CRÓNICA DA CULTURA
Há que provar de tudo à mesa. Há que não se dizer não gosto disto ou daquilo, um dia, prometo-vos, irão comer os vossos próprios erros e entenderem que de todos se não safam sem prejuízo. Que muitos serão mesmo piores que os peixinhos da horta que agora vos causam repulsa.
E o olhar da Dulce tornava-se vago quando escutava estas palavras secas do pai, o mesmo pai que também a mimava.
Sabem, continuava o pai da Dulce, os madamos e as madamas ricas podem mudar de ideias, os e as pobres, é que não. Mesmo assim a estes de nada adiantava mudarem, por cima ficavam sempre os outros. Vá comam a sopa toda. Os ricos puxam as colchas até ao queixo para encobrirem os fios de ouro. Comam a sopa a toda! Mesmo que fossemos surdos podíamos ouvi-los, aos ricos, com o olhar a guardarem a caixa do dinheiro.
E vá comam a fruta que faz bem. Para uma certa maioria que visse essas maçãs, haveriam de ver como os olhos deles eram duas velas a derreter-se por elas.
Um dia saberão que nunca se deve beber água por nada de metal. Deve ser bebida por uma cabaça. Oram vejam, nós já usamos copos de vidro e os ricos usam de ouro! Limpem a boca e vá, vão brincar.
Depois destes almoços, ficávamos, nós crianças, todos tão velhos e tão desentendidos que a brincadeira era como uma professora boa que em tempos fugira da escola para não aprender de cor 7x8.
Olhávamos para as bicicletas como se pedalar nada fosse. Sentávamo-nos no chão ao lado delas e de calcanhares fincados, sorrateiramente, como se alguém nos espreitasse, deitávamos fora os peixinhos da horta que tanto detestávamos e que tínhamos enrolado nos lenços de assoar aquando da hora do almoço.
Tá quase dizia-me a Dulce. Tá quase e podemos brincar em paz.
Teresa Bracinha Vieira
Maio 2017