus desatinos me matam.
(…) Parti uma vez de ti
(…) ditoso o pastor que alcança
Tão prazenteiro fim de sua esperança!
De pano barato a sela
(…) no peito todas as cartas.»
A Assírio e Alvim em março de 2011 assume uma Antologia Poética de Lope de Vega, com uma tradução de José Bento, colocando-nos na mão a possibilidade de entendermos um dos melhores poetas barrocos da literatura espanhola. Nascido em 1562 em Madrid oriundo de família humilde, não lhe faltaram inimigos a acusá-lo de mentiras, nomeadamente sobre eventuais fidalguias a que se dava por familiar e mesmo colocando-se dúvidas sobre a autoria de certos romances. Cervantes, não obstante tê-lo incluído entre os grandes talentos de então, veio mais tarde a torná-lo alvo dos seus ataques. Em 1602 publica Lope de Veja um dos seus livros de poesia mais importantes - 200 sonetos incluem a primeira parte deste livro juntamente com o extenso poema La hermosura de Angélica - e expoente inequívoco do Barroco espanhol. A obra deste escritor pela sua extensão e variedade colocou-nos sempre perante a dificuldade de o conhecermos, desde logo pela falta de acesso a livros seus há muito não editados. Seguramente só um especialista deste lopista acede e rejeita invulgaridades das quais não somos conhecedores. Sabemos que Lope aprendeu muito com o teatro de Gil Vicente, e, também conhecemos esta vontade de expor a pujança e a ousadia de uma escrita que à data ultrapassava e muito o homem e o poeta que ousou ser.
Um instrumento, mesmo harmonioso,
em mãos distintas é muito dif´’rente;
a espada no cobarde ou no valente
tem um efeito assustado ou corajoso.
(…) pide segurida a la fe griega,
Consejo al loco (…)
Verdade al juego )…) e fruta al polo donde el sol no llega.
Vejo e sinto nas palavras de Lope de Veja um noturno filho da terra, mas fonte clara de muitas interrogações.
Teresa Bracinha Vieira
Obs: Entre muitíssimos livros sobre Lope, li apenas José Montesinos, Estúdios sobre Lope de Veja, Edições Anaya, Salamanca, 1967. Por entre edições modernas que foram recomendadas pela nossa Faculdade de Letras, recordo aqui uma edição de Macarena Gómez de 2008, Rimas humanas y divinas del licenciado Tomé de Burguillos.
'I am interested in creating something you can believe in.' , Steven Holl, 1996
A arquitetura de Steven Holl (1947) aprofunda-se pelo meio das sombras, adensa-se pelo meio da luz. É lugar, é ideia, é fenómeno.
Sombra/Luz
'I went to Rome and I lived behind the Pantheon in an apartment with no windows. Every morning, I would get up early and go down one block into the Pantheon and see this circle of light coming down from the top of the dome.', Steven Holl
Tal como escrito em 'In Praise of Shadows' (Junichirō Tanizaki) na arquitetura de Steven Holl a definição de espaço é semelhante à dos espaços nas casas japonesas, porque depende da variação das sombras - sombras escuras contrastam com as sombras claras (ver o projeto da Casa da Piscina e Estúdio de Escultura, em Scarsdale, 1981). As aguarelas, que acompanham sempre o desenvolvimento dos projetos de Holl, procuram pelos efeitos da luz no espaço.
Ideia
Steven Holl concretiza ideias: 'I have always believed that each project should have an idea which is driving the design.'
Para Holl, a ideia, num projeto, prevalece eternamente. A materialidade construída é perecível. Por isso, Holl está verdadeiramente interessado na natureza filosófica das ideias - ideias como origem e como potencial de fenómenos. As suas ideias surgem através do imprevisível - porque cada lugar apresenta condições particulares e específicas - e desejam valorizar a existência do todo e não do fragmento.
Fenómeno
'Architecture unlike philosophy, art, or linguistic theory, has the potential to connect to everyone.', Steven Holl
Steven Holl encontra um modo híbrido de trabalho entre o enquadramento conceptual e a aproximação fenomenológica.
A validade dos princípios da sua arquitetura funda-se num conhecimento pré-reflexivo.
Jean-François Lyotard escreve que é a fenomenologia que permite ultrapassar as próprias incertezas da lógica, através de uma linguagem que exclui a incerteza. O ponto de partida são os dados imediatos da consciência. Estudam-se os fenómenos, tudo aquilo que aparece à consciência, tudo aquilo que é dado. Trata-se de explorar a própria coisa tactilmente, de modo a evitar forjar hipóteses, sobre o que une o eu ao fenómeno - porque ao arranjarem-se explicações para essa coisa deixa de ser a própria coisa.
'I think architecture offers the hope of returning to us all those experiential qualities: light, material, smell, texture, that we have been deprived of by the increasingly synthetic environment of images on video screens.', Steven Holl
Para Steven Holl, A experiência imediata e a intuição tomam uma importância singular no entendimento da realidade e formam as ideias. A luz, a sombra, a textura, o detalhe e a sobreposição espacial são os elementos físicos que constituem o objeto construído - que é presença sensível mas simultaneamente significado que prevalece para sempre.
1. Esta estranha primavera de 2005 vai-se infiltrando muito outonal. Em qualquer sentido da palavra, das nuvens e do vento. Olhem bem à volta e reparem nas caras das pessoas. Já atentaram bem no número de caras que as pessoas agora têm? O número de pessoas é grandessíssimo, eu sei, mas o número de caras é obscenamente maior, porque, nesta estranha Primavera, quase todos andam com várias. No ano passado, por esta altura, as pessoas andavam com as caras do costume. Não direi com as caras com que nasceram, porque essas, já se sabe, duram umas horas ou uns dias. Também não estou a pensar nas caras com que se fizeram gente e que acabam quando ficam gente feitas. Mas com essa, que vem depois daquela, e que é a cara com que nos habituamos a vê-las, mais ruga menos ruga, mais dente menos dente. Cara com que se começa a parecer a cara dos filhos deles, quando ficam tal pai tal filho. Cara que, às vezes, até se pega à mulher (ou ao marido) que, depois de muitos anos de matrimónio, acontece ficar parecida. Cara que, outras vezes, passa deles para o cão, igual ao dono. É estranho? Não acho nada. Uma cara é uma cara e não há assim tantas que não se compreenda alguma economia, sobretudo quando há que baixar o consumo. Estranho é o que está a acontecer agora. Com inquietante dissipação, as pessoas mudam de cara. Experimentam uma, acham que não lhes fica bem, usam outra, depois outra e mais outra. Para mim, que levo tempo a habituar-me a uma cara nova, esta sucessão de caras assusta-me. Qualquer dia, ainda me acontece o que aconteceu a Malte na Rua Toullier, num 11 de setembro. Vou por uma rua vazia, e uma mulher deita a cara às mãos, e fica-lhe a cara nas mãos. Que visão será mais horrível? Uma cara do avesso nas mãos de uma mulher? Ou uma cabeça toda nua, esfolada viva, sem cara? E o Malte, de Rilke para quem não saiba (se não souberem Rilke já não tenho cara para vos aparecer mais), viu isso tudo, em Paris e em setembro, há um ror de anos. Ver isso em Lisboa, em março, nos dias que correm, não há cara que aguente. Mas, com o balanço que isto leva, qualquer dia acontece. Pode ser já para a semana. Deus nos acuda, ou aquele rei que era irmão de Valentina Visconti, essa que - diz-se - morreu de desgosto.
2. De desgosto morreu também Niels Jacobsen, um médico islandês magrinho e pálido (eu, pelo menos, imagino-o assim) que, quando era mais magrinho e menos pálido, namorava, na sua gélida ilha, a quente e cúpida Maria Borman (também sou eu quem a imagina assim). A certa altura da vida (porque é que se diz "a certa altura da vida" mesmo para vidas que nunca tiveram qualquer altura?) resolveu fazer uma longa viagem pela Europa, visitar países quentes, a Itália, a Grécia, Chipre. Ela escrevia-lhe, todas as semanas, cartas que sempre começavam por "Meu Amor". Perguntava-lhe se ele se lembrava das tardes outonais em que iam os dois sozinhos passear. Ele respondia-lhe todas as semanas a contar-lhe de povos alegres e de pinhais. Mas, ao fim de seis meses, as cartas deixaram de chegar e as dele ficaram sem resposta. Escreveu à família, a pedir, por amor de Deus, que lhe dessem novas, mas a família dava-lhe de todos, menos dela. Só sabia que Maria não tinha morrido, pois recebia os jornais de Reykjavik e, das exaustivas necrologias desses tempos, não constava o nome dela. Pensou nunca mais voltar, tal o medo de a reencontar, quente e cúpida, nos braços de outro. Mas, por fim, regressou, como desde Ulisses ou desde Telémaco, todos regressamos. A família recebeu-o em festa mas ninguém mencionou o nome de Maria. Ele também não perguntou, por orgulho ou por desespero. Só que os desesperos em causas de amor ao amor aportam, infalivelmente. Quando Greta Bruble, que ainda era contraparente, veio passar férias de Verão a Reykjavik (e tinha a voz cansada e rolava os "rs" com meiguice e, desta vez, só metade é imaginação minha), o cabelo dela fez-lhe lembrar o cabelo de Maria, a cintura dela fez-lhe lembrar a cintura de Maria. Casaram-se na Primavera, quando as nuvens se confundem com os pântanos gelados e a calma polar amancia as próprias falésias. Niels deixou de se lembrar das tardes outonais. Depois (e entendam por depois o tempo que quiserem) chegaram uns amigos suecos, médicos como ele, novos como ele, magros como ele, que quiseram visitar os hospitais-modelo atribuídos à Islândia. Um dia passaram diante da leprosaria, onde o novo diretor, que tinha sido aluno do pai de Niels, os recebeu com afeição. Enquanto a mulher do diretor e Greta preparavam um chá, o diretor levou-os a visitar as espaçosas salas dos doentes. Havia tanta luz, havia tanta serenidade. Agora sou eu quem vos jura que não inventei nada. Viram a sala das crianças, a dos homens e, por fim, a das mulheres, que eram cinco. Levantaram-se todas e viraram-lhes as costas, para que os jovens médicos lhes não vissem as caras. Até que, de repente, Niels parou. Pareceu-lhe reconhecer uma delas, na que estava mais à direita, Maria, a antiga Maria dele. Ainda tentou fugir, mas não pôde suportar a ideia de viver o resto dos seus dias com dúvida tão terrível. Chegou mais perto e eram os cabelos castanhos de Maria, esses cabelos tão crespos que todos os pentes se partiam contra eles. E era a nuca de Maria, essa nuca nervosa que o sofrimento ainda não abatera. E eram os ombros de Maria, esses ombros tão redondos que ela mal conseguia levantar os braços para ir colher cerejas. E eram as ancas de Maria, essas ancas que ele tantas vezes abraçara, quando chegava de mansinho e lhe tapava os olhos com as mãos. Nesse momento a forma de mulher que se parecia com Maria vacilou e tombou. As outras continuaram de pé, com os fusos de tecer na mão, "como as Parcas quando a morte vai sozinha". Niels, no regresso, ainda conduziu a carruagem, entre as falésias, sem estremecer e sem deixar que os cavalos saíssem da rota. Mas, logo que chegou a casa, adoeceu. Durante seis meses não se levantou e não disse uma palavra. E morreu face ao outono.
3. A história que acabei de contar é o resumo aproximativo de um conto de Giraudoux chamado "L'Ombre sur les Joues". Giraudoux escreveu-o em 1908, aos vinte e seis anos, num jornal para onde escreveu muitos contos. Só foi publicado oito anos depois da morte dele, em 1952, entre os "écrits de jeunesse", num livro chamado "Les Contes d'un Matin". "Morreu face ao Outono", traduzi eu. Em francês, Giraudoux escreveu: "Et il mourut vers l'automne", muitíssimo mais bonito. Mas ninguém, no século XX, escreveu melhor francês que Giraudoux (Gide?). "L'Ombre sur les Joues" contrasta com os outros contos da juventude (da manhã) pelo seu lado trágico. Os comentadores atribuíram-no à influência de Jean-Peter Jacobsen (1847-1885) que Giraudoux, como Rilke, descobriu nos inícios do século passado. A 1 de Agosto de 1902 a rodin: "Lembro-me muito bem que, há cinco ou seis anos, quando li pela primeira vez um livro inesquecível de um grande poeta dinamarquês (Jean-Peter Jacobsen) só pensei em procurar esse homem e fazer tudo para me tornar digno de ser amigo dele e profeta no coração dele perante todos os que ainda o não tinham encontrado. Mas, no dia seguinte, disseram-me que ele tinha morrido, muito novo, muito sozinho, numa aldeiazinha muito triste, morto pelo clima cruel do seu país sombrio." Foi por causa de Jacobsen que Rilke visitou, muito mais tarde, a Dinamarca, e consequentemente, foi por causa dele que escreveu "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge". O livro que Rilke leu foi "Niels Lyhne" (1880), o livro que me levou a mim a ler Rilke, há muitos, muitos anos. Foi Rilke, ou foi Rodin, quem foi profeta de Jacobsen junto de Giraudoux? Disso, já não sei.Sei é que neste estranho março de 2005, Jacobsen, Giraudoux e Rilke me apareceram de novo, trazidos por um morto que tinha o mais sereno rosto de morto que já vi. Alguém me disse: "Eu não sou crente, mas acho que é o rosto de um santo." Pensei então em Hjerrgild, o amigo de Niels, e na oração final deste, junto ao corpo agonizante de Niel. "Se eu fosse Deus, preferia conceder a salvação eterna àqueles que morrem sem se converter." Depois, olhei à volta e reparei nas caras. E lembrei-me de outra frase de "Niels Lyhne", que vem quase a seguir àquela: "Seja como for, é bom ter um Deus a quem dirigir lamentos e orações." Como o outro Niels (o de Giraudoux) "mourir face à l'automne".
por João Bénard da Costa 4 de março 2005, in Público