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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA


Minha Princesa de mim:

 

   Por cá, o toque de alvorada é dado pelos melros, quando a luz que vejo lá fora, estremunhada e pálida, ainda nem põe cores nos campos mas apenas vai rompendo a escuridão da noite que foge, distinguindo contornos e tons. A noite que fundira num campo só seu todos os campos que eu via (lembrando Pessoa) deixa agora a alba abrir as sombras... E os melros cantam acolhendo o dia e reconhecendo-se nele. E eu quedo-me a sentir a luz da manhã que cresce e não comando. E então vou descobrindo como é alto o céu, e ocorre-me aquele desabafo do Hiroshi Nakahara, protagonista de Harukana Machi-E, de Jiro Taniguchi: O céu é tão alto... e, todavia, temos a impressão de que bastaria estendermos a mão para tocar nas nuvens... O céu é tão misterioso, como se fosse imutável para lá dos homens e do tempo... E se a eternidade fosse isso, um simples céu... Nunca ninguém se torna verdadeiramente adulto... A criança que fomos está aí, bem viva no muito fundo de nós... É como o céu... Com o tempo, julgamos que crescemos, mas a maturidade não passa de engano, mais não é do que um entrave à nossa alma livre de crianças... Reli esta noite essa maravilhosa narrativa do regresso sonhado de um homem maduro aos seus catorze anos, para compreender que não se muda a vida que nos construiu. Tal como não se reinventa o passado, e afinal permanecemos na incessante procura do desconhecido que somos. Numa das minhas primeiras cartas (seria ainda uma das muitas que escrevi por um homónimo antes de mim?) já te falava da difícil relação que tenho com o tempo, e tenho-te dito como, ainda hoje, procuro conciliar, na circunstância da intemporalidade, a aparente contradição entre tempo escatológico e tempo circular. Esta manhã, neste momento em que te escrevo, escuto as rolas que começaram a arrulhar lá fora. Já lá vão as seis horas da manhã e calou-se a música dos melros; dão agora as oito, será hora de rolas, mas não sei dizer-te se se deitaram tarde ou são preguiçosas. Também é verdade que te digo horas de hoje, mas, embora melro me pareça mais madrugador que rola, nem todas as aves acordam todos os dias à mesma hora. Quiçá melros e rolas, amanhã ou depois, se anunciem a horas diferentes das minhas, sempre contadas. Penso que o relógio das aves não é como os nossos: tem dois ponteiros, sim, mas um é a claridade da luz, e o outro a temperatura do ar. Ambos medem só o momentâneo, desconhecem a duração. Menos angústia, menos grilhões. 

 

   Noutro livro, Taniguchi adapta e desenha um romance de Hiromi Kawakami, intitulado Sensei no Kaban (literalmente A Pasta do Mestre, que, aliás, na narrativa ilustrada, ele visivelmente traz sempre consigo) - obra que, de certo modo, nos fala também de um passado revisitado e, simultaneamente, longínquo e intrometido na vida presente. Trata-se do reencontro de uma mulher de 37 anos com um seu antigo professor, agora com 67, reformado. Apesar da diferença de idades, de conhecimentos e cultura, entendem-se no gosto por passeios com paragem obrigatória e deliciada em tasquinhas de petiscos japoneses. Eu mesmo fiz, sozinho, essa experiência de comer sentado ao balcão, mandando vir pratinhos conformes ao deambular do meu apetite e sem mais conversa, e muitas vezes volto aos relatos que o Taniguchi faz de variados momentos gastronómicos do Petisqueiro, noutro dos seus livros. Até na diversificação dos pormenores, dos ingredientes, das cores, dos cheiros, dos paladares, a cozinha japonesa tem sempre algo de comunhão telúrica, e pode convidar ao silêncio e à meditação. No caso de Sensei no Kaban é também motivo de encontro e afeto.

 

   A mancha urbana de Tokyo e cidades adjacentes terá mais de 43 milhões de habitantes, mas todavia está semeada de minúsculos jardins e pequenas hortas, de ruas estreitas que são caminhos de aldeia, de recolhimentos, cantos e campos esquecidos... Tudo muito seguro e limpo. Sair das grandes artérias e dos centros de azáfama para se deambular por ali é como viajar-se para muito longe pelo seu próprio pé. Assim, onde mais me senti como que no campo foi nos corações secretos da megalópole de Tokyo. Por aí também me consola o convívio com a obra de Taniguchi. O desenho é limpo e nítido, o pormenor nunca é esquecido, as cenas são enquadradas de modo a descobrirmos o sentimento das coisas e das pessoas - e as belezas escondidas, mesmo quando estas não são aparentes em paisagens urbanas monotonamente arquitetadas, nas ruas cobertas pelo cruzar de cabos elétricos e telefónicos, onde o belo reina pela simples sentida presença do asseio e da paz. Inesperado, súbito, surge um pequeno parque, um templo budista, o cemitério anexo, tudo verde e cinzento e antigo. Tudo calado. Ali se prolonga e instala o repouso da paz interior. A vida e a morte confundem-se na natureza.

 

   Curiosamente - e talvez seja isto o que me ocorreu dizer-te hoje - tenho abertos, em prateleiras da sala cá de casa, dois livros grandes, de ilustrações: um, japonês, reproduz cem pinturas antigas referentes às estações do ano, e abri-o na página que nos mostra uma pintura de cerejeira em flor, do século XVI; o outro, português, é uma edição fac-similada das gravuras do De Aetatibus Mundi, do português Francisco d´Ollanda, e delas mostro a nº 69, alusiva ao tempo e à eternidade. É uma composição intrigante, apresenta-nos um gigante ajoelhado sobre uma mó, apoiado em duas muletas com rodas, assim conduzindo a mó para cima de um esqueleto humano, que uma foice identifica como morte. É velho barbudo, tem asas abertas, parece devorar um corpo de mulher que traz na boca, uma serpente enrosca-se na muleta esquerda e aponta a cabeça à mão desse lado. É, o nome inscrito na mó assim o indica, o Tempo. Por cima da cabeça, uma clepsidra, por detrás um sol radiante donde jorra, de cada lado, um arco íris que toca a terra onde dois veados, símbolos da esperança, pacíficos e alheios, pastam. Acima do sol abre-se um espaço circular e vazio: a Eternidade. Por debaixo da gravura, o rosto do Pretérito olha para trás, o do Futuro para a frente. Entre ambos inscreve-se Agora, e a legenda reza Finis Temporis. No reverso dessa gravura do século XVI, surge representada a Ressurreição de Cristo. Uma vez mais, é o Tempo que morre, e Vida e Morte se confundem.

 

   Pego no catálogo, para mim autografado por um conservador do Museu Nacional de Tokyo, em romaji (caracteres latinos) e kanji (sino-japoneses), Seiroku Noma comissário duma exposição no Petit Palais de Paris, ao tempo de André Malraux, ministro da cultura, que tomara a iniciativa de propor a sua realização. A data da dedicatória é 16 de dezembro de 1963, e  Seiroku Noma escreve a introdução ao catálogo da exposição intitulada L´Au-delà dans l´art japonais. Naquela, ele chama a atenção para a pintura aguada e o espírito do Zen, seita contemplativa do budismo, de afastar todas as preocupações terrenas e procurar uma visão intuitiva para assim surpreender a verdade da vida e do universo...   ... Com vista a atingir o coração da verdade, era necessário eliminar as impurezas devidas aos acontecimentos e à circunstância. Na terminologia Zen, essa eliminação dos entraves e essa aproximação dircta da verdade são chamadas nada, vacuidade. É por uma contemplação esvaziante e por uma disciplina visando atingir o reino do não pensamento que Çakyamuni, o fundador do budismo na Índia, alcançou a iluminação suprema. Fui a este texto, que guardava de uma estadia em Paris, há mais de meio século, porque me ocorreu quando relia o 17º capítulo, A Pasta do Mestre, do romance de Kawakami que Taniguchi verteu para desenho, com o mesmo título em japonês: Sensei no Kaban. Ali se conta que, depois da união do pudor e da paixão poderosa e íntima do professor e da sua ex-aluna, aquele irá morrer. No dia do funeral. o seu filho entrega, em memória grata do pai, um presente à jovem senhora: quando esta, saudosa e só, o abrirá, encontra a pasta que todos os dias ele trazia consigo, e lhe legara em testamento: estava vazia, nada tinha dentro. Lembra-se então de um poema de Seihaku Iraku que o Mestre um dia lhe ensinara: Tanto viajei / que trago a roupa gasta / e o frio a trespassa /  Está claro o céu desta noite / mas dói-me o coração. E olhando o céu calado, dirige-se ao Mestre: Gostava tanto de voltar a vê-lo... E lá do alto, do céu vazio, uma voz lhe diz: Está prometido, um dia será!

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira