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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Passei tempos sozinho em todos os lados por onde fui vivendo, e ia mobilando os meus fins de semana conforme o gosto, a curiosidade, a meteorologia e a disposição. Tudo quase lembrado, e resumidas as lembranças, posso hoje dizer que procurei constantemente caminhar, exercitando o corpo, deambulando o espírito. Talvez por isso me sejam ainda tão familiares grandes metrópoles como New York ou Tokyo, tal como cidades muito conhecidas desde a infância, como Paris ou Bruxelas. E tantos, tantos, cantinhos de Lisboa... Por muitos atalhos regresso agora a passeios longínquos, e volto a perder os passos para me encontrar, até comigo, em novas-velhas circunstâncias.

 

   Escrevo-te tudo isto, Princesa, para te falar dum companheiro antigo, que reencontro: Jiro Taniguchi. Morreu há semanas, resolvi-me a reler as magníficas e tão profundamente originais bandas desenhadas que escreveu e desenhou. Tem obras que contemplam o homem na natureza, o desafio espiritual das altitudes, das paisagens amplas e desertas, e também uma das mais interessantes sobre as tensões do pensarsentir das elites políticas, militares, literárias e artísticas japonesas no decurso da era Meiji (1867-1912), em que se "ocidentalizava" o Japão... Mas deu-nos sobretudo histórias de amor simples, aventuras interiores da ternura, das ilusões e desilusões de todos os dias de todos nós, da tessitura das almas comuns, dos desafios da vida em família, e da grandeza desta. Entre várias narrativas, contam-se as que nos falam das deambulações das nossas solidões, todavia despidas de angústias postiças e muito cheias do inefável gosto da procura. O próprio Taniguchi busca encontrar-se na circunstância da sua cidade e no contacto dos outros. Sem alarde, em contos que são peregrinações onde se revelam silêncios interiores e o seu diálogo íntimo não se traduz, mesmo quando escrito, em proposições verbais. Entre elas, as pessoas adivinham-se, intuem-se entre si. Talvez seja esse o segredo da ternura, o sentido da mão que se estende. Como é, por outro lado, estranho dizer-se que é uma qualquer forma de egoísmo o gosto particular de nos passearmos sozinhos... O encontro, mesmo que silencioso, com o outro, o desconhecido, pode dar-se como auto-reconhecimento recíproco, cada um fazendo de espelho... Deves "ler", Princesa de mim, esse pequeno conto inserido no "antológico" O Homem que Caminha, e se intitula O Caminho Comprido, historieta sem palavras, só desenhos, em que o nosso caminhante em passeio passa por outro, mais idoso, de bengala mas andar vigoroso. Consoante as distrações do percurso e o estugar do passo, vão-se alternadamente ultrapassando. Até que, quando uma cancela se encerra e passa um comboio, o idoso já atravessara a linha férrea, deixando para trás o nosso caminhante. Todavia, ao não se ver seguido, parou e esperou. Com um sorriso apenas, sem palavra alguma, ambos prosseguem então, lado a lado, a caminhada. Pensossinto que a profundidade de ser quem sou pode ser modo de dádiva de mim. Afinal, serei sempre com os outros o que me encontro. Ser-me é dar-me. Reparo, Princesa de mim, que do meu mim te falo mais do que do Jiro Taniguchi. Volto a ele. Sem deixar de te dizer, desde já, como tanto me reconheço no seu apego às origens: em várias das suas histórias, regressa a Tottori, cidade onde nasceu, à infância, à família, a lembranças de apego a entes queridos, mesmo quando tremem e doem ainda antigas perdas, separações, incompreensões e ruturas. Tudo contado com um pudor quase silencioso, em que se respeita a solidão como retiro mas também como disponibilidade. Poucas vezes nos ocorre, Princesa, o quanto pode um solitário dar-se ou esperar por nós...

 

   As personagens de Taniguchi sentem-se frequentemente a viver fora do tempo, impressão que eu mesmo também tenho, e de que já te falei. Transportam-se as pessoas para além da duração, não por desejo de prolongamento, mas por saudade da permanência. A eternidade não tem qualquer dimensão, quiçá por isso se possa sentir a medida de qualquer espaço ou tempo como simples ilusão. Todos nós sempre fugimos da circunstância próxima, porque nos prende e encerra, e se nos impõe como limitação. De modo muito japonês, os heróis de Taniguchi estão sempre à procura de uma saída que, afinal, é outra entrada: quanto mais alguém mergulha em si, melhor compreende os outros; quanto mais reconhece os outros, melhor se percebe a si. Os títulos dos seus livros são significativos: O Bairro Longínquo, O Petisqueiro da Solidão, Céu Radioso, O Diário do Meu Pai, O Homem que Caminhava, O Passeante, etc... Chichi no Koyomi (O Diário - ou calendário - do Meu Paizinho) é a descoberta, por um homem adulto, na noite do velório do pai morto, e que ele já não via há vinte anos, do amor atento que este toda a vida lhe votara e ele ignorara. É nessa altura só - quando o pai já habita fora do tempo - que o filho o encontra, escutando os muitos testemunhos de familiares que lhe revelam essa figura tutelar: a criança que tanto sofrera com o divórcio dos pais e passara a vida toda carregando o peso dessa dor percebe então, quando o tempo morreu para dar lugar à misericórdia, que afinal nunca o amor a abandonara. E é comovente ver como Taniguchi nos conta uma história tensa sem sequer uma mínima censura a qualquer personagem. Apenas nos ensina que o amor é o nosso único verdadeiro segredo, e pode não ser fácil descobri-lo.


   A amor é sempre transcendência, só ele constrói e habita a eternidade. A novela Um Céu Radioso conta-nos a coabitação - no corpo de um jovem motar de 17 anos, que sobrevive, amnésico, a um acidente de viação -  do regresso dele à consciência de si e do espírito do pai de família que morreu no mesmo acidente, e reincarna para ter a última oportunidade de se despedir da sua família. Subjacente a interrogações como a da reincarnação, da ressurreição e da saudade, está uma fé, substância das coisas que devemos esperar, desejo e esperança de eternidade, que só o amor pode criar e infinitamente sustentar... Escreve Taniguchi: Imaginei um homem que vai morrer e que, antes de paulatinamente se ir embora, consegue apanhar tudo o que o seu coração insatisfeito ia deixar num estado de incompletude. Desejei escrever o arrepio do coração de alguém que acompanha um próximo querido no momento da sua morte, e o renascimento da alma...   ... "Um Céu Radioso" é, assim também, a narrativa de uma família que decide ultrapassar uma morte impensável. E apesar da história ser um tanto estranha, quis representar, com os meios da banda desenhada, os conflitos e os rasgões do coração, a aflição que é aceitar a morte de um ser, e o que é preciso fazer para partir sem deixar atrás de si qualquer conflito interior não resolvido. 

 

   O título do livro, na versão francesa da Casterman (2006) é Un Ciel Radieux. Mas o título japonês Hareyuku Sora também se pode traduzir por Um Céu Limpo. Ou um céu claro. Diz-me muito.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira