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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 


VI - O QUADRADO NEGRO DE MALEVITCH

 

1. A linguagem artística é uma expressão metafórica. Nela é inviável isolar uma unidade, embora tenha havido tentativas. Há nela qualquer coisa que resiste nuclearmente, apesar de metafórica.

 

Também a obra de Malevitch, autor do suprematismo, sugere uma linguagem, numa busca permanente de uma linguagem abstrata, que nada devesse à luz natural do sol e afastando a representação de uma representação mimética.

 

Os quadros suprematistas são uma forma de pura abstração, um modelo não-descritivo de pintura, removendo todos os indícios visuais do mundo conhecido, palpável, material, visível, em benefício da suprema experiência não-objetiva e da pura sensação, passando as pessoas a racionalizá-los e esperando que a mente inconsciente do observador fizesse luz e magia, tentando descobrir-lhes um sentido.

 

O suprematismo era tão audacioso, que queria ir mais além e ultrapassar toda a arte abstrata conhecida. As telas abstratas de Kandinsky, por exemplo, estavam esgotadas e eram insuficientes, mesmo se impercetíveis e impressionassem pela beleza cromática e eruptiva que irrompia emotiva e espiritualmente à superfície da tela

 

Malevitch começa a partir do zero até ao abismo das formas. Afirma, a propósito da sua chegada à abstração geométrica: “Transformei-me no zero das formas e afastei-me das velharias da arte académica”.

 

O Quadrado Negro sobre Fundo Branco (1913) tornou-se um dos grandes momentos sísmicos da arte, tido como o exemplo mais radical do espírito iconoclasta das primeiras vanguardas históricas da pintura no século XX.

 

O seu autor pensou que as duas cores, personificando a Terra no Universo, falavam da vida e da morte, da luz e das trevas, flutuando o quadrado preto no espaço, não sujeito à força da gravidade, sinal de um cosmos ordenado ou de um buraco negro para o interior do qual foi sugada toda a matéria.

 

O fundo branco funde-se na parede branca onde pendurado o quadro, sem moldura, sem fronteiras e limites, dando-lhe maior sensação de infinidade.

 

À semelhança das telas suprematistas, apela a que seja visto de cima, do espaço, numa perspetiva aérea, sem peso e sem orientação, em que o espaço branco é uma espécie de moldura onde estão os objetos, sendo também um abismo e infinito branco.

 

O quadrado negro representa um nada que representa o mundo inteiro.

 

Malevitch não sabia nem compreendia o que era o quadrado negro, embora soubesse que não era pintura (porque abolia a pintura até então conhecida) e que também o era (inovadora e extremista). É daqui que nasce a linguagem suprematista, o primeiro movimento radical de abstração geométrica.

 

É necessário, assim, que o quadrado negro seja um elemento plástico, desaparecendo o seu peso e perdendo a sua profundidade, passando a ser visto de cima como um quadrado plano, que se pode multiplicar.

 

Mundo do nada libertado ou sem objeto, é o que Malevitch encontra no quadrado preto. Ao vir à superfície, o quadrado negro reverte-se.

 

Mas é do branco que nascem as formas.

 

O quadrado negro é uma sensação, uma força que nasce do processo de reversão, do processo de libertar o nada. É da força do nada, do nada libertado, que vão nascer coisas, novas formas. Libertar o nada significa que o branco é a plenitude absoluta, sem objeto, como o deserto é um corpo sem órgãos, o branco do abismo, do infinito.

 

2. Tudo parece simples, uma brincadeira, um abuso, um disparate, uma falta de respeito para com as pessoas, dado que todos nós conseguimos fazer um quadrado preto numa tela branca. Todos conseguimos pintar um quadrado negro num fundo branco! Qual a criatividade? Isto é arte? Que desperdício, dir-se-á. Se assim é, qual a razão para a obra de Malevitch ser impactante e duradoura, até aos nossos dias? Pela sua originalidade de pensamento, por certo, a que acresce a sua autenticidade, criatividade, imaginação e raridade inerente à linguagem artística, em que o criador tem de entrar na imanência, na intensificação imanente. Por exemplo, o quadrado inicial, como centro e núcleo central, pode intensificar-se alargando-o, estirando-o, plastificando-o, heteronomizando-o noutros. Ao que não é alheia a textura das tintas, a contextura ou união íntima das partes do todo, na sua composição e equilíbrio. No processo criativo saber ser sensível à depuração, unidade e equilíbrio do conjunto e das partes, composição, combinação e tessitura das tintas, tela e brilho, contraste e pureza das cores é imprescindível, numa imaginação criativa que acrescenta sempre algo em termos de informação, visualização e de diferenciação de uma nova ordem pictórica (ou outra), que pode transformar as referências culturais até então conhecidas.

 

A arte abstrata de Malevitch é tida como elegante, inteligente, moderna, diferenciada e sofisticada pelo seu despojamento, minimalismo e simplismo, retirando o que há a mais, reduzindo a paleta de cores, simplificando e priorizando a forma e concentrando-se na sua pureza. Daí imensos designers, até hoje, terem sido por ele influenciados, incluindo estilistas, sem esquecer tantos logotipos de empresas e instituições onde a marca da arte abstrata do suprematismo é visível. Como o é em consequências quotidianas de permanente experimentação materializadas numa imagética decorativa nas nossas casas, no nosso vestuário e design associado a novas tecnologias.

 

Goste-se, ou não, a pesquisa de uma linguagem pictórica autónoma feita por Malevitch foi decisiva para a pintura minimalista dos anos sessenta e setenta do século XX e o minimalismo em geral.  

 

Com a sua austeridade, frugalidade e desnudamento, em oposição ao barroco, faz lembrar o despojamento linguístico atual, com reflexos na retórica e escrita, desde logo em termos de custos e de tempo, o que é defendido por muitos, corroborado pela dinâmica velocista da tecnologia.

 

De exigência e num confronto muito acima da média com o observador, numa aposta intelectual em que o artista fixa todas as regras com irreverência e sem subserviência, a arte de Malevitch, sem concessões, haveria de conduzir ao ponto zero do Quadrado Branco sobre o fundo branco (1918).

 

02.05.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

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Ontem escutei e vi num canal de televisão a explicação dos tornados, a razão de seu nascimento, da sua aparência e frequência e morte. A dada altura, confesso, julguei começar a ver no núcleo enlouquecido de um deles, todos nós a debatermo-nos num torvo para respirar e mergulhar de novo naquela força tão desigual à nossa. E pensei-nos a tirar proveito daquela natureza brutal, ganhando tempo para nos familiarizarmos com os elementos e respondermos. Pensei na raiz humana da crise.

 

Não sei quem hoje se aproxima mais do entendimento das mudanças no mundo. Não sei até que ponto se vive um desafio intelectual face às novas realidades ou se lhe sobrepõe um estado de angústia no procurar ver as coisas com bom senso, o que torna tudo bastante arriscado, e exige coragem, quando a exigência é a de um começar. O exorcismo do medo e da desconfiança que existe não carece apenas do encontro dos grupos que, quantas vezes apenas cultivam as suas distâncias. Atuar isoladamente ainda que de aparência grupal é muitas vezes o mesmo que atuar desconfiadamente, e deste facto surge o não avanço contra aquilo que é a raiz mais profunda da loucura do tornado quando deixa de ser fenómeno local e apanha o mundo numa mutação global. Então tudo é suscetível de ser confundido: recebe-se a liberdade e foge-se como prisioneiro.

 

A ameaça entrou no nosso raciocínio como um acontecimento em relação ao qual o poder político ficou de fora, há muito, e sem capacidade de nos tranquilizar.

 

E pergunto-me se toda esta convulsividade não favorece o ato criativo do pensar? ou serão os acontecimentos, mais acontecimentos do que modificações? Tenho para mim que se viveu uma aglutinação, um adormecimento que impediram muitas clarificações, e que de um referver de receios mais claros, se poderia colher aproximações às realidades que pressentíamos poderem surgir de há muito. E quase todos, mais ou menos, modestamente estamos por dentro de similares processos. E quase poucos foram os que sentiram que as interrogações não eram mais do que certezas que já tinham.

 

Diria que a força e a capacidade de pensar e de se exprimir e de refletir vivem numa coragem específica de quem aguardou a decantação no tempo para adquirir uma repulsa à carência do que não seja vida. Então o núcleo louco do tornado, em nós, deixa de ser uma procura de sair dele, mas uma experiência ativa de que a nossa interrogação é um silêncio de quase insuperável dificuldade, como referiu Paul Thibaud, ou o «sem fundo» de Castoriadis ou ainda a circunstância que enfim nos despertou para a importância da ação estética no quotidiano do homem comum. Afinal, cabe aqui dizer que a democracia será sempre um futuro ou não relevasse da incerteza, e julgo que nela nos interessa mais a sua dinâmica do que o seu longínquo ideal de sociedade quase perfeita.

 

A homogeneização é a negação da diferença dos valores dos tornados das sociedades. A título de exemplo a sociedade francesa de hoje conhece uma crise tremenda que sobretudo resulta de uma desagregação entre a sociedade e as instituições, se pensarmos nomeadamente que a grandeza da sociedade democrática reside na sua divisão intrínseca, tanto quanto uma sociedade justa é uma sociedade em que a justiça é de facto uma realidade sempre em aberto ao permitir que a dissimulação se torne visível e o seu combate um garante do Estado que aguardamos, afinal.

 

Como não recordar Marcel Gauchet

A tomada autêntica do poder pela sua verdade pode prevenir os totalitarismos. Atente-se.

 

E acrescento como um dia li: «se não descuidarmos que os partidos políticos agem hoje como se fossem um para além da sociedade.»

 

E ontem escutei e vi num canal de televisão a explicação dos tornados, e nada me pareceu apatia, obediência, conformismo naquele estreito funil e ainda assim.

 

Nós.

 

Teresa Bracinha Vieira

Maio 2017

AS CERTEZAS DO JAPÃO NO FEMININO

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A história da literatura japonesa também se encontra dividida em vários períodos. O período Heian nome da capital da época, Heian-Kyo, atual Kyoto foi marcado especialmente pela poesia. No Japão – final do séc. VIII até ao final do séc. XII - a forma poética tanka brilhou pelas mãos de duas mulheres: Izumi Shibiku e Ono No Komachi, ambas pesos raros na fixação do japonês como língua poética.

 

Apesar de a escrita chinesa (kanbun) continuar a ser a língua oficial do período Heian, esta poesia originou o desenvolver da literatura japonesa.

 

O tanka (de 31 sílabas) que dá lugar ao haiku (de 17 sílabas e inicialmente masculino) constituem uma arte do olhar e do interpretar, e o haikai, igualmente forma poética,  busca pela subtileza uma unidade compacta entre impressão e realidade que na sua concisão tudo devem dizer.


Recordo que num livro quis prestar homenagem a esta conciliação e por entre outros Hai-Kai o arriscado


Quando tardas

Adio o essencial.

 

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Há quem afirme que esta escrita representada pelos tankas é inscrita por signos, tal a lenda na história de tão fortificada e contida arte.

 

De salientar que a consciência religiosa e erótica de Komachi e Shibiku permite-nos avaliar, o quanto estes tempos foram igualmente marcantes na liberdade e cultura das mulheres, sendo aceites sem reparos os seus múltiplos casos amorosos, bem como a sua independência monetária podendo usufruir de rendimentos próprios.

 

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A sensualidade proverbial desta poesia relata-nos conversas, atos ou omissões auspiciosas no papel da interpretação da vida e da própria política, avaliada pelo sentir gracioso destas mulheres de pincel da escrita, que assim registaram as emoções humanas face ao mundo.


Izumi Shikibu uma das mais importantes figuras da Literatura japonesa era uma rebelde social determinada a viver a vida sem receios, e, num misto de eros e de meditação budista escreveu:


Costumava dizer dos homens: «como é poético»,

Mas agora sei

Que o erguer da madrugada é apenas cansativo.

 

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E Ono No Komachi mulher astuta na intuição da impermanência do ser, escreve


Quando o meu desejo se torna intenso de mais,

Visto a roupa de dormir virada pelo avesso.


Aqui a poetisa segue o velho costume japonês de virar a roupa ao contrário para que os desejos se cumpram.


E também eu vesti roupa do avesso tentando aproximar-me, e no meu livro


A outra ponta de mim tens tu. Mostra-me o futuro!


Enfim, não creio que exista uma versão portuguesa dos tankas, menos ainda uma tradução, talvez antes uma aproximação, mas de referir que em 2007 a Assírio e Alvim ajudou-nos no à deriva em relação a este género literário.

pois como dizer


Os vivos vão sendo menos (…) o luar derramado espreita


Então, talvez atentar a Jane Hirshfield que nomeia o sentir destes textos japoneses como único «leap of faith». 


Teresa Bracinha Vieira

 

Obs: Em maio de 2012 publiquei este texto no blogue do CNC. Esta semana um amigo japonês releu-o com tal sentir que em sua homenagem o republico.

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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A maneira de ver do criador, segundo Vilém Flusser. 

 

'The soul has two eyes: one looking into time, the other one looking ahead into eternity.', Angelus Silesius

 

No livro 'The Shape of Things. A Philosophy of Design', Vilém Flusser escreve que o designer (aqui entendido como criador, autor ou inventor) é o único que possui a capacidade de olhar e criar através do tempo, para a eternidade. 

 

Segundo Platão, o homem avançava para as formas eternas e imutáveis (Ideias) através de fenómenos fugazes - verdade e descoberta formavam a mesma palavra (aletheia). Nos dias de hoje, Flusser acredita que os fenómenos não são descobertos mas inventados, de maneira ao homem ter controlo sobre eles. Porém, afirma-se sobretudo que toda e qualquer forma, descoberta ou inventada, divina ou humana, é sempre eterna - liberta de toda a noção de espaço e de tempo.

 

'The designer's way of seeing - both the human and the heavenly designer's - doubtless corresponds to that of the soul's second eye.', V. Flusser

 

Flusser declara, assim que todas as formas eternas e todas as Ideias imutáveis podem tomar a forma de equações - que podem ser traduzidas de um código numérico para um código de computador. Ora, o computador apresenta os algoritmos através de linhas, áreas e volumes, e também através de hologramas, que, sua vez criam imagens artificiais geradas numericamente. Por isso, aquilo que aparece no ecrã do computador são formas eternas e imutáveis, produzidas por fórmulas eternas e imutáveis. Paradoxalmente, estas formas imutáveis podem ser alteradas e continuar eternas - o computador permite distorcer, girar, encolher e aumentar essas formas. 

 

E esta é a maneira de ver do criador, segundo Flusser: o seu olhar (tal como o computador) permite-lhe perseguir e controlar eternidades no aqui e no agora. 

 

Ana Ruepp

A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

As Cinzas e o Maneirismo Italiano

 

1. Foi em setembro. Eu estava a mostrar Veneza à mais nova das minhas Mónicas. Os dragões de Carpaccio fechavam à hora do almoço deles, que não coincidia com a do nosso. Nem tudo são azares, já que dragões não almoçam certamente no Harry's Dolce da Giudecca (um dos lugares mais paradisíacos da terra e um dos sítios onde melhor se come na nossa amurada) e vêem-se melhor à luz de Bellinis. Aliás, foi a ver de Bellini a translucidíssima "Virgem com Santos" de San Zaccaria que levei a Mónica enquanto fazíamos horas. À saída, reparei num cartaz ao fundo do "Campo".

 

Anunciava uma exposição intitulada "Natura e Maniera tra Tiziano e Caravaggio", comissariada por Vittorio Sgarbi, a inaugurar a 5 de setembro em Mântua. O cartaz reproduzia a "Judite com a cabeça de Holofernes" de Tiziano, que está em Roma na Doria Pamphilli, e em que alguns julgam ver a "Salomé com a cabeça do Baptista". Adiante, que, mais Freud menos Freud, os temas sobrepuseram-se nesses tempos perversos e terei ocasião de voltar a uns e a outros. A 5 de setembro, já estaria de regresso à pátria, muito raramente visitada por Tizianos de passagem e jamais visitada por Caravaggios. Por razões que agora não vêm ao caso (como se o resto viesse...) não podia prolongar-me em Itália. Pensei com os meus botões que a possibilidade de ver a exposição era remota e tive pena. "Tra Tiziano e Caravaggio" situam-se alguns dos pintores de que mais gosto e o nome de Vittorio Sgarbi garantia-me uma escolha original. O homem das "trevas e da rosa" tem uma reputação duvidosa? Eu sei. Mas se, mesmo em anos muito "progressistas", sempre me atraíram criadores e críticos ditos "reacionários" ou pior do que isso (do Pound a Céline, de Vinneuil-Rebatet a Brasillach, tendências que nunca me dei ao trabalho de analisar ou psicanalisar convenientemente), com a idade essas preferências só se acentuaram. Assim, apesar de saber que a esquerda italiana diz de Sgarbi (n.1952) pior do que diz de Berlusconi, de quem até foi ministro ou coisa parecida, livros como o citado "Le Tenebre e la Rosa" ou "Notti e giorno d'intorno girando..." são meus livros de cabeceira desde há alguns anos, quando a Rita me trouxe o primeiro deles de Turim. Muito recentemente (Minha Senhora, não se zangue comigo) acrescentaram-me ao rol dos pecados dele, mais dois. Segundo me disseram, o homem, por dinheiro e por mulheres, era capaz de tudo. Capaz fui eu de responder, à minha assombrada interlocutora, que há defeitos piores. "Percorsi perversi", para citar o título do último livro dele, comprado em Mântua, onde acabei por ir (fiz por isso ou aproveitei acasos em meu favor, como em devido lugar para o mês que vem explicarei) nos últimos dias em que a exposição estava visível. Fechou a 9 de janeiro.

 

A ela volto. Não sem antes citar de Sgarbi a frase que para ele me conquistou: "A arte é, acima de tudo, uma forma de conhecimento do mundo, intuitiva e luminosa, como a inesperada aparição de uma rosa nas trevas." 

2. Como é que a rosa me apareceu nas trevas do Palazzo Te, tão perto da Sala de Psique ou da Sala dos Gigantes, onde, há alguns anos, descobri Giulio Romano, a que até então pouco ligara, ou sempre vira apenas como talentoso discípulo de Rafael, como o ventre que gerara Rubens, que em Mântua junto dele se formou? Numa "mostra" de 130 quadros bem expostos (se bem dispostos, é outra questão) na chamada "Fruttiere" do Palácio, ou, se preferirem, no antigo pomar dele, há muito transformado em galeria temporária. O percurso iniciava-se com a Judite (ou a Salomé) de Tiziano e terminava com dois Caravaggio: "A Conversão de Saulo" e "O Sacrifício de Isaac", obras da primeira fase do pintor. O último está nos Uffizi e conhecia-o bem, embora lhe prefira, de longe, a tela com o mesmo tema e mais ou menos da mesma época, de uma coleção particular americana e que vi em 2000, em Bilbau. O primeiro, anterior à célebre tela homónima da Capela Cerasi de Santa Maria del Popolo, em Roma, nunca o vi em vida minha e é mesmo um dos quadros de Caravaggio mais difíceis de ver, já que os donos (os Odescalchi, da lendária coleção homónima) são tão ciosos dele que raramente o emprestam. Ai de mim, ainda não foi desta. Saíra da exposição a 11 de outubro e não pude, pois, verificar se, como pretende Sgarbi, foi ele quem lançou o Romano na pista dos gigantes, na sala dos quais o queria expor. Também não pude confirmar se Sgarbi tem razão quando diz que, mais do que qualquer outro quadro de Caravaggio, essa é a obra que "mais fala a linguagem do maneirismo", com "a sintaxe maneirística e a gramática realista ou naturalista". A tela do "horror vacui". Neste caso, no vácuo fiquei eu, debruçado sobre a grande ausência final. O primeiro Caravaggio teria sido o último dos maneiristas, nos últimos anos do século XVI? Se Sgarbi o jura, eu não o posso jurar.

3. Mas o comissário que não comissariou essa elipse (tivesse eu madrugado mais cedo...) comissariou outra elipse mais insólita. A exposição, além do título já mencionado, junta-lhe outro: "As cinzas violetas de Giorgione". A expressão é do célebre crítico Roberto Longhi (1890-1970) que em tempos escreveu, referindo-se a um dos maiores pintores maneiristas, esse Dosso Dossi (1490-1542) que, mais do que qualquer outro, trouxe de Mântua: "A arte dele (...) é o fumo que se evola das cinzas violetas do enterro de Giorgione, misturado com as doces névoas dos vales do Pó" (Dossi nasceu e morreu em Ferrara). Sgarbi vai ainda mais longe do que Longhi e diz que "a alma de Giorgione continua a viver em Cariani como em Dosso Dossi. Ao falar das "cinzas violetas", Longhi queria dizer que tudo o que aconteceu na Padânia, a partir de 1510, foi a reelaboração, a transformação e a deformação da arte de Giorgione, imprescindível, arrebatadora, diletante, tornando-se numa segunda natureza para cada artista, ou, se se quiser, na Maneira de cada um deles".

 

Mas se, no texto do catálogo, que estou a citar, evoca de Giorgione "La Tempesta" ou os "Tre Filosofi", ou o "Tramonto", nenhum quadro do célebre pintor da Laguna figura na exposição. Esse "protagonismo ausente" não é fortuito. Cinzas não se mostram em ressurreições. Cinzas fúnebres ainda menos. É uma nova luz, "un'aria stregata", que nasceu na obra do mais genial continuador de Giorgione e, portanto, acuradamente, Tiziano abre a exposição, com a Judite ou Salomé que, vista a alguma distância, parece desviar os olhos, pudica ou enleada, da cabeça que acabou de degolar e, vista de mais perto, não disfarça um sorriso perverso, como se quisesse dar o peito, que tão levemente deixou desnudado, à boca que não repele mas comprime. Diz-se aliás (mas diz-se tanta coisa) que a figura feminina retrata Violanta, a filha de Palma o Velho, por quem Tiziano se terá perdidamente apaixonado, como se diz que Tiziano (então com 25 anos) é reconhecível nos traços do Baptista ou de Holofernes. Mas não se diz, vê-se, que a cabeça dele é colocada por baixo do arco, através do qual um céu azulíssimo é a única fonte de luz que brune o morto e aleita Violanta, uma Violanta que, como a de Rodrigues Lobo, "antes que o sol se levante / A dar graça e luz ao prado / Já Violanta lha tem dado / Que o sol tomou de Violanta". 

4. Mas, por muito que me custe, tenho que deixar Tiziano e a degoladora de beatilha.

Pois se havia dez Tiziano na "Mostra" e todos eles raríssimos (nem tempo me deixam para falar no retrato do comandante zarolho, proveniente de algures em Ferrara) já me aproximo do fim e ainda não expliquei o critério da exposição. Sabe-se, desde o livro clássico de André Chastel, como a "maneira" romana, que Clemente VII, o segundo papa Médicis, protegeu com volúpia e escândalo nos primeiros anos do seu pontificado (1523-1527), dando origem a uma nova pintura, ou a uma pintura nova, foi brutalmente interrompida pelo saque de Roma de 1527. Os protegidos de Clemente ou foram mortos, como os mais ímpios frutos da "nova Babilónia", da "Sodoma renascida", ou dispersaram-se pela Itália, sobretudo pela Emília Romana, pela Toscânia e pelo Veneto. Parmigianino em Parma, Pontormo em Florença, Dossi em Ferrara, Maretto e Savaldo em Brescia, os Campi em Cremona, entre tantos, tantos outros (nem sequer falei de Rosso, nem sequer mencionei Tintoretto), entre 1530 e 1570, seguindo a lição colhida em Roma. Se, na "imitação" da Natureza, Miguel Ângelo e Rafael são inultrapassáveis, o único caminho possível (e Vasari é a fonte) é partir "'da maneira' de Miguel Ângelo e explorar um terreno que é o dos sonhos deles, das visões deles". O limite deixa de ser a realidade ou a Natureza para passar a ser a consciência. Ou, como aventurosamente diz Sgarbi, esses pintores "entram na alma profunda do Homem. Com eles começa, pode dizer-se, a psicanálise". Muito antes de os alemães terem inventado o termo "manierismus", "principia-se a sondar uma dimensão tão secreta e tão misteriosa que já nada tem que ver com a realidade. A sensualidade entra nas almas e os corpos são apenas veículos delas".

 

Para o mostrar, Sgarbi foi buscar dos grandes pintores o mais secreto e dos pintores esquecidos o mais evidente, com centros em Lotto, em Dossi ou em Parmigianino, tanto quanto em pintores que só agora descobri, em Ortolano, Compagnolo, Bonsignori, Cariani, Orsi, Sustris ou Carlo Bononi. Quadros famosos de museus famosos? Muito poucos. Mas de igrejas recônditas, coleções particulares ou museus de cidadezinhas, vieram essas visões do abismo, que a Contra-Reforma volveu anos depois para o limbo dos prazeres proibidos.

 

E nem sequer falei de Bastianino (1532-1602), o nebuloso pintor do "Juízo Final" do Duomo de Ferrara, a quem Longhi chamou o "William Blake do miguelangelismo italiano". Dele, o "Cristo morto entre dois anjos", foi outro dos cumes desta exposição. Cito Sgarbi, para terminar, pois foi ele quem descobriu essa tela em 1992: "A maceração interior, a transformação do corpo em fumo, perdida toda a força, desvanecida qualquer energia. Do homem, só resta o invólucro, no ponto de dissolução. Nem um gesto, nem uma convulsão, apenas um sussurro. E assim, nas névoas de Ferrara, o sonho de Miguel Ângelo dissolveu-se" (...) Haveria que esperar por Goya para reencontrar um efeito tão visionário".

 

por João Bénard da Costa
28 de janeiro de 2005, Público.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 1 a 7 de maio de 2017.

 

A publicação em curso da Obra Completa de Maria Helena da Rocha Pereira pela Fundação Calouste Gulbenkian e pela Universidade de Coimbra constitui a melhor homenagem que pode ser prestada à grande mestra dos Estudos Clássicos.

 

 

UM DIÁLOGO PERMANENTE COM OS CLÁSSICOS
“Quando se menciona, pela primeira e única vez na Odisseia, a possibilidade de um homem continuar a existir numa região privilegiada, a que se dá o nome de Campos Elísios, as palavras que traduzem esse pensamento dão claro testemunho da antiguidade da crença. Ao lado desta existiam outras, de que algumas perderam o significado no volver dos anos, entrando depois na mitologia sob uma rubrica diferente, e outras pela sua semelhança, vieram a confundir-se inextricavelmente com a mais antiga versão que conhecemos”. Este o ponto de partida da Dissertação de Doutoramento de Maria Helena da Rocha Pereira – Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão (1955) -, cuidadosamente preparada em Oxford, graças à orientação e magistério dos Professores Carlos Ventura, em Coimbra, e E. R. Dodds, em Inglaterra. Ao lermos hoje esse texto (irrepreensível exemplo do excelente domínio da língua portuguesa) referencial para os estudiosos da cultura clássica, compreendemos a especial paixão da autora pelos antigos, com quem gostava de dialogar permanentemente, na base de uma evidente proximidade histórica e humana. De certo modo, somos contemporâneos dessa gesta antiga, que nos configura culturalmente – na língua, nos valores, nas mentalidades. Isso nos ensinou a Mestra de muitas gerações, presentes e futuras. E essa relação não era fantasmática, mas palpável, uma vez que os testemunhos literários dão veracidade e verosimilhança à relação com os clássicos. E a grande riqueza desses testemunhos literários permite uma convivência espiritual, que a cultora dos estudos greco-latinos sempre nos legou, pode dizer-se, com autêntico amor. No tema escolhido do Além Feliz, estamos no âmago da compreensão da vida, da sua dinâmica e dos seus limites, hoje e sempre - desde as crenças mais antigas, dos mitos das terras longínquas, dos Campos Elísios ao Jardim das Hespérides, à Bem-aventurança no Hades, até às ideias sobre a felicidade do Além nos séculos VI e V a. C., no Orfismo e no Pitagorismo, em Empédocles, na poesia lírica e dramática, nos testemunhos epigráficos – e nos grandes mitos de Platão: Górgias, Fédon, Er, Fedro e no diálogo pseudo-platónico Axíoco…

 

NA UNIVERSIDADE DE COIMBRA
O percurso da estudiosa é apaixonante, tanto mais que a jovem o seguiu pelas vias mais audaciosas. Tudo isto num tempo em que a mulher estava ainda fora da vida académica. Só uma alemã, Carolina Michaëlis, tinha tido lugar antes na docência da Lusa Atenas. Frederico Lourenço falou, por isso, justamente, de coragem, determinação e vontade de aprender. Em Coimbra, Maria Helena fora desafiada por Carlos Simões Ventura e seguira o conselho de ir até Oxford. A opção parecia impensável. A família do Porto Culto apoiou e abriu um caminho novo para as humanidades, no sentido mais rico e amplo do termo. Desse seu professor dirá: “Escrupulosamente fiel aos seus princípios (…) norteou a sua vida académica e particular por uma rigidez quase estoica, sem desvios nem afrouxamentos numa linha de conduta sempre coerente e límpida…”. E lembrava a expressão de Horácio - justum et tenacem propositi – e a paráfrase vernácula de Correia Garção: “constante varão justo e firme”. A discípula seguiu as pisadas do professor, superando-as largamente. E atenta ao exemplo do Professor E. R. Dodds (o célebre autor de Os Gregos e o Irracional) manteve uma ligação constante à evolução das condições históricas e das mentalidades nas sociedades greco-romanas. Daí um especial cuidado relativamente à dimensão humana subjacente aos textos que analisa. Homero, Hesíodo, Píndaro, Aristófanes, até culminar em Platão. “O mito do Górgias está claramente ligado à tradição homérica, embora já nele se evidenciem alguns traços novos. O do Fédon constrói um vasto cenário geográfico, onde a luz, a cor e a forma desempenham o papel mais importantes. No mito de Er depara-se-nos uma cosmogonia, na qual os efeitos visuais e auditivos ocupam um lugar não menos proeminente, embora o problema central não deixe nunca de ser o da escolha do destino. O mito de Fedro coloca definitivamente a cena no céu e retira deliberadamente todos os pormenores que possam sugerir objetos materiais”.

 

A CAMINHO DE OXFORD
Teria sido a leitura de uma tragédia grega, Oresteia, de Ésquilo, quando tinha 13 anos, que a levou a seguir Clássicas, mas quando chegara à Escola Litterae Humaniores de Oxford, ainda sob os efeitos do racionamento da Guerra, terminada cinco anos antes, apenas tinha quatro anos de Grego. As excecionais capacidades de trabalho permitiram-lhe, porém, ganhar grande competência na língua grega, envolvendo crítica textual, paleografia e epigrafia. E ainda se tornaria uma reputada especialista de vasos helénicos. O seu contacto desde cedo com a língua e a cultura alemãs foi de grande utilidade, tendo realizado para a célebre Biblioteca Teubneriana a edição crítica da obra de Pausânias em três volumes. A obra de Maria Helena da Rocha Pereira tem um valor múltiplo – é cientificamente essencial, é pedagogicamente única e é historicamente indispensável para o conhecimento das raízes culturais europeias e mediterrânicas. A edição da Fundação Gulbenkian de A República de Platão é justamente considerada uma tradução exemplar, reveladora de um conhecimento abrangente e universalista da sua autora. A publicação da obra completa pela Gulbenkian e pela Imprensa da Universidade de Coimbra em curso tem assim um valor indiscutível. A Medeia de Eurípedes e a Antígona de Sófocles, nascidas da colaboração com o Teatro Universitário de Coimbra, são, em si mesmas, obras literárias de primeira água. António Guerreiro falou da preocupação da Professora “de mostrar que (a cultura grega e latina) não era uma relíquia de museu ou objeto de uma historiografia mortuária” (Público, 11.4.2017). Daí também a importância dos ensaios sobre a influência clássica nos autores portugueses, de Camões a Torga, a Eugénio de Andrade e Sophia de Mello Breyner. A sua familiaridade com a obra de Platão leva a ter de ser considerada como uma das leitoras mais estimulantes do ponto de vista filosófico. Mas o que se revela fascinante é a capacidade integradora do pensamento na cultura grega. Desse modo, considera a inclinação dionisíaca de Nietzsche um “erro genial”, mas um erro, já que não pode subalternizar-se a força indiscutível da tendência apolínea. Como afirma no fecho da sua crucial dissertação doutoral: “a noção de que a bem-aventurança no além devia ser de natureza puramente intelectual surgiu, pela primeira vez, do cérebro de um filósofo, como era de esperar. Representa uma meta alcançada na evolução do pensamento escatológico, cuja importância não é demais encarecer. Porém, as outras conceções, que acabámos de ver, de tal modo refletem o amor pela beleza da forma e das cores, o desejo de gozo da vida física em toda a sua plenitude, que menosprezá-las seria pôr de parte uma das características mais marcantes do espírito helénico”… Não esqueço a sua amizade!    

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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