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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Tão de ouro era a luz desta manhã, que me quedei na varanda quieta do meu quarto, aberta sobre os campos próximos e alegrada pelo voo de melros, pardais, verdilhões, toutinegras e poupas... São estas as mais raras, gosto de as ver pousar, para lhes admirar a poupinha e as penas zebradas. Senti muito a falta das andorinhas, tem-me feito sofrer a ausência delas, aqui na nossa Várzea da Pedra, nesta Primavera. Creio que, quando cá chegaram, não encontraram ninhos nem os beirais iguais aos que tinham deixado: as obras que tivemos de fazer no exterior da casa, apesar de eu ter pedido que poupassem os nichos das aves, levaram tudo a eito... E tenho saudades de ver valsar as andorinhas, e muitas mais de as ver compor, quais notas de música numa partitura, os fios elétricos e telefónicos que cruzam a vereda aqui defronte...

 

   Mas contava-te que me pus de contemplação na varanda do quarto. Eis que, súbito, surge veloz no céu um peneireiro (falcão vulgar) que se projeta e toca o solo, mesmo na margem do lago ou charca que a quinta tem lá nos baixos do pereiral. Fulminou um rato e banqueteou-se. Lembrei-me então - pois ando em semana de releitura do Taniguchi - do milhafre que, num conto de Furari, se apropria dum peixe que o pescador, num bote, está a retirar das águas do rio Sumida, preso ainda ao anzol da linha da sua cana. O protagonista do conto e do livro todo - cujo título, Furari, se pode traduzir por Ao Sabor do Vento - é um geómetra e cartógrafo japonês do fim do período Edo e início da era Meiji (séc. XIX), que se entretém a percorrer Edo/Tokyo (e outras paragens) contando os passos com que vai medindo as distâncias. Cada passo mede sensivelmente 70cm, isto é, 2 shaku (30,3cm) e 3 sun (3cm), unidades de medição ainda hoje utilizadas para antiguidades. Para ele, a velocidade e golpe certeiro do milhafre é motivo de assombro e de imaginação sobre como se desenhará Tokyo, vista do céu, lá das alturas por onde a ave voa...

 

   Furari é uma obra a que volto com frequência, não só pela sempre notável qualidade do desenho de Taniguchi, e pelo carinho perene e infantil espanto do autor pelas pessoas e o mundo à volta delas, como pela fidedigna descrição da cidade de Edo, das cenas de rua, das paisagens e das estações do ano, das vestimentas, usos e costumes, para não falar do encanto de um espírito científico e empírico sempre em caminhada de descoberta. E temos ainda o gosto das lendas e narrativas tradicionais, como na cena que a seguir para ti evoco.

 

   Os mochi são uns bolos de massa de arroz, uma pasta pegajosa e plástica, que obrigatoriamente se comem pelo Ano Novo, infelizmente vitimando por engasgamento uma ou outra pessoa idosa, todos os anos, por ocasião da festiva refeição. O primeiro dia do ano é também data de se ver o nascer do sol, sinal de novo ano, nova vida. Agosto, por sua vez, é mês de contemplar a lua cheia. Assim como nós amamos o luar de agosto e as desfolhadas. No conto A Lua, de Furari, o nosso herói passeia-se de canoa, com sua mulher, pelo rio Sumida, em plena cidade de Edo (Tokyo). Também fiz essa experiência fluvial e romântica, petiscando, bebendo saké e olhando a lua. Deixam o bote flutuar ao sabor da corrente, vão silenciosamente gozando o momento. Mas Eï, a mulher, fala: Que beleza serena! Mas porque haverá um coelho que faz mochis na lua?  E a conversa entre ambos vai continuando: Desde quando fala o budismo nisso?... Para expiar as faltas de um mundo anterior, um coelho corajoso quis fazer uma boa ação... e ofereceu a própria vida... Então Shakra comoveu-se lá no alto dos céus, e levou-o e instalou-o no reino lunar... Diz-se que é desde então que se vislumbra um coelho na lua... Será que os desenhos que vemos na lua já antes se pareciam com um coelho? ou será que essa lenda é anterior? Não sabemos. Mas seja como for, é facto que a lua é o astro mais próximo da terra... E isso de estar sempre a mudar de forma acentua ainda mais o seu mistério... Mas é um astro magnífico, que nos é familiar... Entretanto, à beira-rio, o poeta Issa escreve um poema: Apanha para mim / a lua / pede a criança chorando...

 

   Mais tarde, tal como dantes, o caminhante Ao Sabor do Vento continuará a contar e a medir os seus passos, mas sempre de olhos no céu.

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira