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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO


XXV - COMO LÍNGUA BIPOLAR

 

Há uma manifesta desproporção entre a posição ocupada pela língua portuguesa no Mundo e na Europa, dado ser um idioma de caraterísticas dominantes e globais a nível mundial, com um estatuto regional, secundário e de “pequena” língua no continente europeu.

 

Tomando como referência, em linguagem metafórica, as medalhas e diplomas dos melhores atletas das modalidades que integram os Jogos Olímpicos, tem direito a duas medalhas de ouro por ser a língua mais falada do atlântico e do hemisfério sul, uma de prata por ocupar o segundo lugar entre as línguas românicas, três de bronze por ser a terceira mais falada do ocidente, do continente americano e africano, dois diplomas olímpicos por ter a quinta ou sexta posição entre as mais faladas em termos globais e ser a quinta língua internauta.

 

Na Europa é a sétima língua mais falada da zona euro, com direito a um diploma olímpico, o que já não sucede pela décima e décima terceira posição que ocupa, respetivamente, na União Europeia e em todo o continente, dado que, nestas últimas situações, não está entre as oito mais faladas. Esta bipolarização, baseada numa distribuição desproporcionada, em termos demográficos, territoriais e geográficos, dos seus falantes fora e dentro da Europa, carateriza o nosso idioma, cada vez mais, em termos evolutivos, como uma língua não europeia, apesar da sua génese europeísta.

 

Daí não ser apenas nossa, mas também nossa.

 

Nem se pode ter uma língua cosmopolita, intercontinental e transoceânica, implantada e viajando por todos os continentes e oceanos, querendo ter a sua posse e ser dono dela, uma vez ser ela dona e senhora de quem a fala.

 

Portugal, embora seja o condómino mais antigo, não usufrui de mais mordomias que os demais condóminos, muito menos em termos demográficos, sendo o Brasil, por agora, o grande motor, o mais eficaz e melhor vendedor da língua portuguesa no mundo. Para defesa e como prioridade estratégica do português, o critério mais aceitável é o do número global de falantes das línguas no mundo, a começar por Portugal e extensível aos restantes países lusófonos que o têm como língua oficial e ou materna, sem esquecer os lusófilos.

 

E embora Portugal, em termos mundiais, seja um país médio, tem no mundo grandes responsabilidades históricas e atuais, por causa da nossa cultura, onde impera o nosso idioma como língua de várias culturas.1

 

27.06.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

 

1. Como complemento desta temática, podem ler-se, neste blogue do CNC, da nossa autoria, os seguintes textos: A Língua Portuguesa no Mundo X - A língua Portuguesa na União Europeia, XI - O Dilema Bipolar da Língua Portuguesa, publicados, respetivamente, em 28.07.16 e 11.08.16.

CRÓNICA DA CULTURA

E escreveste-me:


Agora as mãos tremem-me em qualquer momento do dia ou da noite. E sabes a razão Isadora? É que as palavras que conhecem a verdade pendem-me da boca e preciso de uma cadeirinha para as descansar e de um pouco de sol que saiba a sol no coração. Ajuda-me. Tenho as dores da alma tatuadas no meu corpo inteiro. Naquele corpo despido que ele tanto amou e banhou em cascatas solares e que agora só lhe convoca a desatenção.

 

Estou só, no entanto, essa circunstância não me dói. Acima de tudo o que me é feroz é a completamente desentendida em mim, realidade; é a capacidade dele para ter a certeza absoluta que me magoa. Essa obstinação errática que alguém fez entrar nele e ele aceitou, e o faz mentiroso como um rato; ingrato como um animal a quem dei mel e me devolve, à minha fome, grãos de pedra.

 

Sabes amiga, é estranho, mas não me sinto destronada sequer como muito se lê nos livros. Bailo num punhal e estou consciente disso, enquanto vejo num espelhinho de jade, os meus seios rosa a friccionarem-se num vestido sem espinhos e nada mais. Soltos.

 

Isa, se o meu sofrer e nele se as minhas palavras te ensinarem nesta carta o quanto deves - se por inferno similar situação viveres – semear-te entre os fuzilados e ganhar tempo para arder e chegar a ti a decisão de não morrer em lábios alguns, antes recordares não incauta o que quererás esquecer, depois lavares no tempo certo a sábia ferida, então toma, toma que por minhas mãos te dou o meu colar de lágrimas inteiro, tratado interpretativo dos dias da agonia, razão da minha maior tristeza ainda hoje, se a penso, e abre a porta e que ele saia de ti. Que vá.

 

Aprenderás que os dias ficam exaustos de não terminarem de se contarem a si mesmos quando o jogo mudou de camisa como uma cobra e tu, ainda limpa, lá no centro. Verás Isadora, que de novo um semearás e um cento colherás, enquanto te aguardas do outro lado da vida. Refiro-me ao lado indizível, também aquele que nunca se escreve ou descreve, aquele que passará enfim, a ser a tua gruta, lugar onde e aonde soletras as letras de teu destino e que tem uma agua vinda da fonte da humidade que também é só tua, tal como o teu olhar tão diferente, agora que acima de tudo te tens a ti completamente.

 

O resto é gente que não cintila e se acaso pirilampo algum dia, foi a tua sombra generosa e que o saibas. Lança-te amiga e não consintas. Guarda que nesta carta dei a volta ao movimento e a minha pulsação é!

 

Irei amá-lo de olhos de mágoa acumulada? Irei amá-lo num angulo de porta proibida? Não sei. O vento levantou-se e perguntou por nós.

 

Sabes? Existem caules invisíveis de uma única brancura que só o bosque da tua alma entende.

 

Como compreender que certas pessoas que, por essência, nos são alheias, venham prender-se à nossa vida? De imediato entendemos quem são, contudo escapa-nos o paradoxo do devir, o próprio duvidar. Quem és? E a mim como chegaste? O que sabes da morte das árvores? Por acaso tens nome ou és amor?

 

Eu? Arquitetura.

 

Dulce 

Teresa Bracinha Vieira

Junho 2017

E cito:

 

Tal é a tristeza inseparável de toda a vida finita, uma tristeza, porém, que nunca se torna realidade e serve tão-só para dar a alegria eterna de a superar. Dela vem o céu de pesar que se estende sobre toda a natureza, a melancolia profunda e indestrutível de toda a vida.

 

Apenas na personalidade há vida; e toda a personalidade assenta num fundamento sombrio, que, não obstante, tem também de servir de fundamento ao conhecimento.

 

Schelling,
Da essência da liberdade humana

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

   

William Scott e os objetos simples.

 

'It is in the act of making that the subject takes form, it is in the adding, stretching, taking away and searching for the right and exact statement that a tension is set up. I want to paint what I see but never immediately; there must be a time lapse, 'a waiting time' for the visual experience to become involved with all other experience.', William Scott

 

Em 1946, William Scott (1913-1989) pintou 'Mackerel with plate and paper'. Sarah Whitfield, no livro da série British Artists 'William Scott', escreve que num registo, que muito deve a Picasso e a Braque, Scott conseguiu, nesta pintura, construir uma natureza morta através de camadas pretas, brancas e azuis completamente planas e rigorosamente recortadas. Escondida debaixo do prato branco, a frigideira preta anuncia já a vontade em utilizar os objetos mais simples como veículos para chegar a uma linguagem cada vez mais simplificada.

 

'Black was a colour I was fond of and I possessed at that moment a very black pan. That's why I paint objects completely without interest. They convey nothing. There is no meaning to them at all but they are a means to making a picture.', W. Scott

 

Na pintura 'Table Still Life', de 1951, Scott revela ter concretizado a mais completa e sensual ligação entre forma e espaço (Whitfield escreve ainda: 'The painting looks austere, but when seen close up, the layering of pure whites and dirty whites reveals that sensuousness of touch.'). O artista sempre desejou que as naturezas mortas tivessem as características humanas de uma pintura figurativa. A planicidade de uma pintura é também muito importante para Scott, porque traz as referências da arte primitiva, da arte Bizantina, de Giotto e de Cézanne. 

 

Tal como, na pintura 'The Harbour', Scott utiliza uma paleta monocromática - ao limitar o uso da cor aos pretos e cinzentos o artista anseia por uma noção espacial mais profunda. Scott não queria que as suas pinturas fossem uma simples coleção de objetos relacionados espacialmente, mas que antes fossem um único objeto com uma presença de totalidade. Estas composições mais estilizadas são possíveis porque Scott permite uma cada vez maior libertação em relação ao objeto e trabalha sobretudo com a imaginação. 

 

A partir de meados dos anos cinquenta, Scott afirmava viver rodeado pelos objetos que pintava, porém esses objetos funcionavam somente como presenças esculpidas que o observavam.

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

The start of The Brexit Show, 2017-19

 

Finally the set off! Um ano após o voto referendário, abrem os tratos oficiais da saída do United Kingdom da European Union. Do primeiro dia dos negociadores resullta plano e calendário.

Ainda que envolto em good rethoric de Mr David Davis e de Monsieur Michel Barnier, o sinal de partida revela concessões britânicas na agenda de trabalhos. Segue-se proposta londrina de reciprocidade na situação dos cidadãos deslocados aquém e além Channel, com a Prime Minister cá a declarar enfaticamente aos émigrés que “we want you to stay.” Brussels quer mais e reclama garantismos. — Chérie. Il faut réfléchir avant d'agir. No estio doméstico assombra série de tragédias, entre o fogo num arranha céus de Kensington, um atentado terrorista numa mesquita de Finsbury Park e um ataque digital às Houses of Parliament. Com a open season for Theresa May ao rubro, o aparato da Royal Ascot Horse Racing rivaliza com o Queen’s Speech enquanto o Tory Government conclui dispendioso acordo de base tribunícia com o DUP. — Well. Slow and steady wins the race. O Prince William of Cambridge perfaz 35 anos em ano de singular varanda cerimonial aquando do Trooping the Colour. Já Washington assiste à vitória presidencial no Supreme Court da Trump travel ban. Em Paris, o Élysée projeta um ministro das finanças para a Eurozone. Herr Helmut Kohl parte aos 87 anos, legando a unificação de Germany em Europe e a hegemonia do Christian Democratic Union Party em Berlin.

 

 

Hazardous Indian Summer at Central London. O novíssimo hung parliament toma assento entre o juramento dos MP’s e a eleição de Speakers, Chairs e afins. A envolvente política está para além do estado volátil. Os Liberal Democrats avançam para uma nova liderança depois de RH Tim Farron se demitir do leme enquanto os Independent Scots buscam um capitão para Westminster, os Ukkipers andam perdidos em combate e os Tories fecham um acordo de £1b em infraestruturas para Northern Ireland como contrapartida do apoio dos dez MP’s do Democratic Unionist Party. Uma bagatela, pois! Há quem desgoste; e quem organize o descontentamento. Se a comunicação social noticia surdos ultimatos à Prime Minister no seio da bancada conservadora e o spin contra Downing Street assume formas de open plot nas páginas do insuspeito The Times, o Labour solta ações de rua para apear a maioria relativa do May II Government. O Red Shadow Chancellor RH John MacDonnell pilota uma incendiária “one million march” ― “to force new elections.” Já o revigorado Lab Leader RH Jeremy Corbyn declara que entrará no Number 10 dentro de 6 meses, no fim de semana protagonizando uma missa de massas no Glastonbury Festival. O evento reúne idosos hippies e jovens revolucionários. Ora, dir-se-ia que JC desce dos céus para ressuscitar como pop star no Pyramid Stage de Somerset e o delírio na festa da contra cultura. Jezza anima o teen spirit com amanhãs que cantam. A performance tem até conveniente direto televisivo sob o script “Ye are many―they are few!” Dos bastidores das 100,000 Corby T-shirts cedo sai o revisionismo em curso ao manifesto eleitoral trabalhista, consensualizado com a oposição interna dos Blairites, sob testemunho do Comrade Jeremy ter como prioridade “to ‘get rid’ of Trident.” Ou seja, o unilateral desarmamento nuclear do UK e o almejado desmantelamento da NATO.

 

RH Theresa May enfrenta crises sérias semeadas pela perda da maioria na 2017 General Election. Com o Brexiting em tela de fundo, facto que explica o frenesim adversarial dos eurofilos de todas as cores, a PM enfrenta esta semana o teste ao seu programa legislativo na House of Commons. Aqui avulta a Great Repeal Bill, a qual remove o ECA 1972 do Statute Book e reinstitui a plena soberania da Law of The Land, por estas ilhas em uso, desde 1215, na esteira da Magna Carta. Este regresso à constituição histórica é tomado como antídoto para diagnosticado declínio político  e confirmado no Queen’s Speech durante peculiar cerimónia nos Lords, desta vez sem pompa e circunstância, com a monarca vestida em day blue dress e acompanhada não pelo Prince Philip mas por Charles of Wales trajado sem a full regalia. Ainda assim, e com o consorte logo de volta ao palácio após curta estada hospitalar, cumpre registo das memoráveis palavras de Elizabeth II: “My Lords and Members of the House of Commons, my Government’s priority is to secure the best possible deal as the country leaves the European Union. My Ministers are committed to working with Parliament, the devolved Administrations, business and others to build the widest possible consensus on the country’s future outside the European Union. / A Bill will be introduced to repeal the European Communities Act and provide certainty for individuals and businesses. This will be complemented by legislation to ensure that the United Kingdom makes a success of Brexit, establishing new national policies on immigration, international sanctions, nuclear safeguards, agriculture and fisheries. / My Government will seek to maintain a deep and special partnership with European allies and to forge new trading relationships across the globe." Fora de Westminster, o Met assenta o recorde de 30C no “longest June hot spell for more than 20 years.”

 

Parcela incontornável das celebrações do 91º aniversário oficial de Her Majesty, devidamente assinalado com as Royal Gun salutes a par do State Opening of Parliament e da visita real de conforto às vítimas do incêndio da Grenfell Tower, sai à luz do dia discreta lista de honrarias destinada a homenagear os talentos do reino. O rol é deveras plural e apontado pelo Cabinet Office como “the most diverse yet.” Contém diferentes gerações, muitas mais mulheres e elementos das populosas minorias étnicas. Dois nomes atraem a atenção entre os 1,109 novos membros das ordens honoríficas recriadas em 1917 pelo King George V. Deslumbra Dame Olivia De Havilland, em vésperas dos seus veneráveis 101 anos e nenhuma outra senão a oscarizada Melanie de Tara em Gone With the Wind (1939). Brilha também Mrs J K Rowling, a autora de 51 anos feita Companion of Honour por magia desse young wizard sonhado no Porto e por si batizado como Harry Potter (1997). — Hmm. Even Master Will concedes in As You Like It the essential role of reverie among the human affairs: — “It is to be all made of fantasy, All made of passion and all made of wishes, All adoration, duty, and observance, All humbleness, all patience and impatience, All purity, all trial, all observance. And so am I for…"

 

St James, 26th June 2017

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 26 de junho a 2 de julho de 2017.

 

Miguel Real acaba de dar à estampa Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (Planeta, 2017), que constitui um belíssimo repositório de reflexões, na linha de um percurso sério e persistente, de análise e estudo, que o autor vem seguindo.

 

 

PORTUGAL EM TRAÇOS FUNDAMENTAIS
Na linha de obras anteriores, temos agora uma síntese, onde se apresentam os “traços fundamentais” de uma cultura plena de diferenças e contradições, que alguns procuram simplificar, mas insuscetíveis de redução, que, a existir, tornar-se-ia caricatura. Uma cultura de “melting pot”, como a nossa, não pode deixar de se afirmar numa tensão entre o que se mantém e o que muda, entre os que ficam, os que partem e os que chegam. De facto, como Eduardo Lourenço ou José Mattoso têm ensinado, na linha de Garrett e Herculano, da geração de 1870 e das correntes críticas do século XX, para Miguel Real: “não existe uma essência identitária de Portugal, uma noção metafísica sintetizadora da existência de Portugal e identificadora da sua história…” – e “um dos maiores equívocos dos teóricos da cultura portuguesa tem sido a insistência, ao longo dos tempos, mas fortemente desde o final da monarquia, em 1910, na busca de um conceito absoluto, transcendente, exclusivo, excecional e extraordinário, definidor da identidade nacional ou do homem português”. Este é o ponto de partida, não só para compreendermos a diversidade e a complexidade de quem somos, mas também para nos mantermos abertos às diferenças – sobretudo considerando que a nossa cultura está na génese de outras culturas, geradas a partir de uma língua falada em todos os continentes, que se enriquece através da coexistência de várias outras línguas (como os crioulos), correspondentes às zonas geográficas onde o português é língua oficial… Deste modo, o futuro não pode deixar de ser encarado como um campo aberto à diversidade e de multiplidade cultural, onde coexistem vários e naturais polimorfismos… De facto, não podemos esquecer as sequelas de ressentimento (para que nos alerta o autor, na senda de Eduardo Lourenço) nos Estados e povos colonizados, “que ora legitimamente desconfiam do afã lusófono”. Por isso, a “Lusofonia não pode repetir a história, renovando os vícios dos diferentes desencontros históricos havidos em séculos passados”. Daí a necessidade de uma “paisagem política nova” – que considere o alerta do célebre título do ensaio de Maria Manuel Baptista: «a lusofonia não é um jardim ou a necessidade de “perder o medo à realidade e aos mosquitos”»… No fundo, a saudade e a morabeza, bem como as diversas idiossincrasias resultantes dos diálogos interculturais, fazem parte integrante de um modo de ser complexo e heterogéneo do mundo da língua portuguesa…

 

QUEM SOMOS, AFINAL…
Longe de uma explicação de destino transcendente, não somos nem melhores nem piores que outros – nem um segundo povo eleito de Deus, da herança judaica, nem depositários exclusivos da saudade (de Pascoaes), nem vocacionados para o Quinto Império sebastianista ou para a Terceira Idade de Joaquim de Flora… Portugal é um cadinho de múltiplas influências. Está aí a sua “maravilhosa imperfeição”. E quando encontramos em Fernando Pessoa as contradições insanáveis, que a heteronímia alberga, verificamos a importância da coexistência das diferenças que enriquecem a nossa cultura e das culturas que a animam. “A cultura é uma espécie de biblioteca, de ideal, em que nós pensamos separar aquilo que ainda perdura na memória, ainda atuante, daquilo que está morto”. Eis o ponto em que nos encontramos e que permite compreendermos que António Sérgio e Jaime Cortesão correspondem a faces de uma mesma exigência de compreensão da realidade que nos cerca. Sérgio alerta-nos para as condições materiais e para o conflito entre a fixação e o transporte, que marca o patriotismo prospetivo – contra o fatalismo do atraso. Cortesão não nos deixa esquecer, ao lado da razão, o anseio espiritual e emotivo. E sabemos bem, lendo os textos fundamentais de ambos e confrontando-os entre si e com a moderna historiografia, como Portugal e os Portugueses, apesar de todas as vicissitudes, continuam na luta, combatendo a mediocridade e a irrelevância. País suspenso no tempo? As elites alimentam uma cultura dúplice, ora escolástica e contra-reformista; ora europeia, reformista e aberta à modernidade; enquanto a cultura popular persiste vernacular, nativa e rústica. E a psicanálise mítica do destino português invoca a ciclotimia do sucesso e do fracasso, a força do centralismo da Arcada e de S. Bento e as resistências à autonomia e a descobrir e inovar. Afinal, perante as dificuldades encontramos energias desconhecidas, que se relacionam com a sobrevivência. Mas a que se deve o atraso estrutural? O debate sobre os estrangeirados e sobre a fragilidade das elites não perdeu atualidade. A natureza complexa da nossa realidade cultural leva-nos a que os elementos vários que a constituem favoreçam a formação de uma vontade comum, apesar dos egoísmos. E o pessimismo nacional? Será que o velho do Restelo de Camões ou Sá de Miranda na carta a D. João III são demonstrações insanáveis de uma incapacidade congénita para nos superarmos? E estaremos condenados a ser um “povo póstumo”? Se virmos bem, os melhores momentos da nossa existência coletiva (1415-1539) e a durabilidade do projeto Portugal deveram-se não ao improviso, mas à determinação e à definição de metas de largo prazo… Leia-se a «Crónica dos Feitos da Guiné» e perceba-se que não há aí espontaneísmo ou loucura… Há capacidade de planear e de mobilizar vontades.

 

O PORTUGAL FUTURO…
A anteceder o prefácio de José Eduardo Franco, está transcrito o poema de Ruy Belo “O Portugal Futuro”. “O Portugal futuro é um país / aonde o puro pássaro é possível…”. O poeta diz que, chamem o que chamarem, “Portugal será e lá serei feliz / Poderá ser pequeno como este / ter a oeste o mar e a Espanha a leste / tudo nele será novo desde os ramos à raiz”. Em lugar do pessimismo sem horizonte, é possível a determinação e a continuidade. Para tanto, há que cultivar o espírito crítico e conhecer a história. Os mitos tornam-se construtivos, quando compreendidos reflexivamente. Os judeus, a Inquisição, os jesuítas, Camões, o sebastianismo, Vieira, Pombal, a ideia de nação superior e inferior, o pessimismo nacional, a decadência, o país suspenso no tempo como lugar cultural e mental encantado, o canibalismo cultural, os grupos fratricidas e parricidas – são fatores que nos obrigam a perceber a identidade nacional limitada nas condicionantes de nove séculos de história. «Por via da Europa – honra lhe seja feita -, e não por gradual esforço nosso, não são apenas dois ou três pensadores portugueses a exigirem o império da tolerância, mas as próprias instituições sociais, e antes de mais o Estado e a Igreja Católica…». E assim, preparamo-nos para enfrentar o século XXI, libertando Portugal de um passado económico, político e cultural que há meio milénio «sempre nos atrofiou as virtualidades».

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Tão de ouro era a luz desta manhã, que me quedei na varanda quieta do meu quarto, aberta sobre os campos próximos e alegrada pelo voo de melros, pardais, verdilhões, toutinegras e poupas... São estas as mais raras, gosto de as ver pousar, para lhes admirar a poupinha e as penas zebradas. Senti muito a falta das andorinhas, tem-me feito sofrer a ausência delas, aqui na nossa Várzea da Pedra, nesta Primavera. Creio que, quando cá chegaram, não encontraram ninhos nem os beirais iguais aos que tinham deixado: as obras que tivemos de fazer no exterior da casa, apesar de eu ter pedido que poupassem os nichos das aves, levaram tudo a eito... E tenho saudades de ver valsar as andorinhas, e muitas mais de as ver compor, quais notas de música numa partitura, os fios elétricos e telefónicos que cruzam a vereda aqui defronte...

 

   Mas contava-te que me pus de contemplação na varanda do quarto. Eis que, súbito, surge veloz no céu um peneireiro (falcão vulgar) que se projeta e toca o solo, mesmo na margem do lago ou charca que a quinta tem lá nos baixos do pereiral. Fulminou um rato e banqueteou-se. Lembrei-me então - pois ando em semana de releitura do Taniguchi - do milhafre que, num conto de Furari, se apropria dum peixe que o pescador, num bote, está a retirar das águas do rio Sumida, preso ainda ao anzol da linha da sua cana. O protagonista do conto e do livro todo - cujo título, Furari, se pode traduzir por Ao Sabor do Vento - é um geómetra e cartógrafo japonês do fim do período Edo e início da era Meiji (séc. XIX), que se entretém a percorrer Edo/Tokyo (e outras paragens) contando os passos com que vai medindo as distâncias. Cada passo mede sensivelmente 70cm, isto é, 2 shaku (30,3cm) e 3 sun (3cm), unidades de medição ainda hoje utilizadas para antiguidades. Para ele, a velocidade e golpe certeiro do milhafre é motivo de assombro e de imaginação sobre como se desenhará Tokyo, vista do céu, lá das alturas por onde a ave voa...

 

   Furari é uma obra a que volto com frequência, não só pela sempre notável qualidade do desenho de Taniguchi, e pelo carinho perene e infantil espanto do autor pelas pessoas e o mundo à volta delas, como pela fidedigna descrição da cidade de Edo, das cenas de rua, das paisagens e das estações do ano, das vestimentas, usos e costumes, para não falar do encanto de um espírito científico e empírico sempre em caminhada de descoberta. E temos ainda o gosto das lendas e narrativas tradicionais, como na cena que a seguir para ti evoco.

 

   Os mochi são uns bolos de massa de arroz, uma pasta pegajosa e plástica, que obrigatoriamente se comem pelo Ano Novo, infelizmente vitimando por engasgamento uma ou outra pessoa idosa, todos os anos, por ocasião da festiva refeição. O primeiro dia do ano é também data de se ver o nascer do sol, sinal de novo ano, nova vida. Agosto, por sua vez, é mês de contemplar a lua cheia. Assim como nós amamos o luar de agosto e as desfolhadas. No conto A Lua, de Furari, o nosso herói passeia-se de canoa, com sua mulher, pelo rio Sumida, em plena cidade de Edo (Tokyo). Também fiz essa experiência fluvial e romântica, petiscando, bebendo saké e olhando a lua. Deixam o bote flutuar ao sabor da corrente, vão silenciosamente gozando o momento. Mas Eï, a mulher, fala: Que beleza serena! Mas porque haverá um coelho que faz mochis na lua?  E a conversa entre ambos vai continuando: Desde quando fala o budismo nisso?... Para expiar as faltas de um mundo anterior, um coelho corajoso quis fazer uma boa ação... e ofereceu a própria vida... Então Shakra comoveu-se lá no alto dos céus, e levou-o e instalou-o no reino lunar... Diz-se que é desde então que se vislumbra um coelho na lua... Será que os desenhos que vemos na lua já antes se pareciam com um coelho? ou será que essa lenda é anterior? Não sabemos. Mas seja como for, é facto que a lua é o astro mais próximo da terra... E isso de estar sempre a mudar de forma acentua ainda mais o seu mistério... Mas é um astro magnífico, que nos é familiar... Entretanto, à beira-rio, o poeta Issa escreve um poema: Apanha para mim / a lua / pede a criança chorando...

 

   Mais tarde, tal como dantes, o caminhante Ao Sabor do Vento continuará a contar e a medir os seus passos, mas sempre de olhos no céu.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

TEATRO CARLOS ALBERTO DO PORTO: FUNDAÇÃO, RECONSTRUÇÃO

 

Em 1897, Manuel da Silva Neves, empresário no Porto, toma a iniciativa de edificar o primeiro Teatro Carlos Alberto, inaugurado em 14 de outubro daquele ano com a opereta, hoje esquecida, denominada “O Diabo”. O Teatro tinha na época 252 lugares de plateia, 299 lugares de geral e ainda mais 500 lugares do que na altura se denominava galeria, isto, além de 32 camarotes, numa lotação total de mais de 1200 espetadores, o que é assinalável.

 

Não identificamos os autores da opereta, mas é de registar a iniciativa em si mesma, expressão de uma renovação do urbanismo de espetáculo, à época marcante em todo o país, e por maioria de razão numa cidade como o Porto.

 

Estaria ainda presente a lembrança do incêndio que, em 20 de março de 1888, destruiu o portuense Teatro Baquet, também durante um espetáculo de opereta, provocando algo como 120 mortos. Daí que este primeiro Carlos Alberto fosse construído ainda na memória da tragédia, mas também homenageando o Rei Carlos Alberto do Piemonte, que morreu exilado no Porto.

 

Este primeiro Teatro Carlos Alberto seria o que na época se denominava Teatro-Circo, com palco à italiana, como na época (e em rigor ainda hoje) se dizia, portanto preparado para espetáculos de teatro declamado, mas também com a versatilidade de transformação da plateia em pista de circo, o que desde logo eliminava o declive da sala.

 

Importa entretanto frisar que os sucessivos Teatros Carlos Alberto, que entretanto foram reconstruídos no local, mantêm a implantação e a estrutura do edifício, com alterações do interior e da fachada, mas sem grande mudanças da sala de espetáculos propriamente dita. Ainda assim, é de assinalar as alterações decorrentes da elevação da zona do palco e a reforma do átrio, bilheteiras e áreas de acesso do público. Mais relevante foi a supressão dos camarotes, ocorrida nos anos 30 do século passado, para maior adaptação ao cinema que, durante décadas dominou e exploração do Carlos Alberto: e bem sabemos que não foi o único…

 

Nesse sentido, assinalam-se duas grandes fases de transformação, ambas decorrentes da municipalização do então Cine-Teatro Carlos Alberto, ocorrida em 1993.

 

Desde logo a “transformação” em Auditório Municipal Carlos Alberto, assumindo uma mais vasta polivalência cultural.

 

Mas mais relevante terão sido as transformações e alterações decorrentes dos  investimentos e programas  no âmbito da celebração do “Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura”. O Teatro Carlos Alberto reabre então e retoma atividade como Teatro Nacional. Beneficia de obras de restauro e modernização, da autoria do Arquiteto Nuno Lacerda Lopes.

 

Assim, procede-se à renovação do foyer aberto, no sentido de uma maior ligação do público com a sala de espetáculos em si mesma. Procurou-se reforçar a complementaridade arquitetónica com a sala, através da utilização do vidro para maior acessibilidade das imagens vindas do palco. A sala ganhou também uma maior convertibilidade aos formatos de arena ou à italiana. O equipamento foi modernizado: e sobretudo, aumentou-se a rentabilização do interior do Teatro em função da potencialidade do espetáculo em si.

 

E procedeu-se a outras alterações significativas, sem com isso desvirtuar a tradição oitocentista do edifício.  A zona de produção é modernizada. A sala foi “transformada” em dois auditórios: o chamado Grande Auditório, com 374 lugares, e o chamado Pequeno Auditório, com 150 lugares. E mais: criou-se um anfiteatro ao ar livre, uma sala de exposições e uma chamada teatroteca.

 

E assim se “edificou” um Teatro Carlos Alberto bem moderno, sem destruir o Teatro Carlos Alberto que vem da tradição do século XIX! 

DUARTE IVO CRUZ 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XIII - COMO UM GRITO DE LIBERDADE DE UMA MARAVILHOSA IMPERFEIÇÃO E INSATISFAÇÃO…

 

Fixar limites éticos universais a manifestações e práticas artísticas, obrigaria à criação de uma norma universal e isso resulta, e tem resultado, em atos de censura, funcionalizando e impossibilitando a arte, criação e manifestações artísticas. Sabemos onde começam tais imposições, mas desconhecemos onde acabam.  

 

As artes e as suas manifestações artísticas e culturais em geral, não necessitam de uma justificação, a não ser o desejo do artista, o contexto social que o motiva, o sentido da obra e o seu impacto. Se toda a obra de arte desencadeia efeitos e tem de tolerá-los, também é verdade que só existe um limite para a arte, o da boa arte, que é o da absoluta necessidade da obra e não outro, valendo tudo o que é necessário, e não tudo, o que se expressa numa sublime neutralidade.

 

A arte, criação e manifestações artísticas e culturais demoraram séculos a libertar-se da moral, da religião, da estética, a não serem concebidas como funcionalizadas ao funcionamento de qualquer Estado ou poder, libertando-se de interferências externas, valendo por si, não podendo ser usadas como meios para atingir determinados fins ideológicos ou outros.  

 

Nesta perspetiva, são conceitos abertos e dinâmicos, de evolução contínua e em permanente expansão, mesmo se algo imprecisos e indeterminados, desaconselhando tal polissemia a evitar-se elaborações jurídicas deterministas positivamente consagradas em termos de direito.

 

São como um grito de liberdade, como o espaço ou laboratório da liberdade onde se experimenta, em permanente experimentação, o que não tem limites nem precisa de justificação.

 

Para quem entenda que toda a arte é uma religião, um meio ou expressão de emoções e de estados mentais tão sagrados e transcendentes como qualquer um que os humanos sejam capazes de experienciar, a arte, nesta conceção, é a única religião não dogmática, dado sermos convidados a sentir uma emoção e não a concordar com uma teoria ou dogmas.

 

Esta permanente insatisfação não o é de infelicidade, no sentido que o homem é sempre infeliz porque é eternamente insatisfeito, no seguimento do pessimismo de  Schopenhauer. Antes sim, uma maravilhosa insatisfação e imperfeição de formulação de porquês geradores de outros porquês.

 

Como um grito de liberdade de uma maravilhosa imperfeição e insatisfação...

 

20.06.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Constitui a consciência uma instância de apelo quando as certezas se inquietam?

 

Ainda que assim seja este apelo parece frágil se o confrontarmos com a evocação da Lei como sendo a melhor saída em sede de Moral.

 

Creio ser de nos debruçarmos sobre uma polémica que no séc. XVII opôs Pascal e os jansenitas – que tão só conheço como movimento teológico distinto dentro da Igreja Católica e que surgiu postumamente do holandês Cornelius Jansen - a um enorme número de católicos.

 

Não esqueço que na Igreja católica a Lei infalivelmente transmitida será e foi sempre a que levou à estrada da vida moral autêntica.

 

Contudo, parece poder-se afirmar que o que visa uma moral recta, num regime de uma sociedade, é o que leva ao recurso da instância da consciência, sem se poder admitir que não existem flutuações afetadas pelo relativismo pois que o recurso à fé não é o único pelo qual se optou, e, nem mesmo a fé, é sempre vivida como montanha de infraestruturas inabaláveis.

 

Gostava de chegar a tratar este tema com a profundidade que merece. Inquieta-me não saber ainda explicar com segurança e clareza o quanto sinto que as tradições não constituem já base de decisão, mas sim, devemos procurar dentro da articulação tão difícil da Ética e da Moral o compromisso que nos acuda, assente em consciências, que, afinal são em si, situações culturais e por onde cada um pode encontrar carreiro sensato.

 

Herdámos uma coexistência de sistemas morais. Cabe-nos fazer deles uma força e entendê-los nos seus paradoxos e nas nossas fraquezas.

 

Que todos nos saibamos submeter à prova de expor sem medo as regras da cidade de cada um, o que supõe um trabalho de discernimento de valores e seus opostos que irão ditar a nossa decisão face ao nosso projeto de vida, decidindo ou não recorrer à consciência como instância.

 

Permitam que assim deixe uma proposta.

 

Teresa Bracinha Vieira

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