CRÓNICA DA CULTURA
Ao que poderíamos chamar a grande arte ou a grande poesia, exigem memória precisa, clareza de interpretação e finura na concentração. O que é erudito tem sempre um faro escondido atrás da mão da alma, e só assim descortina o que existe por baixo da profundidade. Chega-me à memória um vedor que visitava com regularidade a quinta de meu pai. A mim parecia-me que ao rodarem os pauzinhos que o vedor tinha entre as mãos, escreviam eles no ar, a palavra silêncio, ou não estivéssemos perante a indicação de um pormenor da ínfima luz que se mostra claríssima, na pujança da erudição maior, tão logo a água jorrasse intérprete da primeira grandeza.
Desta água ao tecido que o poema expõe surge a voz escrita do estilo do intérprete que vai cartografando realidades alquímicas que reiteram sem dificuldade a força do que está em causa.
Inevitavelmente recordo a erudição tamanha de Gershom Scholem, as suas explicações de textos cabalísticos (mística judia) de influência fantástica sobre a teoria literária em geral, sobre o modo de ler a poesia de críticos e investigadores não judeus e plenamente agnósticos. Sabe-se que fechados em revistas escritas em hebraico se encontram algumas das obras de Sholem não obstante títulos publicados pela Princeton University Press que se dirigem inequivocamente a um público instruído.
A Life In Letters (1914-1982) de Gershom Scholem que tive a oportunidade de ler em plena convivência com um admirador e conhecido de Scholem, deixou-me a necessidade de conhecer aquele que fosse o grande poema, a grande arte como tributo a este enorme servidor da inteligência.
Scholem é aquilo a que eu chamaria um homem do pensamento formado na erudição. Do pouco conhecimento que dele tenho e sempre terei, intuo dele uma mestria grávida de uma realidade nunca herdada. Sinto-lhe um anarquismo necessário à desconfiança pelas convenções, um misticismo religioso com origem no cético. E mais não ouso. Era e foi sempre ele um dos grandes vedores que conheci ou imaginei nas mil quintas do mundo. Dele tenho obtido muitas ajudas para a minha iniciativa de lhe reler as páginas que possuo. Ajuda-me a compreender o passado como o faria um profeta da luz sobre o futuro.
E não serão os escritores da profundidade estes profetas da luz? Scholem também sempre voltou a Kafka sobretudo quando a tensão se instalava de si para si.
E Scholem pedia que lhe perguntassem
O que entende por «o nada da revelação»
Ou a revelação não fosse o processo que está para aparecer, com ou sem validade, com ou sem significação.
E se entretanto o só, nele está Celine, Borges, Canetti, Duras, Aristóteles, a Geografia, o Desenho, as Línguas, a Ciência, a Economia Política, a Astrofísica, a Paleontologia, a Poesia enfim a recompensa extraordinária que em nós só a universidade é e pode.
Teresa Bracinha Vieira
Maio 2017