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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

De 22 a 28 de maio de 2017.

 

«Antologia dos Economistas Portugueses», com seleção, prefácio e notas de António Sérgio (Biblioteca Nacional, 1924) é um clássico da nossa bibliografia a não perder.

 

UM PENSAMENTO OPORTUNO
O pensamento económico português foi marcado ao longo dos séculos pelo estudo das condições que caracterizam a nossa situação quase paradoxal de um território europeu virado ao mar, mas com inequívocas carências, com exigentes solicitações globais em razão da presença dos portugueses no mundo. Tal é o pano de fundo dos movimentos que obrigaram sucessivas gerações a partir – ora para a Índia, ora, em ocasiões diferentes e com destinos diversos, para a emigração. Se a longa costa atlântica portuguesa permitiu contrariar a situação periférica, o certo é que houve sempre uma tensão entre a defesa de um melhor aproveitamento dos recursos próprios e a consideração das oportunidades dos movimentos de pessoas e mercadorias… São bem conhecidos os alertas de Infante D. Pedro das Sete Partidas na célebre Carta de Bruges ou as queixas de Francisco Sá de Miranda: “Não me temo de Castela, donde guerra inda não soa, / mas temo-me de Lisboa que ao cheiro desta canela o reino nos despovoa”. E não esquecemos o conde da Ericeira na defesa do espírito manufatureiro, a que a chegada do ouro do Brasil não deu continuidade. Houve, assim, plena consciência de que era preciso fixar riquezas depois de partir em sua busca. Essa procura teria de ser compensada de alguma forma, para que a míngua de pessoas não impedisse a criação e consolidação de uma cabeça coerente e de uma orientação eficaz para o império.

 

OBRAS PIONEIRAS DA NOSSA CULTURA
Falando de obras pioneiras portuguesas no tocante à economia, cabe referir, os fundamentais autores seiscentistas – Mendes de Vasconcelos, Severim de Faria e Ribeiro de Macedo. Em 1608, Diálogos do Sítio de Lisboa de Luís Mendes de Vasconcelos (c. 1542-1623) é o primeiro exemplo de uma tomada de consciência sobre a importância da capacidade criadora da economia. O autor viveu na passagem do século XVI para o século XVII, foi Capitão das Armadas do Oriente egovernador em Angola. Nesse livro – onde discutem um Filósofo, um Soldado e um Político – encontramos a exaltação das qualidades da cidade de Lisboa, sobretudo quando comparada com Madrid e, tratando-se do tempo de Filipe I, durante a monarquia dual, António Sérgio diz-nos que o autor procurava convencer o rei “a mudar de Madrid para Lisboa a capital do seu império”. Por outro lado, combate-se “o estonteamento da nossa política ultramarina, que consistiu em se perverter o objetivo comercial com as ideias de conquista”. Luís Mendes de Vasconcelos defende, assim, a criação e a fixação, não apenas no domínio teórico, mas com exemplos práticos do que hoje classificaríamos como ordenamento do território, em especial para o aproveitamento agrícola nas lezírias do Tejo e na região de Lisboa. Ainda para Sérgio, este reformismo assenta na “política fixadora, a da produção metropolitana, com base na estabilidade do comércio do ultramar, e da sua nacionalização”; bem como num conceito de glória e heroísmo –“a glória do político e do militar, o heroísmo do servidor da pátria está em concorrer para a prosperidade dela”…

 

REMÉDIOS PARA O DESPOVOAMENTO
Já o clérigo e teólogo formado pela Universidade de Évora, Manuel Severim de Faria (1583-1654) subscreve, com preocupações paralelas, Dos Remédios para Remédios para a falta de Gente (1655), onde critica a prioridade bélica em detrimento do comércio e da manufatura – somando-se esse mal á falta de investimento, aos defeitos do arranjo agrário, à concentração fundiária, ao absentismo e ao despovoamento... De mais a mais, o império do Índico apresentava-se frágil por falta de organização mercantil, e por defeitos no arranjo agrário. Daí se advogar a prioridade para o comércio, a indústria e as manufaturas, único modo de fixar recursos, devendo a preocupação de criar riqueza prevalecer sobre a conquista. Só favorecendo o governo do Reino a introdução de ofícios e técnicas modernas poderia o mesmo alcançar a independência económica da nação. O jurisconsulto e diplomata Duarte Ribeiro de Macedo (1618-1680) publicou o Discurso sobre a introdução das artes no Reino (1675). Em coerência com a sua correspondência com o Padre António Vieira e D. Francisco Manuel de Melo. O escritor considera ser fundamental a compreensão de que só haveria um meio para evitar a dependência do exterior pelas importações, e esse seria impedir que o dinheiro saísse do Reino através da criação de artes e manufaturas. A introdução de uma tal orientação evitaria o dano que fazem ao Reino o luxo e as modas; obstaria à ociosidade; tornaria o país povoado e abundante com gentes e frutos; aumentaria as rendas reais (“porque o peso que levam poucos, dividido por muitos, é mais fácil de levar e pode ser maior”); e atrairia ouro de Espanha, aproveitaria mais as colónias e daria ao porto de Lisboa, superior ao de Constantinopla, a primazia do comércio do mundo. Escrevendo na França de Colbert, Ribeiro de Macedo considerava que haveria que seguir os caminhos mercantilistas de França e Itália e que a Inglaterra começava a trilhar. Saliente-se ainda que, tal como o Padre Vieira, o diplomata defendeu a necessidade de encontrar um entendimento com judeus e cristãos-novos de modo a angariar novos meios e capacidades. Dois outros diplomatas merecem referência pela valia dos seus escritos de orientação convergente com a de Duarte Ribeiro de Macedo – refiro-me a Alexandre de Gusmão (1658-1753) e D. Luís da Cunha (1662-1749). O primeiro defendeu o combate à ociosidade, o aumento da agricultura, o aproveitamento das ribeiras para navegar e regar, o estabelecimento de fábricas, o aumento da indústria e o favorecimento do comércio dentro e fora do reino. O segundo insiste na necessidade de dar um uso positivo à propriedade agrícola e de favorecer o investimento nas artes. Tratava-se de colher nas experiências das nações civilizadas os melhores exemplos com resultados práticos.

 

LIÇÕES PARA DIVERSOS TEMPOS
Quando António Sérgio publicou a sua Antologia dos Economistas Portugueses (1924), lembrou que os três autores seiscentistas “iniciaram a doutrina da política da Fixação, contra a política do Transporte; e o reformismo português, desde aí até agora, será o desenvolvimento dos princípios que defenderam nas suas obras. Em Luís Mendes de Vasconcelos é a Fixação, pela agricultura; em Severim de Faria, pela agricultura e pelas indústrias; em Ribeiro de Macedo, finalmente, são as minúcias de um programa de fomento industrial”. Logo no final do século XVII, porém, o dinheiro das minas do Brasil e mais tarde os empréstimos do constitucionalismo e as remessas dos emigrantes adiaram a realização das ideias dos três reformadores. Mas o seu espírito continua, ressalvadas as distâncias e qualquer anacronismo, vivo e pertinente, em nome de um reformismo que foi assumido por Herculano, pela geração de 1870, pela “Seara Nova” e pelo moderno pensamento democrático. Regressar aos clássicos é, no fundo, um privilégio, sobretudo quando podemos usufruir através da sua leitura de ensinamentos duradouros e perenes.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Esta manhã, cedinho ainda, pareceram-me mais silenciosos os melros que me alegram o despertar. Fui à varanda do quarto e avistei um gato que manhosamente rondava o espaço onde os pássaros soem saltitar, a bicarem minhocas, sementes e uns pedacinhos de pão que, todos os fins de tarde, ali deixamos para o dejejum de suas excelências. Como gato não voa, melro esperto pousa mais alto, depois de piar alarme geral e, caladinho, aguarda. Andam por aí, soltos, uns gatos poderosos, que servem a desratização de terrenos da quinta com elevado e eficaz profissionalismo. Um deles, de lindo pelo preto, simpatizou comigo e, uma vez por outra, vem bater-me à porta para, ao cair da tarde, eu lhe levar uma malga de leite. Não lhe conheço calendário litúrgico, mas deve ser em datas festivas, ou simplesmente dia de jantar fora.

 

   Saí de casa há pouco. Assim que me viram, logo os melros acorreram e voltaram ao saltitar da sua restauração. E os gatos lá foram, pachorrentos, para longe da minha vista, enrolar-se em qualquer cantinho acolhedor, ao calor do abençoado sol da manhã amiga. Os pássaros já se habituaram à minha companhia, vou-me passeando, chego junto da "minha" cerejeira do Japão. Os botões, e muitas folhas, começaram a rebentar, três deles já desabrocharam em tímidas flores brancas, a árvore começa a cantar. Anuncia o "meu" hanami bombarralense. Recordo os piqueniques nipónicos, a fraterna alegria de festejar a primavera, com a mãe natureza, os irmãos humanos, os deuses todos, essa ação de graças pelo efémero da flor, tão belo como o da vida, pois morre depressa mas certamente voltará a nascer...

 

   Sabias tu, Princesa, que as flores que os japoneses mais admiram e amam são precisamente as que mais cedo murcham ou os ventos mais depressa levam? Já te tenho falado do despojamento, da assimetria, do silêncio, como valores estéticos na cultura do Império do Sol Nascente. Talvez possa dizer-te que todos têm uma essência de humildade, como assim também a contemplação do efémero - pois a efemeridade embeleza a beleza, esta é irmã do passarinho que Murasaki solta no Conto do Genji: a posse encerra, a liberdade voa - ou a visão agradecida do sol que, pela manhã, acolhemos. A tradição dos hanami (hana=flor, mi=visão, hanami=ver as flores) vem do início do século IX, da corte do imperador Saga em Heiankyo (Kyoto), que, pela primavera, juntava os cortesãos debaixo das cerejeiras em flor (sakura).

 

   O amor da beleza que passa, e as graças que a Deus damos pela vida que morre e vive sempre, são marca indelével da espiritualidade japonesa. Por paradoxal que pareça, a duração do belo não se encontra na visão imediata, descobre-se na contemplação do que é invisível para os olhos. Tal como não podemos circunscrever - nem sequer o vemos - o espaço do espírito: ele é infinito, como a tamanha liberdade que Deus connosco partilha. Deixo-te com a minha versão portuguesa de um haiku de Matsuo Basho (1644-94): 

              
               os visitantes recolhidos no templo

               não veem

               que as cerejeiras deram flor

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira

TEATRO ANGRENSE

 

EVOCAÇÃO DE TEATROS DOS AÇORES II 

 

Fazemos hoje uma referência ao Teatro Angrense, pois constitui ele também um belo exemplo, em plena atividade, do que chamamos a “geração” dos teatros oitocentistas, construídos ao longo do país e mesmo, como aqui se vê, nas zonas mais descentralizadas – mas nem por isso, evidentemente, menos relevantes no ponto de vista urbanístico, arquitetónico e cultural: geração definida e efetivada na sequência do garreteano Teatro de D. Maria II, inaugurado, como bem sabemos, em 1846.

 

E vem a propósito, então lembrar que Garrett e António Feliciano de Castilho, deixaram a sua marca específica nos Açores, onde estiveram, em épocas separadas, por razões e permanências diversas, ambas aliás algo episódicas – mas nem por isso, note-se bem, menos relevantes e significativas na cultura nacional e local.

 

Em qualquer caso, o que agora nos interessa é evocar a fundação e a permanência, em plena atividade deste Teatro Angrense, devidamente adaptado também ao espetáculo cinematográfico, modernizado no ponto de vista da atividade técnica e cultural, mas sem que isso implique a destruição da sala oitocentista: exemplo que, como temos aqui visto, não foi nem é acompanhado em tantos e tantos casos, por esse país fora… E nesse aspeto só há que elogiar a politica urbanística prosseguida em Angra do Heroísmo, que aliás lhe valeu ter sido classificada como Património Mundial da UNESCO.

 

O Teatro Angrense representa um belo exemplo dessa descentralização, acentuada pela insularidade, que à data da construção e inauguração, era ainda mais evidente. Trata-se, de facto, de um belo exemplo de arquitetura de espetáculo, inaugurado que foi em 22 de novembro de 1860. As notícias da época dão-nos conta de uma celebração que envolveu, além de representações dramáticas cindas de Lisboa, um concerto no salão nobre, a cargo da Banda do Regimento de Infantaria: celebração típica da época!…

 

O Teatro Angrense beneficiou de obras de remodelação funcional e arquitetónica, primeiro em 1926, posteriormente já na década de 80 do seculo passado, tendo sido entretanto municipalizado.

 

Ora, tal como já escrevi na sequencia de uma detalhada vista para a elaboração do livro “Teatros de Portugal” (ed. INAPA – 2005) e que posteriormente repeti,  o Teatro Angrense mantem-se com alterações aceitáveis numa estrutura original oitocentista que se conservou,  apesar de mudanças, como a do fosso da orquestra, que  mal se descobre.

 

E acrescente-se uma nota de história que valoriza o próprio teatro em si, pelo enquadramento urbano.

 

Em 1599 havia no local um armazém de depósito de fazenda e mais mercadorias vindas do Oriente. Num surto de peste que assolou a cidade, o armazém foi incendiado: entendeu-se, bem ou mal, que a epidemia tinha lá a sua origem…

 

Passados mais de dois séculos, constrói-se então o Teatro. E em qualquer caso, a sala “resistiu” às adaptações a cinema, e é notável no seu conjunto de balcão, frisas e camarotes.

 

Acrescente-se que essa estrutura basicamente inscreve-se na sequencia histórica de infraestruturas de cultura e de espetáculo que marcam os Açores, e que, na Ilha Terceira, ainda se concretiza hoje nos Centros Culturais de Angra do Heroísmo e de Praias da Vitória, ambos segundo projetos do arquiteto Miguel Cunha, autor ainda de um Centro Cultural na Graciosa.

 

DUARTE IVO CRUZ

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

VIII - NEOPLASTICISMO

 

1. Movimento abstracionista, lançado na Holanda, com um grupo de artistas fundadores da revista De Stijl (O Estilo), publicada em 1917, na cidade de Leyden, de que eram expoentes Piet Mondrian e Theo van Doesburg, com grande influência sobre a arte, arquitetura e o design do século XX. Tinha ambições internacionais, publicando o seu manifesto de 1918, em quatro línguas. Os seus fundadores ansiavam criar um estilo internacional que trabalhasse pela formação de uma unidade internacional na Vida, na Arte e na Cultura.

 

Procuravam uma estética diferente das anteriores, uma nova (neo) abordagem das artes plásticas (plasticismo), contestando o individualismo e empenhando-se pela criação de uma harmonia universal, exprimindo plasticamente o que todas as coisas têm de comum, em detrimento daquilo que as individualiza e separa.

 

A arte tinha de ser reduzida ao essencial: cor, forma, linha, espaço. A cor reduzir-se-ia, na sua forma mais pura, simplificada e estritamente essencial às três cores primárias: amarelo, azul e vermelho. As formas geométricas limitar-se-iam aos quadrados e retângulos. Elimina-se a linha curva, herdeira do barroco. Apenas linhas horizontais e verticais pintadas de preto e cruzando-se em ângulos retos, sugerindo equilíbrio e repouso. Não há ilusão de profundidade. Nem planos sobrepostos ou transições de tonalidade, mas superfícies planas de cores puras primárias.

 

Expressando inquietações e tensões entre os opostos da vida, as linhas horizontais e verticais expressam o feminino e o masculino, o negativo e o positivo, o bem e o mal, a luz e as trevas, a noite e o dia, a mente e o corpo, o espírito e a matéria, o mais e o menos, o alto e o baixo, o consciente e o inconsciente, a harmonia e desarmonia, o pacifismo e o belicismo. Da sua junção ou cruzamento forma-se um quadrado ou um retângulo.  

 

A obra de arte devia obedecer a leis próprias e específicas que fixavam uma abstração geométrica, ordenada e racional que tendia para a universalidade, buscando a sua essência elementar, captando a criação pura do espírito revelada por relações estéticas puras manifestadas em formas abstratas, repudiando temas reconhecíveis e qualquer referência à natureza.

 

2. Os quadros neoplasticistas têm uma linguagem fria, matemática e racional, não descrevendo nem dizendo nada, nem transmitindo mensagens, excluindo as formas naturais (bloqueios à expressão artística pura). Apenas interessando obras que descobrissem a unidade através das relações entre o espaço, a cor, a linha e a forma, como Composição em Vermelho, Amarelo e Azul, 1930, Coleção Alfred Roth, Zurique, de Mondrian, em que linhas retas se cruzam em ortogonal delimitando retângulos ou quadrados pintados de cores primárias em superfícies planas de composição assimétrica. O mesmo em Composição C (N.º III), com Vermelho, Amarelo e Azul, de 1935.

 

O que valia como aplicação a outras manifestações artísticas, desde a arquitetura ao design de produtos, como o comprovou Gerrit Rietveld, com a sua Cadeira Vermelha e Azul, de 1923, (design aplicado a objetos de uso quotidiano), inspirada e integrando as linhas pretas e cores primárias do neoplasticismo.

 

A que também não foi imune o estilista Yves Saint Laurent (de que falarei), concebendo uma coleção/vestido/s à Mondrian, multiplicando-se por uma gama sucessiva de aplicações hoje tão comuns (capas de telemóveis, iPhones, etc).

 

Para Mondrian a arte era parte integrante da vida real, não fazendo sentido ser sua função imitá-la, acreditando poder compreender-se a vida unindo o interno e o externo,  equilibrando harmoniosamente as forças universais antagónicas num equilíbrio dinâmico, que a sua crença na teosofia reforçava, podendo a arte atuar sobre a sociedade e criar um novo ser através de uma linguagem racional, diferente da irracionalidade da guerra.

 

Esta abstração racional e programada, embora criativa, inovadora e crucial, teve um percurso, revelado pelo modo gradual e experimental como Mondrian transitou do naturalismo para o abstracionismo, através de uma decomposição progressiva da imagem, numa sequência de quatro telas, tendo uma árvore como tema central: Tarde, Árvore Vermelha (1908), A Árvore Cinzenta (1912), Macieira em Flor (1912) e o Quadro n.º 2/Composição n.º VII (1913).

 

Theo van Doesburg, buscando novas experiências, afastou-se do purismo de Mondrian ao introduzir as linhas diagonais como elemento linear fundamental.

 

Há, porém, uma diferença entre a arte abstrata de Kandinsky, Malevitch, Tatlin e o  neoplasticismo, dado que com este movimento se alcançou uma forma de arte abstrata mais pura.

 

16.05.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

   Um gosto extremo pela verdade.

 

Um legado do meu tio-avô que em seus velhos anos sentia, no saber, satisfazer-se com o que tinha. 

 

Não sei até onde se contentou este meu tio em viver uma vida que ele chamava tão-somente desculpável e que não pesasse para ninguém. E eis esta outra consciência de que nesta verdade teria de se encontrar. Nesta verdade que queria dizer vida em total soberania, na qual, nem a lealdade dos filhos que não tinha, deixava de ser guardada num lenço de nariz amarrotado e que chegava aos olhos numa vigilância clara de quem faz contas às certezas.

 

E o desconhecido meu tio? como era?

 

Em silêncio, presumiu os vícios depois de os ter, mais ou menos estragados pelo exemplo de os repetir. Mais ou menos diferentes quando em si se acarinhavam. Também sentia este meu tio, como uma desgarrada de mentiras, quando alguém o acusava de furto, de uma espécie de furto por poder duvidar de que os outros é que estariam certos. Imprudência seria o que sobrava aos outros para causar boa impressão à mercê de a todo o tempo ser aprovada. Assim pensava e dizia, baixinho, enquanto rolava na cama que o sustinha em dor, em muita dor. E lá chegava a memória do livro que seguiria para Lisboa com os vinte escudos apertados entre a página 32 e 33.

 

Nunca fora avaro. A verdade ensinara-lhe que o dinheiro era coisa transitória e mundana, papelada poeirenta, a das contas. Ou, o que é pior, a do negócio. Toda a vida procurara desleixar e relaxar sem obrigações ou servidões ao dinheiro. Por temperamento e por sua condição coube-lhe pertencer segundo a sua vontade, à fotografia de si e das pessoas em si, e assim, tudo fluiu e fluiria até à sobrinha-neta, eu, que julgo ter entendido dele que o que nos imprime a condição de viver da comparação com outros, faz-nos sempre muito mais mal do que bem, pois atira lama ao gosto extremo pela verdade, no sentido de nos privarmos daquilo que queremos para atender às opiniões dos outros.

 

Com ele, com este meu tio-avô, ficou-me a possibilidade de me auto incentivar às viagens, ou elas não fossem em mim um desacordo com os costumes daquilo com que me querem e quiseram conformar. E a essa corrupção, eu digo e disse não, mesmo que na fotografia em seu dia esteja eu submetida a quem não tenha um gosto extremo pela verdade do entendimento, tal como este meu tio-avô, meu padrinho de batismo de vida, aristocrata de guerra aberta a quem lhe fedia, amante de ópera obstinado. Digno.

 

Teresa Bracinha Vieira

Maio 2017

SALVADOR SOBRAL: AMAR PELOS DOIS É AMAR PELO MUNDO (For The Both Of US)


Nunca é possível marcar uma data para vermos surgir Salvador, se dentro de nós nunca tivermos deixado de acreditar que ele representa a humanidade em processo constante e sem fim. Data afinal de olhar e surpreender o sonho. Eis.

 

Com 28 anos, define caminho. Sente-se que é ausente das imitações comportamentais de hoje. Tem dimensão e forma de pensamento.

 

Salvador Sobral, tão jovem, tão ele, tão nosso desejo, sabe o que é a libertação, conhece que a partir do momento em que ela se inicia, esse processo, nunca mais deixa de crescer até que daqui a bocadinhos quando por nós perguntarem, exaustos e devagarinho amaremos por dois, por ti que és mundo, por mim, que também me quero permitir saber ser mundo, e mesmo sabendo o que é sofrer, insiste Salvador em dizer 

 

Ninguém que foge da morte é imigrante. É sim, refugiado!

 

E há que ceder e sentir paixão até que a praia-mar se instale no coração e em nós esse local de encontro, Salvador que aceitamos agradecidos por coexistirmos na proposta que ofereces: – IN NAME OF THE WORLD, I LOVE 

 

Teresa Bracinha Vieira
Maio 2017

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

O PAI E O SILÊNCIO

 

1. Houve um tempo, tempo de que me lembro muito bem, em que, dos dias para tudo quase todos os dias, só havia um dia especialmente assinalado. Esse era o Dia da Mãe, celebrado a 8 de dezembro, na Festa da Imaculada Conceição de Maria. Dos pobres pais não se falava, embora eu duvide que esta precedência cronológica da Mulher sobre o homem sirva de conforto ou lenitivo face à recente questão das quotas. Não era Dia da Mulher, como agora se usa, mas celebração da maternidade. Se bem me recordo, o então cardeal-patriarca aproveitava o doce dia e a doce palavra para enaltecer as mães de muitos filhos ou as mães que tinham os filhos que Deus mandava. É claro que para tanto era indispensável uma ajuda masculina, mas suspeitava-se que essa ajuda fosse prestada por motivos prazenteiros, enquanto a Mulher, pelo contrário, cumpria o seu dever.


O certo é que não me lembro de Dias do Pai, embora o 19 de março, dia de São José, fosse, nesses tempos, dia santo de guarda. A tradição do Dia do Pai confunde-se-me, em percurso autobiográfico, com a mudança do Dia da Mãe para data móvel, tão móvel que me aconteceu mesmo esquecê-la. Houve até um ano - estava uma filha minha a divertir-se na América - em que esta telefonou de lá para dar beijo à Mãe em dia dela. Enorme pasmo e enorme enleio. A filha-pródiga lembrava-se da Mãe, de além-Atlântico, com chamada que, simbolicamente, ao que creio pela única vez, não foi paga ao destinatário. Filhos outros, e marido bem pertinho na mesma casa, tinham-se esquecido por completo. As consequências só não foram mais devastadoras porque alguém reparou a tempo que os Dias da Mãe não coincidiam nem nos continentes nem nos conteúdos. Ou seja, era Dia da Mãe na América, não o era em Portugal. Ninguém tinha que pintar a cara de preto e à minha filha "americana" só lhe restava repetir a dose. Começava-se então a ouvir a frase - também eu fiz minha - que com tanta mudança tinham dado cabo do Dia da Mãe. Frase tão feita como aquela que rezava: "Cá em casa nunca se ligou ao Dia do Pai." Eu, às vezes, protestava que era injusto, mas com fraquíssima convicção. É de pequenino que se torce o pepino e em pequeninos - nem eu nem os meus filhos - tínhamos sido torcidos para o Dia do Pai. A coisa só mudou no tempo dos meus netos, há uns vinte a esta parte. Seja num dia, seja noutro, as escolas fazem tal alarido, a comunicação social tal algazarra, o comércio tal proveito, que não há perigo que qualquer das datas progenitoras passem despercebidas. Até eu passei a receber presentes no Dia do Pai. Eu que nunca os dei e, que em matéria de honrar pai, só me lembro de ter sido obrigado, em hora mais remota, a copiar do livro da 3ª Classe para as mãos paternas, o extraordinário verso por cuja fidelidade juro à fé de quem sou: "Amo o meu Pai / como não amei, não amo, nem amarei / mais ninguém / a não ser a minha Mãe." O autor era autora e certamente nunca ouvira falar do complexo de Electra, que a conclusão do verso não consegue ocultar. Mas é certo, voltando aos dias de hoje, que, se se perderam, ou se deixaram perder, quase todas as origens míticas e religiosas dos dias para tudo ou dos dias para nada (nem sequer Santo António venceu em Portugal o ignoto São Valentim, no Dia dos Namorados) o Dia do Pai é praticamente o único, cuja génese é óbvia.

 

2. Ou não é nada óbvia. Porque se pode perguntar - e com alguma pertinência - porque se comemora o Dia do Pai em dia de santo que pai nunca foi, São José, castíssimo esposo de Maria. Só gente muito heterodoxa foi capaz de comentar (Mt 1, 25-28 - "e nunca a conheceu até ao dia em que ela deu à luz o filho, ao qual ele deu o nome de Jesus"), observando que o texto nada diz sobre o que se passou depois. Em relação a outra passagem (Mt 12,46) em que o mesmo evangelista fala de irmãos de Jesus, exegese estabeleceu há muito que, em hebreu e aramaico, o termo utilizado designa também parentes próximos. Por último, são muito tardias e espúrias as versões que atribuem a S. José filhos de casamento anterior, pelo menos tão tardias e espúrias como as que sustentam que ele viveu até aos 111 anos. De resto, sabemos muito pouco de S. José. O Evangelho segundo S. João não lhe faz qualquer referência. Dos sinópticos, Marcos também o ignora. Dos evangelhos canónicos, Mateus e Lucas são as fontes privilegiadas, sobretudo o primeiro. Logo na genealogia de Jesus Cristo se diz, a terminar, que "Jacob gerou José, o esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, a que se chama de Cristo".

 

Depois (Mt 1, 18-28 e Mt 2, 13-26) são narrados os três sonhos de José: o primeiro impediu-o de "repudiar sem escândalo" Maria, quando descobriu a gravidez dela, "antes de terem vida em comum". Disse-lhe o Anjo nesse primeiro sonho: "José, filho de David, não temas tomar conta de Maria, tua mulher. Porque ela gerou por obra e graça do Espírito Santo. E dará à luz um filho, a quem chamarás de Jesus, pois é ele quem salvará o povo dos seus pecados' (...) Depois de acordar, José fez o que o Anjo do Senhor lhe tinha mandado e tomou Maria com ele." O segundo sonho segue-se à visita dos Magos. "O Anjo do senhor apareceu em sonhos a José e disse-lhe: 'Levanta-te, toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto. E permanece no Egipto até que eu te previna. Pois que Herodes vai procurar o Menino para o mandar matar.' José levantou-se, e, de noite, levou consigo o menino e sua Mãe e fugiu para o Egipto onde ficou até à morte de Herodes."

 

O terceiro sonho aconteceu quando Herodes morreu. "O Anjo do Senhor apareceu em sonhos a José, no Egipto, e disse-lhe: 'Levanta-te, toma o menino e sua Mãe e regressa à terra de Israel, pois que morreram os que queriam tirar a vida ao Menino.' José levantou-se, tomou o Menino e sua Mãe e regressou à terra de Israel. Mas, informado que Arquelau sucedera a Herodes no trono da Judeia, receou voltar para lá. Avisado em sonho, retirou-se para a região da Galileia e fixou-se numa cidade chamada Nazaré." Sempre me deu que pensar este papel dos sonhos no "amadurecimento" de José. É a sonhar que acredita na virgindade de Maria e decide viver com ela e assumir, perante os homens, o lugar de pai do Menino. É a sonhar que toma resolução de acordar Maria e o Menino e de os levar com ele numa perigosa viagem para o Egipto; é a sonhar que toma a resolução (quantos anos depois?) de voltar a Israel, embora só num quarto sonho posterior (o mais elipticamente referido) o tenha confirmado na decisão, não onírica, de se fixar na Galileia e não na Judeia. Alguns comentadores têm falado na oniromancia de José, que contrasta com os ensinamentos do Eclesiastes que recomendava desconfiança: "Os sonhos têm deitado a perder muita gente e quem neles acreditou sucumbiu" (XXXIV, 1-8). José, pelo contrário, acreditou e, porque acreditou, salvou o Maria e salvou o Menino. A fé dele é como a fé de Abraão: contra toda a evidência. Por outro lado, é José quem escolhe para o Menino o nome de Jesus e é o primeiro a saber que Jesus virá ao mundo para o resgatar do pecado.

 

Por fim (se fim pudesse haver em tudo isto), Mateus define José com um único adjetivo: "Justo" ("era um homem justo"). O Padre Bartolomeu do Quental, em 1661, no Sermão sobre São José (aproximável de passagens de Santa Teresa de Ávila), comenta admiravelmente o uso da palavra justo. "E o que custa a um homem justo ser filho de Deus? O que custou a José. Nada. Diz o Evangelhista que São José, como fosse justo, não quis entregar sua Esposa... não entregar, claro está, que é não fazer nada e, não fazendo nada, foi São José justo... Muito devemos hoje a São José por nos facilitar tanto com o seu exemplo uma coisa tão grande como é ser justo não fazendo nada, e foi justo (...) Os outros Santos ensinam-nos a ser justos obrando; São José é Santo de tão boa graça que nos ensina a ser justos não fazendo."

 

3. Depois, São José só volta a surgir nos Evangelhos (Lc 2, 41-54) no episódio, precisamente situado aos doze anos de Jesus, em que este, sem que José e Maria se apercebessem, ficou sozinho em Jerusalém, no Templo, em vez de voltar com eles para Nazaré. Quando descobriram que o tinham perdido, voltaram para trás, repetindo uma jornada de marcha. Três dias o procuraram em Jerusalém e três o não acharam. Quando finalmente o encontraram (o Menino entre os Doutores) quem o censurou foi a Mãe: "Meu filho, porque nos fizeste isto? Vê como teu Pai e eu te buscávamos, angustiados.' E Jesus respondeu-lhes: 'Porque me procuravam? Não sabem que tenho que me ocupar dos assuntos do meu Pai?' Mas eles não perceberam as palavras que ele acabara de dizer."

 

Mais uma vez, São José é o todo silencioso. Não disse a Maria que a pensou repudiar. Não lhe disse a razão das idas e vindas para o Egipto ou da escolha de Nazaré como morada deles. Não censurou Jesus, embora Maria lhe atribua angústia idêntica à dela. Se os Evangelhos nos reportam algumas (embora escassas) trocas de palavras entre Jesus e sua Mãe, nenhum traço ficou de qualquer palavra entre Jesus e José. Mas é no momento em que Maria lhe fala do pai ("o teu Pai") que Jesus responde citando outro Pai, que não aquele pobre velho. Velho? Se os apócrifos falam de um José muito mais velho que Maria, os canónicos não dão qualquer indicação sobre a idade. Mas todas as imagens sempre retrataram José como um velho, num lapso demasiado gigantesco para ser inconsciente, como que explicando pela idade a abstinência dele. Depois, José desaparece numa imensa elipse. Quando morreu? Não sabemos. Ele que foi o silencioso "como a terra orvalhada" (no belo verso de Claudel, que cito em tradução de Pedro Tamen) fez-se silêncio e ocultação. Que mais bela definição se pode dar do Pai e do seu papel em dia dele, do que chamar-lhe, como Claudel lhe chamou, "Patriarca interior do dia-a-dia"? Termino com antiquíssima oração: "Jesus, José e Maria / Acompanhai-me hoje, agora e sempre / e na hora da agonia."

 

por João Bénard da Costa
18 de março de 2005, in Público

LONDON LETTERS

 

Red Tories vs Cherry Labourites, June 8, 2017

 

Et voilà! Eis o baptismo dos nóveis Red Tories. Os Conservatives liderados por RH Theresa May avançam com leque de propostas eleitorais claramente concebidas para captar o voto trabalhador, entre as quais uma a licença sabática para cuidar da família e casas sociais para alugar ou comprar. “Our plans will be the greatest expansion in workers’ rights by any Conservative government in history,” declara a Prime Minister. Já o Labour de RH Jeremy Corbyn ultima um manifesto radical contra o austeritarismo, esgrimindo com o “Robin Hood Tax” no meio de iniludível guerra civil. — Chérie. Il ne faut pas se fier aux apparences. Fontes bem informadas radicam na North Korea a origem do mais recente ataque do terrorismo informático global. O NHS é um dos alvos atingidos pelo pedido de resgate de dados. — Well. A penny saved is a penny earned. O casamento da irmã da Duchess of Cambridge disputa as atenções da semana. O President Emmanuel Macron toma posse em Paris em estilo imperial e ocupa-se com a terceira ida a votos, agora para o parlamento, com o seu La République En Marche. Washington vibra com o despedimento presidencial do diretor do FBI e pasma com a notícia de o POUS DJ Trump ter revelado informação sensível sobre o Isis a uma delegação diplomática russa. Happy Valley triunfa nos 2017 BAFTA.

 

Long days with late sunsets at London. Questiono-me quanto o eleitor médio absorverá da cornucópia dos ‘compromissos eleitorais’ diariamente formulados pelos partidos de Westminster? A bandeira de ontem em torno do fim das propinas esfuma-se com o hastear hoje de mão pesada contra a evasão fiscal ou a descriminalização das drogas e afins, tudo entremeado deste ou daquele episódio colorido no trilho da persuasão pelo reino. A abundância é tanta que sobrevém a imagem de cada qual prometendo o seu unicórnio junto a uma magic money tree. É milhões para aqui, biliões para ali, algures entrando os números em série longa de car-crash interviews quando os jornalistas perguntam aos políticos desprevenidos os sacros quanto custa? ou quem paga? Também os (anti) social media estão ao rubro, no séquito do ataque às caixas de correio eletrónico. Temo até que a hiperinformação esteja a mobilizar… os abstencionistas.

 

As sondagens persistem na vantagem folgada dos Tories, na gama dos 20%, mas o Labour Party resiste com a claque da Hard-Left militante face à moderação dos Liberal Democrats, enquanto o SNP mantém e o Ukip desliza. Soa a ouvido nu a metralha de mensagens dirigidas pelas várias máquinas partidárias aos eleitorados tribais como contraponto à estratégia centrista conservadora de colher à esquerda e à direita. Aumenta a incógnita quanto ao feixe de efeitos nos indecisos, a somar à clivagem da Brexit. Outros indícios chegam da impetuosa jornada da General Election 2017, o quarto sufrágio em pouco mais de dois anos. Um tweet vindo do terreno atrai o olhar, por si só sintomático e sobremaneira revelador pelo seu autor. Mr Dennis MacShane. O que diz este antigo Labour MP? “Canvassing in S London Labour seat and every 2nd house it was Jeremy. Never heard such hostility in 4 decades.” Prenúncio do espetro da derrota trabalhista de 1983? Se o cenário do imenso triunfo de Lady Thatcher contra RH Michael Foot tem ainda de ser sufragado, a June 8, inequívoco é que o combate pela sucessão de Jezza está em combustão. Faltam 24 dias para o exame da ballot box.

 

Mudemos de agulha. King Charles III é o título de uma peça de teatro escrita por Mr Mike Bartlett, que viajou da Broadway para West End até aterrar agora na BBC Two. Visionei finalmente a versão televisiva, dirigida por Mr Rupert Goold, o experiente diretor do Almeida Theater, em London, onde o drama do newly crowned king amealhou na bilheteira. Fiquei com mix feelings após os 90 minutos iniciados com os corais góticos de um funeral real, mas sobretudo com desejo de rever a alternativa visão imaginada por Lord Dobbs no original da House of Cards. A estória é credível, porque possível. Todavia, há algo de perturbador naquele “At last” ouvido na abertura! Não querendo quebrar o suspense de um must-see, este é um inventado UK pós Elizabeth II. O enredo roda em torno da família real, centrada nas linhas de acesso ao trono, e ainda nas ambições que o autor coloca em torrente tanto nos palácios como nas ruas, à mistura com um Red Prime Minister cedo em choque com dilemático (e assombrado) herdeiro. Advém uma crise constitucional. A cadência das palavras e o recorte das personagens são shakespearianos, há poder e há cilada, confluindo numa Lady Macbeth os des/encontros de coroa multicultural. A adaptação é tributária dos palcos e de elenco dominado pelo notável Mr Tim Pigott-Smith. A estrela de Dowton Abbey, falecido em April, tem desempenho maior no seu último papel. E é ele e os princípios do protagonista que salvam o ensaiado futuro imperfeito. — Mm. Learn by heart how Master Will distinguish Henry The Fouth in an unquiet reign: — “Uneasy lies the head that wears a crown."

 

St James, 15th May 2017

Very sincerely yours,

V.

CRÓNICA DA CULTURA

 

Caro padre Jesuíno;

 

Respondo-lhe mesmo antes de ler o livro que tão gentilmente me enviou.

 

Creio, padre Jesuíno que se sabe muito bem o que está por fazer, porque quase tudo está por fazer.

 

Observo que nos encontramos tão distantes do que entendemos por prosperidade de uma nação, por bem-estar generalizado que, durante muito tempo, não cairemos no risco de vivermos num país desenvolvido. Talvez por estas razões entre outras, a frustração dessa falta de comodidade mínima de vida, pode-se definir não como tendo na base uma acesa causa económica, mas antes por falta de uma enorme sova moral, não distribuída ou não auto atribuída ao esforço de todos e de cada um, como efeito de agulha no plano da ética pessoal e social que gerasse o início do trabalho que conduzisse à felicidade possível.

 

Só através de um caminho pessoal e institucional se conduz as pessoas individualmente consideradas a não se sentirem impotentes face ao Leviatã, tão difícil de descortinar atualmente, quando os próprios Estados e os grupos de pressão, em vivência de globalização de comunhão adquirida, aderiram a um pacto de sujeição morno quanto baste, e que impede a luta contra o conformismo e contra o marasmo, o que conduz a um sentido bem expresso da necessidade da atividade dos intelectuais.

 

Padre Jesuíno, quando nas anteriores cartas lhe referi o quanto receava a moral e a ética reféns das instituições da política contribuindo para a dificuldade do estudo da ciência da política nos dias de hoje, era exatamente a este ponto que queria chegar: o consumidor, o consumidor de tudo, dos bens materiais, do amor, da religião, da juventude, da criação, da saúde, da solidariedade e a consequente perda de mira de todos os olhares, constituem o mais conseguido Leviatã que Hobbes pensaria poder gerir.

 

Deito mão de um papel que encontrei (tenho tantas destas anotações!) por entre as páginas de um livro meu, onde uma frase escrita por alguém que me despertou interesse, sem que o livro me pertencesse, e eu, deste modo guardava memória, e que, infelizmente neste caso concreto não anotei o nome, tão só sei tratar-se de um jornalista espanhol que escreveu:

 

«no tiene condiciones para ser verdadeiramente dichoso un país en que los infelices son tan ricos de alma que prefieren cuatro horas de sol a cuatro pesetas de jornal.»

 

E afinal hoje nem se poderá ser tão livre assim?…

 

Saudades a Paris

Teresa

 

Teresa Bracinha Vieira

A VIDA DOS LIVROS

 

De 15 a 21 de maio de 2017.

 

«Fátima – Das Visões dos Pastorinhos à Visão Cristã» (Esfera dos Livros, 2017), da autoria de Carlos A. Moreira Azevedo é uma obra fundamental para a compreensão séria e serena de um fenómeno muito complexo, como Fátima, que deve ser analisado como rigor histórico e prudência, à luz de uma reflexão teológica, histórica e sociológica, que previna simplificações redutoras e especulativas.

 

 

A VISÃO CRISTÃ DE FÁTIMA
“A grande questão subjacente a toda a polémica sobre Fátima situa-se (…) na capacidade de percecionar o lugar das mediações entre a religiosidade popular e a visão cristã de Deus”. É o autor que o afirma, continuando: “Se Deus nunca ninguém o viu, o crente aceita a debilidade das mediações para alimentar a sua fé com sinais, que nunca atingem Deus, mas aproximam e ajudam a entrar em relação: gestos, ritos, memórias. Neste processo de humanização e encarnação, os videntes e profetas põem-se ao serviço das mensagens de Deus e a Igreja assume a missão de supervisão entre a religiosidade natural e popular e estes frágeis intérpretes da vontade de Deus”. Eis donde parte a obra, considerando que a fé é sempre pessoal (no sentido mais rico do termo), devendo ser compreendida muito para lá da pura racionalidade ou do cientificismo, mas em articulação com a razão – recusando a irracionalidade, que vive paredes meias com a magia. Estamos, pois, a falar de fenómenos testemunhados pela humanidade, com uma dimensão comunitária muito relevante, que devem ser considerados no contexto de uma religiosidade ou de uma espiritualidade adulta e consciente – leiam-se os testemunhos recolhidos por Leonor Xavier e veja-se o filme de João Canijo. E não esquecemos a afirmação de Paul Claudel: “Fátima é uma irrupção violenta e escandalosa do mundo sobrenatural neste agitado mundo material”. Eis por que razão temos de lidar com o fenómeno com especial atenção – até para que o mesmo seja respeitado e considerado como uma manifestação de fé. Cabe à Teologia integrar as devoções, ligando-as à globalidade da Revelação e à comunhão eclesial. E como temos aprendido, tantas vezes, tragicamente, ao longo da História, os fenómenos religiosos e a liberdade de consciência têm de ser compreendidos e respeitados, não numa lógica absolutista ou relativista, mas num são pluralismo, que pressupõe um diálogo informado e conhecedor. Nada pior do que os monólogos sobranceiros e ignorantes, que apenas favorecem a irracionalidade e a intolerância.

Uma visão cristã do fenómeno de Fátima obriga a partir de Jesus Cristo e a considerar o arreigado culto mariano a essa luz, enquanto riquíssimo fator de mediação. E o caso português tem um especial significado – falamos da Terra de Santa Maria, as dioceses estão consagradas à Mãe de Deus, numa das suas designações antigas a cidade de Faro invoca expressamente Santa Maria, os reis de Portugal entregaram a sua coroa à Padroeira na Restauração. E sem procurarmos muito, encontramos nas origens da nacionalidade a visão da Senhora da Nazaré do Almirante das Armadas D. Fuas Roupinho. E As Memórias Paroquiais de 1758 dão notícia de diversas aparições. Estamos, assim, perante um culto muito difundido – que se projeta Além-Mar na missionação e que encontra uma continuidade com as suas raízes num culto muito antigo e bem consolidado.

 

UMA CONJUNTURA COMPLEXA
O livro debruça-se sobre o fenómeno de um modo claro e rigoroso, em quatro partes: o Cenário, onde se analisa a conjuntura sociopolítica e económica de 1917; o Acontecimento, sobre o fenómeno das visões (do Anjo, marianas de maio a outubro de 1917 e o que seguiu); as Personagens, envolvendo os videntes e os supervisores; e a Mensagem – fases de apropriação, segredo e perspetiva de futuro. Publica-se ainda um importante apêndice sobre o trabalho documental. A conjuntura de 1917 é um caldo de cultura rico em acontecimentos, num período marcado pela questão religiosa portuguesa, coincidente com o anticlericalismo que acompanhou a implantação da I República. Apesar dos apelos de católicos como Abúndio da Silva no sentido de uma renovação da Igreja e de uma maior independência do poder político, a verdade é que a orientação laicista e os excessos na hostilização religiosa prevalecem (como a faculdade legal de dissolução das mesas administrativas das irmandades e confrarias e sua substituição ou a posse pelo Estado dos bens das extintas ordens religiosas), num ambiente de grande tensão social, sobretudo fora de Lisboa e dos grandes centros urbanos. A entrada de Portugal na Grande Guerra viria, porém, a dar lugar à necessidade de um apoio de teor religioso. “Afinal, a função da religião para a vivência pessoal e social ia além do racionalismo e da instituição clerical”. A defesa dos interesses marítimos e coloniais levaram à entrada no conflito, com número assinalável de baixas. Em janeiro de 1917 começam a chegar a França os primeiros contingentes do Corpo Expedicionário Português e o executivo chefiado por António José de Almeida permite a presença de 15 capelães para 50 mil homens, embora sem vencimento. Este serviço revelar-se-á da maior importância, com forte apoio da sociedade.

 

UM ANO PLENO DE ACONTECIMENTOS
O ano de 1917 foi denso de factos: os bispos portugueses assinam uma Instrução Pastoral Coletiva na qual se diz que os católicos não devem eximir-se de funções ou cargos públicos, o que levará à constituição do Centro Católico (onde se destacará António Lino Neto); em dezembro ocorre o golpe militar de Sidónio Pais, que institui a chamada “República Nova”, abruptamente interrompida um ano depois em virtude do assassinato do Presidente. O certo é que se inicia um período de atenuação da crise religiosa, que corresponde (conforme Luís Salgado de Matos em A Separação do Estado e da Igreja, D. Quixote, 2010) à concordata informal de Sidónio Pais, à orientação pacificadora de Bento XV, à abertura do Presidente António José de Almeida, tendo entretanto ocorrido a beatificação de Nuno Álvares Pereira em 1918 E bem longe, em outubro de 1917, as convulsões sociais na Rússia culminariam na queda do czarismo e depois na revolução bolchevique. Tudo isto está em pano de fundo em Fátima. O centro do fenómeno encontra-se na mensagem – ligada ao amor, à oração, à conversão e à paz. Estamos, como salienta o autor, perante visões, encaradas como “diálogos interiores, com a ajuda do Espírito Santo”, resultantes de um “mecanismo natural de projeção, de compensação, de diálogo transposto para um encontro”. As “visões são olhares humanos, a partir do olhar de Deus sobre a nossa realidade, para provocar e mover a Humanidade a corresponder ao maior bem criador de esperança no futuro”. Esse o ponto fundamental de que parte o autor, projetando essa hermenêutica na evolução histórica que reforçará a mensagem: desde a primeira Guerra Mundial e da epidemia da pneumónica até ao atentado ao Papa João Paulo II em 13 de maio de 1981… E é a tensão complexa entre a religiosidade popular e a visão cristã da relação entre Deus e os homens que, no fundo, aqui está bem presente.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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