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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

 

De 31 de julho a 6 de agosto de 2017.

 

“As Surpresas da Flora no Tempo dos Descobrimentos” de Alfredo Margarido (Elo, 1994) constitui uma excelente oportunidade para compreendermos como os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo, alimentares e outros, mercê das viagens para outros continentes.

 

A CIRCULAÇÃO DE CONHECIMENTOS E HÁBITOS
Se o pequeno livro de Alfredo Margarido contém um conjunto notável de informações sobre os movimentos de influência mútua entre culturas gerados pela primeira globalização, a verdade é que podemos descobrir aí as origens de hábitos alimentares que os nossos antepassados antes do período dos descobrimentos não poderiam sequer suspeitar ou sonhar. E à obra que hoje trazemos, devemos associar outro precioso pequeno volume acabado de sair, graças à Biblioteca Nacional de Portugal, o guia da exposição a propósito dos 450 anos da publicação do “Colóquio dos Simples, e Drogas he cousas medicinais da Índia” de Garcia de Orta (2013) da autoria de João José Alves Dias – “Antes de Lineu – O Mundo das Plantas nas Coleções de Impressos da BNP” (Lisboa, 2017). Aí se afirma que pode dizer-se que no mundo científico assim como há um momento crucial representado pela obra de Carlos Lineu (1707-1778), o mesmo se pode dizer do português Garcia de Orta (1501-1568) – pelo caracter inovador da sua investigação e pelo pioneirismo do seu método. Começando pela ilustração que apresentamos, importa explicar que o quadro da autoria de Josefa de Óbidos mostra a extraordinária banalização do açúcar na vida portuguesa, durante o século XVII, que precede a grande voga europeia dos séculos seguintes, por contraste com o que ocorria anteriormente – o mel mais raro dá lugar ao açúcar, como o Infante antecipara no Algarve. Pode dizer-se, aliás, que o açúcar constitui uma das marcas do barroco português e brasileiro – lembrando-nos bem do poema ao “Menino Deus em metáfora de doce”… Perante mudanças profundas ditadas pela primeira globalização, João de Barros falou do comércio como uma ciência, afirmando-se o Renascimento sob o influxo da expansão, com “novas experiências e conhecimentos, novas formas e novos gostos”. “A paisagem modifica-se substancialmente devido à introdução de novas plantas, sobretudo americanas, tal como se alteram os jardins que mandados construir por «novos-ricos», cuja fortuna provinha do novo comércio internacional, rompiam com a velha ordem botânica da Idade Média”. De facto, “a modernidade começou a elaborar-se no momento em que os homens decidiram modificar a natureza em função dos seus interesses, alargados estes à escala intercontinental. Ou seja, a ecologia-mundo é a consequência direta e inelutável da nova leitura do mundo a que procedem os europeus: o conhecimento permite reforçar e alargar o económico, o que implica a construção de novas formas de relações humanas. (…) A ecologia-mundo permite a estruturação da economia-mundo, do que não pode deixar de resultar um homem novo, potencial cidadão do mundo” – afirma Alfredo Margarido. “Organizar e banalizar o conhecimento, eis a tarefa principal dos portugueses. Não há hoje paisagem que não conserve um traço, mesmo mínimo, das alterações introduzidas pela atividade portuguesa”.

 

UM PERCURSO APAIXONANTE
O percurso desde as plantas medievais até às plantas da modernidade é apaixonante. Em Porto Santo, os portugueses encontram o dragoeiro. Luigi de Ca da Mosto, em Cabo Verde, fala do encontro do trigo e da cevada com “o sangue de drago, que nasce em algumas árvores (…). A dita árvore produz certo fruto que está maduro no mês de Março, e é muito bom para comer; assemelha-se às cerejas, mas é amarelo”. Gil Eanes, depois de passar o Bojador, traz ao Infante D. Henrique, demonstrando que a terra não é tão estéril como as gentes diziam, um barril cheio de terra com umas ervas que se pareciam com outras a que chamam rosas de Santa Maria… Na Madeira, Cabo Verde e S. Tomé inicia-se a produção industrial da cana-de-açúcar, o que determina uma verdadeira revolução. Apesar da destruição de muitas espécies autóctones madeirenses, a Laurissilva consegue ser mantida… A descoberta da malagueta constitui uma extraordinária surpresa (“no gosto é tão forte que uma onça faz o efeito de meia libra de pimenta comum”). Afinal, em África havia especiarias cuja qualidade ombreava com o comércio da Índia… Os exemplos das boas surpresas multiplicam-se: as bananas são comparadas aos figos, a cola é muito estimada como boa mercadoria (mas não entusiasma os europeus), o azeite e o vinho de palma surpreendem pela multiplicidade de usos oferecidos pelos produtos da palmeira dendém… “Lisboa parece ser das primeiras cidades a receber e a adotar uma parte substancial das plantas que marinheiros, cientistas ou comerciantes vão encontrando pelo caminho”. Mas é a chegada ao Oriente que introduz novos e muito significativos fatores, apesar da desconfiança expressa por Gil Vicente, Sá de Miranda ou Garcia de Resende sobre o “cheiro a canela” que levaria o reino a despovoar-se… A transferência das plantas orientais para África, Reino e Brasil irá produzir a verdadeira alteração, que caracterizará a nova economia-mundo. E neste ponto a perspetiva científica é a de Garcia de Orta. Das explicações fantasiosas passa-se às análises rigorosas, no terreno, com conhecimento de causa. Em lugar da mitificação de Heródoto e contra mil fingimentos adotados pelos tradicionais intermediários, para aumentar o preço da mercadoria, havia que usar o rigor do conhecimento. “A lenta, mas constante eliminação dos mitos e das imprecisões, permitiu aos portugueses concluir que a canela fina, verdadeira, só se produz em Ceilão”. O novo método de Garcia de Orta exigia ver, desenhar e conhecer as plantas – no que o médico será seguido por Cristóvão da Costa, ilustrador exímio. Em lugar de analogias fantasiosas, importaria reproduzir exatamente as realidades até então desconhecidas pelos europeus. Os exemplos são curiosos e as plantas não servem para unir, mas para dissociar culturas: as folhas de betel serviam para mascar (mas não caíram no gosto dos portugueses); o coco ganhará fama por dar muitas cousas necessárias à vida humana, sendo assim batizado porque parecia o rosto do bugio ou de outro animal e fazia medo às crianças; a noz moscada e o cravinho – que se cultivavam nas cinco ilhas de Maluquo (Pachel, Moreu, Machiam, Tidore e Ternate) tinham grande procura - “aqui vem cada ano muitas naus de Malaca e de Java carregar”.

 

A ECONOMIA LIGADA À CIÊNCIA
“Dada a maneira como se organizou a informação portuguesa, encontramos constantemente em Garcia de Orta o contraponto científico de Duarte Barbosa: o médico retoma os materiais do marinheiro, e é por isso forçado a confirmar as informações recolhidas por Barbosa”. A bananeira continua a ser designada no vulgo como figueira-da-Índia, mas Orta já fala de banana e indica-lhe finalidades culinárias e terapêuticas. Sobre o sagu, há resistências europeias, a ponto do Padre Francisco Vieira, preso em Ternate, recusar durante trinta dias o sagu que lhe apresentam por ser comida de negro, preferindo pão e vinho. São ainda referidas as mangas (que Orta cultivava), os duriões, as líxias, as jacas e as carambolas… Sobre o chá (tendo os portugueses adotado a pronúncia de Cantão, enquanto outros europeus deram preferência ao vocábulo malaio t’e) fica um mistério, pois não encontramos descrição da planta, mas sim da bebida. Só Wenceslau de Morais, já próximo de nós, se ocupará em pormenor da planta e do ritual. E resta a América, que surpreendeu Colombo por este desconhecer tudo o que encontrava. Não podia antecipar a riqueza que o novo continente albergava. Álvares Cabral e os seus apenas identificam as palmeiras. Pero Magalhães Gândavo diz-nos: “O que lá se come em lugar de pão é farinha de pau. Esta se faz da raiz d’uma planta que se chama mandioca, a qual é como inhame…”. A mandioca, a banana-pão, a batata doce, o amendoim, o caju, grande variedade de feijões, o milho, e uma grande riqueza de frutos, como o ananás. É um mundo inesgotável. A melhor planta que corresponde ao chá do Oriente, é, na América do Sul, o tabaco. E foi de Lisboa que o embaixador Jean Nicot levou a planta do tabaco para Paris, celebrizando-a… É notável como plantas vindas de outros lugares se tornam mais férteis em novas situações… Inesgotável viagem, quando o diálogo entre a cultura e a natureza se torna tão fecundo.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

      Para melhor sentirmos o ambiente condicionante da produção literária da era Heian, é preciosa ajuda a leitura não só do Genjimonogatari como de diários coevos, donde destaco o da mesma Murasaki Shikibu. Para não me lembrar apenas do tão apreciado papel da poesia, ou de flores primaveris ou folhas outonais, como correio amoroso - numa sociedade em que as damas nobres, quando recolhidas, de homens só podiam ser vistas por seus maridos - e insistindo na liberdade de criação literária que a prática da escrita em hiragana trouxe às mulheres, transcrevo um trecho do diário da Murasaki: Quando meu irmão Nobunori (o que hoje está no Conselho dos Ritos) era rapaz, nosso pai ansiava por torná-lo num bom letrado chinês, e vinha ele mesmo muitas vezes ouvir o Nobunori ler as lições. Nessas ocasiões eu estava sempre presente, e era tão rápida a apanhar a língua, que em breve ajudava o meu irmão quando ele se atrapalhava. Perante isso, meu pai costumava suspirar e dizer-me: "Se ao menos fosses um rapaz, como eu ficaria orgulhoso e feliz!" Mas não se passaria muito tempo sem que eu me arrependesse de assim me ter feito notar. Porque várias pessoas me foram dizendo que mesmo os rapazes se tornavam muito mal vistos quando se descobria que queriam muito aos livros. Claro que, se se tratasse de uma rapariga, seria bem pior! Doravante, fui muito cuidadosa em esconder que sabia escrever caracteres chineses. Por isso ganhei pouca prática de caligrafia, e hoje sou bastante aselha com o pincel. Assim se explica que a escrita da genial Murasaki se fosse fazendo em hiragana, o que, evidentemente, por melhor servir as características da língua japonesa, ajudou o processo de emancipação da sua escrita e o surto de nova literatura.

 

   Tenho diante de mim uma edição francesa do Dit du Genji, em três grossos volumes, profusamente ilustrados por reproduções da pintura tradicional japonesa, que ao longo dos séculos foi sempre acompanhando publicações do romance. Esta é a de Diane de Selliers, Paris, 2008. Os originais das pinturas reproduzidas vêm do século XII ao XVII, a tradução é a de René Sieffert, originalmente editada pelas Publications Orientalistes de France, Paris, 1988. Diz o tradutor: Nem sequer por um só instante tive o sentimento de alheamento, nem no tempo, nem no espaço, mas antes pelo contrário me perseguia a impressão constante de ter entrado numa aventura intelectual ou, melhor, mental, espantosamente moderna. E já muito antes Marguerite Yourcenar dissera "Il ne s´est jamais rien écrit de mieux", quiçá confirmando o assombro do imperador Juntoku (sec. XIII): O Genji Monogatari é uma coisa inexplicável, não pode ser obra de pessoa vulgar. Pessoalmente, já li o que, em português, gosto de intitular Os Contos de Genji, nesta presente versão francesa, na inglesa de Arthur Waley (Charles E. Tuttle Company, Inc., Tokyo, 1970) e até em manga (banda desenhada japonesa), numa adaptação e ilustração de Tsuboi Koh editada pela Shinjibutsu Oraisha, Tokyo, 1989! O romance original compõe-se de 54 livros com múltiplas histórias em que evoluem umas 59 personagens principais e surgem uns 800 waka. Alguns dos livros têm títulos evocativos de poesia: a bela da noite, a flor de que se colhe a ponta, a festa com flores de outono, a estadia em que flores ao vento se dispersam, o vento nos pinhais, essa fina nuvem, a bela da manhã, o ramo de ameixeira, a folhagem da glicínia, o nevoeiro da noite, o príncipe perfumado, o damasqueiro vermelho, a ribeira dos bambus, os sarmentos de vinha virgem, a barca ao sabor das ondas, o efémero, a ponte flutuante dos sonhos... Na verdade, mais do que o acerto e subtileza da descrição de ambientes e cenas, ou dos perfis certeiros das personagens, ou da construção de enredos e intrigas - à sua leitura me prende o encanto lírico e a delicadeza poética do texto... Não vou contar-te, Princesa de mim, nada do que li, apenas te resumo o livro XXV, Os Pirilampos, pela graça inesperada que lhe achei:

 

   Haverá alguns anos, falei-te por carta na princesa Tamakazura, ou Precioso Enfeite, creio mesmo que lhe dediquei um soneto. Tal personagem dos Contos do Genji, e protegida deste, é filha do Ministro do Interior, To no Chujo, e da Bela da Noite, Yugao. Esta, que também fora amante de Genji, já falecera quando decorre este conto. Tamakazura, sua filha, vive no palácio do Genji, na 6ª avenida de Heian, a cinco quarteirões do palácio imperial, onde ocupa, com a Dama da Estadia em que as Flores ao Vento se dispersam (Hana Chiru Sato) os pavilhões de Verão. O seu protetor, com o fito de atrair a sua casa visitas de senhores da melhor linhagem, vai frequentemente vê-la em seus aposentos, incitando-a a recebê-los. Entre os aspirantes, distingue-se Hotaru no miya (príncipe diretor dos assuntos militares), conhecido pelo seu nome de pena: Príncipe dos Pirilampos. Perante a reserva ou aborrecimento de Tamakazura, o Príncipe Brilhante (Hikaru Genji) decide ditar a uma aia daquela (a dama Saisho) uma mensagem encorajadora que, em nome da Precioso Enfeite, será endereçada a Hotaru no Miya... que, aliás, é meio irmão do Genji! Assim consegue que aquele apareça no palácio da 6ª avenida, e do lado de fora do pavilhão espreite para dentro para poder, enfim, ver Tamakazura e contemplar a sua beleza. Esta está à conversa com Genji, escondida de outros olhares, como mandam as regras, por uma cortina. Fingindo ter de dar um toque ao cortinado, o Príncipe Brilhante solta uns pirilampos que, com as suas luzes iluminam a beleza de Precioso Enfeite ao olhar escondido de Hotaru. Fulmina-o assombrosa paixão. Mas, perante o embaraço súbito de Tamakazura, os dois príncipes retiram-se. E só no dia seguinte o Príncipe dos Pirilampos enviará à linda Precioso Enfeite um poema de amor. Para apreciares um pouco melhor o conto, deixo-te tradução de alguns trechos. Mas este livro XXV diz muito mais, nas entrelinhas e pela subtileza. Não te direi o quê, espero que leias os Contos, pois só a leitura nos traz esse inefável gosto das descobertas secretas... Agora, agarro no texto de Murasaki Shikibu, quando o Genji exorta a sua protegida a falar diretamente com o Príncipe Hotaru, ainda que concedendo que ela se mantenha fora da vista deste, escondida por uma cortina de vários estores, num compartimento assim separado do exterior. Precioso Enfeite ali se queda, sem ligar muito ao que o aspirante, do lado de fora, lhe vai dizendo, receosa ainda de que ele ouse entrar na casa. É então que o Genji se aproxima e levanta um dos estores da cortina; nesse instante, como que uma luz se acende. Alguém terá aceso uma candeia? - pensa ela, aterrada. Mas eram os pirilampos que ele tinha, numerosos, encerrado no leve tecido, dobrando-o de forma a ocultar as luzinhas, e que agora soltara, fingindo arrumar a cortina. Confusa por assim se ver subitamente iluminada, ela ocultara o rosto com um leque, oferecendo à luz um perfil de delicada graça. Aproveitando a surpresa da iluminação, o Príncipe também lhe lançara um olhar; ora, todas as suas declarações tinham até então sido feitas confiadamente, pensando que ela fosse filha do Genji; nunca sequer imaginara que ela fosse tão maravilhosamente bela; resumindo: toda aquela maquinação tivera por objetivo lançar a perturbação num espírito prestes a inflamar-se. Mas se ela fosse mesmo filha dele, o Genji certamente a não teria posto em tal embaraço. Que volta dera agora! Tudo feito, saiu sem ruído e voltou para os seus aposentos.

 

   O Príncipe calculara a distância que o separava dela e, vendo-a tão próxima, olhava-a, com o coração aos pulos, pelos interstícios da frágil cortina; o espaço que se lhe abria à vista teria uns dois braços de profundidade, vagamente iluminado por esse inesperado luar que lhe revelava tão agradável espetáculo. Mas desde logo as mulheres diligenciaram restabelecer a escuridão que lho iria esconder. A indistinta claridade, todavia, parecia querer facultar-lhe tema brilhante de conversa. Não se cansava de evocar a beleza daquela forma reclinada, ainda que apenas entrevista. Na verdade, tal como o Genji previra, ficara cativo o seu coração!

 

                                  os fogos deste inseto

                                  demasiado discreto

                                  para à pressa dizer amor

                                  será que dela o pudor

                                  docemente os possa extinguir

                                  sem o seu calor sentir?

 

   - disse ele.

   Se demais refletisse na resposta a dar em tal caso, essa talvez tortuosa saísse, pelo que ela de rompante disse, como  se não lhe desse importância:

 

                                  o pirilampo

                                  que sem erguer a voz

                                  se consume

                                  bem mais do que o palrador

                                  em seu amor acende o lume

 

   E como, isto dito, ela se retirara, ele lamentou a crueldade que assim o mantinha a distância. Insistir parecia-lhe libertino, por isso resolveu não ficar até de madrugada e, encharcado pela chuva que gotejava do beiral e pelas próprias lágrimas do seu desapontamento, pela noite avançada abalou. Algum cuco, como é de regra, terá cantado. Mas sigamos adiante, que não quero aborrecer-vos!

 

   Na edição que tenho nas mãos, este livro XXV publica-se no segundo volume, e vem ilustrado por belíssimas reproduções de pinturas a ouro e tintas de cores sobre papel, feitas na era Edo ou Tokugawa, por volta de 1611-1612, por Tosa Mitsuyoshi, da escola com o mesmo apelido de família (Tosa). E que bem essas imagens nos contam a história, nos revelam os lugares e as suas disposições, nos falam das personagens e dos seus sentimentos! Mas termino esta carta, Princesa de mim, traduzindo o tal poema que o Príncipe dos Pirilampos enviou no dia seguinte e a resposta de Tamakazura. Este waka vinha numa carta que acompanhava um lírio, flor de raiz inusitadamente longa:

 

                                     mesmo neste dia de hoje

                                     porque ninguém trata

                                     de o arrancar

                                     o lírio langoroso mergulha

                                     em águas as suas raízes

 

   Resposta de Precioso Enfeite:

 

                                      à luz do dia

                                      bem curtas à vista

                                      me parecem as raízes

                                      e obscuro o desígnio

                                      dos langores desse lírio

 

                                      Deixe-se de criancices!

 

   Este texto é hoje milenar, foi escrito, na viragem do século X para o XI, por uma jovem mulher. O trecho do capítulo que aqui te deixo diz-me ainda muito sobre uma sociedade cortesã obcecada pela beleza física (feminina e masculina), pela paixão exaltada dos sentidos e, simultaneamente, pelo pudor e a busca poética da sua expressão, pela delicadeza quase silenciosa das suas mensagens, como se eros fosse uma aragem soprando pelos interstícios de portas de correr, biombos, cortinas de pregas e estores laminados... Mas assim também a sua lírica me lembra a das nossas cantigas de amigo, que tanto revelam e tanto escondem, tanto gritam e tanto silenciam, pois tantas vezes, nas voltas dos amores, a nossa natureza é ela e a sua disciplina. 

 

Camilo Maria 

  

Camilo Martins de Oliveira

EVOCAÇÃO DOS TEATROS DE PORTALEGRE

 

A evocação de Portalegre como expressão, inspiração ou localização de uma tradição teatral alargada, envolve necessariamente, e desde logo, a referencia a José Régio e a Amélia Rey Colaço –  por razões obviamente diversas mas em certos casos convergentes.

 

José Régio, como se sabe, foi durante décadas professor do Liceu de Portalegre. Não espanta por isso que grande parte da sua obra tenha sido concebida na cidade. Aí se integra a dramaturgia, com o circunstancialismo de três peças referenciais.

 

Em primeiro lugar, a criação textual e de espetáculo da sua primeira peça conhecida, “Sonho de uma Véspera de Exame”, escrita e representada em 1935 por alunos finalistas do Liceu no Teatro Portalegrense. E é de assinalar que entre esses finalistas-atores estava o futuro grande ator Artur Semedo: aí se terá iniciado uma notável carreira.

 

E por outro lado, no Teatro Portalegrense, Amélia Rey Colaço efetuou a sua ultima aparição em cena, em 1985, no espetáculo único de “El-Rei Sebastião”, de José Régio, evocação-homenagem ao dramaturgo, falecido em 1969.

 

E finalmente: Benilde, protagonista da peça de Régio “Benilde ou a Virgem-Mãe”, publicada em 1947, ouve as suas vozes numa casa “em qualquer solidão do Alto Alentejo”, onde se situa “uma casa sinistra”...

 

Assinale-se então que em 1858 inaugura-se em Portalegre o Teatro Portalegrense, projeto do Arquiteto José de Sousa Larcher: um exemplar notável da geração de teatros que foram sendo construídos no interior do país. Tinha entretanto precedentes: José Martins dos Santos Conde refere pelo menos duas salas, ambas com nome de grandes atrizes da época: Emília das Neves, denominada a “linda Emília” por Brito Camacho, e Beatriz Rente, esta “de olhos grandes e lânguidos” escreveu então Sousa Bastos. 

 

Mas em 29 de setembro de 1953, Amélia e a Companhia Rey-Colaço – Robles Monteiro inaugura em Portalegre o Cine-Teatro Crisfal, projeto do Arquiteto Domingos Alves Dias e do Engenheiro Raul Dias Subtil. E o então já decadente Teatro Portalegrense acentua essa decadência: nos anos 80, um grupo desportivo nivelou o palco e a plateia, e “transformou” o teatro num insólito ringue de patinagem rodeado de frisas e camarotes!

 

Ora bem:  em 2007 abre ao público o Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre, segundo projeto dos Arquitetos Manuel Gonçalves e Patrícia Rocha Leite. Trata-se de um edifício de espetáculo, notável pela modernidade e pela dimensão, pois comporta um conjunto de dois auditórios de 500 e de 170 lugares, o que permite uma rentabilização que a proximidade com Espanha de certo modo internacionaliza.

 

É de assinalar aliás um certo contraste ou heterogeneidade arquitetónica nas zonas de espetáculo. E desde logo porque o Centro Cultural comporta como vimos duas áreas distintas. Tal como já escrevi, o auditório maior retoma, de certo modo, e dentro de certos limites, a tradição da sala à italiana, aqui dominada por uma decoração moderna que ainda assim evoca certa linha de continuidade. E no exterior, um conjunto arquitetónico de corpos sobrepostos que confere uma nota de modernidade no conjunto urbanístico em que o Centro de Artes e Espetáculos se edificou.

 

Evoco, como já tenho feito, duas referências, das inúmeras que na sua obra, José Régio faz a Portalegre, cidade onde viveu dezenas de anos.

 

Desde logo, o longo poema intitulado precisamente “Toada de Portalegre”, publicado em “Fado”:

 

“Em Portalegre, cidade/ do Alto Alentejo, cercada/ De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,/ Morei numa casa velha,/ Velha, grande, tosca e bela,/a qual quis como se fora/ Feita para eu morar nela”. E seguem mais 228 versos – “verso musical, de rumores solitários, de angústias a meia voz”, como nos diz Urbano Tavares Rodrigues.

 

E no dia 5 de março de 1965, José Régio escreveu: “De regresso enfim a Portalegre; e que alívio! Retorno a minha solidão tão cheia, depois daquela brilhante balbúrdia tão vazia, exceto quendo, apesar de tudo, a minha solidão nela se insinuava”. 

 

E acrescento que hoje, José Régio não teria já qualquer pretexto para falar da “solidão” de Portalegre, a não ser da sua própria solidão!

 

(obras citadas: Sousa Bastos - “Dicionário do Teatro Português”-1903;  Urbano tavares Rodrigues – “O Alentejo” in” Antologia da Terra Portuguesa ”; José Régio – “Páginas do Diário íntimo” 2ª ed. 2002; José Martins dos Santos Conde - “Teatro em Portalegre”- 1989; Duarte Ivo Cruz - “Teatros de Portugal 2005 e “Teatros em Portugal- Espaços e Arquitetura” 2008; José Régio “Páginas do Diário Íntimo” 2ª ed.  - 2002).

 

DUARTE IVO CRUZ

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XV - SURREALISMO - II

A PARANOIA CRÍTICA DE DALÍ (I)

Rumo a uma arte livre criadora de uma linguagem do desejo sem preconceitos, expurgando aspirações marxistas e partilhando pesquisas psicanalíticas, em especial freudianas, emergem artistas como Salvador Dalí, com a teoria da paranoia crítica ou do método espontâneo de conhecimento irracional baseado na associação interpretativa-crítica dos fenómenos delirantes. Entrava em transe com o fim de alcançar um estado de paranoia crítica, ao invés das técnicas de associação espontânea e da produção de imagens automáticas de Miró e Ernst.

 

Residindo nas fantasias noturnas do sono a verdade real da existência humana, sendo só através do subconsciente que o ser humano atinge a liberdade absoluta, independente da razão, da vontade, dos tabus e imperativos sexuais, há uma realidade superior dos sonhos que Dalí vulgarizou como imagem de marca pública mais conhecida do surrealismo. Exemplificam-no o seu Telefone-Lagosta (ou Telefone Afrodisíaco), com uma lagosta no lugar do auscultador e um relógio flácido a derreter-se na tela A Persistência da Memória.

 

De personalidade ambiciosa, egocêntrica, excêntrica e exibicionista, vulgarizou o espírito, formulário visual e postura pública do surrealismo como bizarria, delírio, fantasia, irracionalidade, fazendo culto do seu exótico bigode desmesuradamente fino, pontiagudo e estratosférico, em poses chamativas, delirantes e provocantes de aparições públicas transformadas em espetáculos de marketing.

 

O seu método paranoico-crítico, baseado em picos de aflição e ansiedade pessoal que ele próprio criava, permitia-lhe associações delirantes, inusitadas e insólitas, através de sonhos, pesadelos e paranoias, chegando a aterrorizar-se com imagens bizarras e macabras, confundido o observador na distinção entre a imaginação e a realidade, criando pinturas oníricas de objetos reais com múltiplas interpretações.

 

Um exemplo é a célebre tela Persistência da Memória (1931). Começa por um litoral vazio do Mediterrâneo, junto à casa do artista, na Catalunha, onde uma sombra negra ameaçadora se espraia, tornando flácido e deteriorando tudo aquilo por onde passa. Consta que Dalí se inspirou num queijo cremoso derretido que se espalhou pelas bordas de um prato, quanto aos relógios deformados e moles, lembrando um queijo amolecido. Se o próprio tempo se curva perante o impacto da gravidade, por que não, e por maioria de razão, os relógios, maquinismos do tempo? Fim do tempo e da vida, como também o é um ser vulnerável, grotesco e impotente coberto por um relógio que se vai consumindo e degradando, no centro da obra, tido como sendo Dalí, a que acresce uma mosca no relógio à esquerda e um exército de formigas pretas rastejantes no de bolso cor de laranja, como símbolo de decomposição e putrefação. Entre relógios flácidos que dão à tela uma natureza de sonho alucinado e elementos de paisagem naturalista transfigurados numa perspetiva visionária, surge a implacabilidade do tempo e a inevitabilidade da morte, em imagens reais metamorfoseadas em surreais e, ao mesmo tempo, numa horrenda metáfora hiper-real. Há que reconhecer que esta obra surrealista integra o imaginário coletivo da arte mundial.

 

Memorizo, de há anos, uma entrevista televisa num documentário sobre a vida de  Salvador Dalí, onde defendia que os génios não mereciam morrer, achando justo que pessoas geniais, como ele, eram dignas de viver eternamente, tendo a morte como indigna, não apreciando uma evolução natural e universal, segundo a qual todos, sem exceção, nascemos e morremos, o que também lhe valeu qualificativos de arrogante,  darwinista e louco. Ele que, resguardando-se na publicitada loucura, afirmou: “A única diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”.

 

Mas não chegava, além de quadros controversos, a sua aparência estranha, narcísica e exibicionista, de atos e palavras tidos como desarrazoados e extravagantes. Nem ser tido como um transgressor da moral e dos bons costumes da época, no seu caso de amor com o poeta Federico Garcia Lorca. Um amor “surreal”, por certo, para aquele tempo. Ou ter colaborado com o cineasta Luis Buñuel em filmes apelidados de escandalosos, como O Cão Andaluz e a Idade do Ouro. Ter entrado em rutura, mais tarde, com Lorca e Buñuel. Ter tido um encontro com Gala, então mulher de Paul Éluard, que se tornaria, sucessivamente, sua amante, esposa e musa. A tudo isto soma-se a sua expulsão do movimento surrealista. Logo ele, tido por outros, e por ele próprio, o mais surrealista dos surrealistas.

 

25.07.2017 
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A LINGUAGEM DE UM RIAD

 

Um chamamento provém do que propulsiona de um Riad para nós, para fora de si e para dentro do nosso momento a cada matiz que o vivemos.

 

É estranho, mas ali percebe-se a música do mar, bem como a do deserto envolvente. É um local de enigmas que conhece as estações da vida e sabe pensá-las fundamente. Uma exceção sensual habita ali perguntas fundamentais cujas respostas afinal só conhecíamos de indícios de outros poderosos mundos. O misterioso que se deixa perseguir num Riad protagoniza tudo o que mostra, ou, pelo menos reúne uma fantástica coleção de saberes o que expõe à nossa versão sem receio de se sentir mutilado.

 

Há algo muito forte num Riad e que paira entre nós e a nossa liberdade, ajuizando coisas por abraços convincentes que confidenciamos também por beijos e seios despertos.

 

Invocam-se caprichos da imaginação e o prestígio deste local aumenta-a num desejo nascente. Aqui a mulher é bela e fresca e senta-se no ângulo que melhor a vejam e vai até ao implausível, sobrepõe-se assim às do mundo externo. Os feitiços abalam, mas nunca sem antes se deixarem absorver o bastante.

 

Tudo é muito mudo na viagem de volta.

 

Uns dias mais tarde, uma lua no nosso quarto. Uma lua prateada leve, volteada em estrelas, livros, âncora: a linguagem de um Riad.

 

Teresa Bracinha Vieira

Junho 2017

ARTESÃOS

 

Assim como de entre o sol e a tempestade

Uma específica lente húmida

Extrai uma infinidade de cores

Do arco-íris

Assim as miragens de quem visualiza realidades

Do saber do ofício óptico da alma

Prisma único

Que tudo entusiasma

Em proporções tais

Que fortemente

Lembra delírios

De verdade

 

Teresa Bracinha Vieira

Junho 2017

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

As primeiras abstrações de Victor Pasmore.

 

'I felt I had reached the end of the road in visual representation and was seized by a violent urge to start again on a completely new basis. At an exhibition in London I discovered a painting by Paul Klee made up only of coloured squares. I decided straight away that this was the objective point from which I could start again.', V. Pasmore

 

Em 1948, Victor Pasmore (1908-1998) pinta as primeiras composições abstratas.

 

No texto 'Pasmore's Constructed Abstract Art. 1948-66' de Alastair Grieve, lê-se que em contraste, com as paisagens e as naturezas mortas anteriores, as primeiras abstrações de Pasmore são feitas como um novo princípio, em pequeno formato, com vários tipos de pincelada que enfatizam a superfície plana e que afirmam a pintura como um objeto. As formas apesar de primárias não são estáveis, mas sim estão em rotação permanente o que permite constituir uma construção em contínuo movimento. Os trabalhos abstratos de Pasmore, resultado de formas básicas, não são abstrações. O pintor diz que a forma pura das suas pinturas refere-se a nenhum outro objeto - isto porque a forma pura é uma realidade lógica e suficiente em si própria. 

 

'The transition from visual abstraction to visual development, and from visual representation to visual autonomy, is not a continuous one. A point is reached where one ends and the other begins', V. Pasmore

 

O encontro com a abstração deu-se por influência de Paul Klee. Embora claramente inspirado pelos cubistas (Picasso, Braque e Gris) as colagens de Pasmore, feitas com jornal, são totalmente abstratas. E Pasmore usa as colagens como modo de preparação para as suas pinturas.

 

Alguns dos títulos das suas obras, feitas a partir de 1950, sugerem inspiração em fenómenos naturais e apresentam o quadrado, o círculo, o triângulo e a espiral como formas dominantes. Uma linha separa o que parece ser a lua ou o sol envolvido em espirais (influência de Turner), e um conjunto de formas básicas e coloridas que se empilham abaixo do horizonte (influência de Klee e Kandinsky).

 

Pode considerar-se, que a partir deste período 1950-51, a espiral passa a ser o elemento dominante. E as espirais de Pasmore, enfatizam a materialidade da pintura, mas também parecem mover-se através da superfície para a frente e para trás num poderoso movimento vertiginoso. Muitas poderão ser as influências - arte chinesa, os desenhos do dilúvio de Leonardo da Vinci, as pinturas de Van Gogh e de Turner, desenhos rupestres, as pinturas recentes de Picasso ou padrões que determinam o crescimento natural das coisas. Para Patrick Heron, as espirais de Pasmore inventam e definem o espaço sem comprometer o pintor a nenhum assunto em particular. As espirais têm sobretudo a capacidade de evocar o mar e o céu, o calmo e o frenético, o mortal e o divino, numa permanente sensação profundamente agitada da ascensão do espírito humano. (R. Melville)

 

Porém Pasmore sempre afirmou que as formas das suas pinturas foram inventadas: 'What I have done, therefore, is not the result of a process of abstraction in front of nature, but a method of construction emanating from within. I have tried to compose as music is composed, with formal elements which, in themselves, have no descriptive qualities at all. The spiral movement which can be discerned throughout nature, in many different forms, is reduced to its single common denomination - the simple spiral.'

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

Necessary does not happen, 2017-2021

 

Porfiam, insistem e persistem. A persuasão não pára. Susto aqui, aviso acolá, advertência além. RH Tony Blair declara que "[is] absolutely necessary that Brexit does not happen." O ex Prime Minister tem direito  a devido eco mediático e a réplica do seu antigo spin doctor no No. 10.

 

Sempre caloroso, Mr Alastair Campbell diz saber, “in my heart, that Brexit can be stopped”. Na Prospect é já o Professor AC Grayling quem remata, dizendo que “Brexit is dying.” — Chérie. À cœur vaillant rien d'impossible. HM Government prossegue, em Brussels, as negociações da saída do UK da European Union. A House of Commons agenda o debate da ‘Great Repeal Bill’ para o outono. — Hmm. Boys will be boys. Em reino polarizado comemora a Royal House of Windsor o seu primeiro centenário. Os Young Royals iniciam uma digressão continental em Poland. A Trump Saga avança em Capitol Hill, com inquirições familiares na Russian Connection. O French President Emmanuel Macron desentende-se com as esferas militares depois da visita do American Friend e da parada do Bastille Day, mas recupera com foto astronáutica nas revistas de charme. Os Lampedusians despedem o Mayor e a sua política de portas abertas pelo voto. 

Sun and showers at Central London.

Entre caseiras aventuras informáticas e very sad news saídas do torneio em Wimbledon, eis que por cá irrompe nova, espetacular e prometedora série na praça mediática. Como qualificar a narrativa? Tudo se passa no círculo das celebridades e em casa aristocrata. Ora, a qualidade do guião é tal, que, momentaneamente, logra obscurecer no debate nacional a quarta vitória de Mr Chris Fromme no Tour de France e o 19.º título de Mr Roger Fedrer no Central Court ou até a chegada do épico Dunkirk às salas de cinema. Mesmo as lutas tribais de Westminster perdem luz. Também os cortes na saúde ou segurança social sossobram no altar da popularidade. Na town talk chamam-lhe o BBC Mon£y Show. Envolve dinheiro e poder, além da paga de licença sob pena de cadeia. Em plena era austeritária, com fartos tributos e soldos congelados, a estação pública remunera apresentadores & co com milhões. Pior. No topo das best-paid stars surgem rostos de programas desportivos, entre carros e futebol, com jornalistas, guionistas, produtores e, sobretudo, as mulheres que fazem igual trabalho, por vezes lado-a-lado no êcrã, a muitos cifrões de distância. A disciplina orçamental não é para todos, de todo em todo.

 

Há 100 anos atrás, com mão de mestre, é o King George V quem surpreende a opinião pública. Confrontado com a febre patriótica e o custo humano da guerra continental contra o primo Kaiser,  em 1917 decide o avô da Queen Elizabeth II abdicar do apelido teutónico. A Royal Proclamation descontinua o uso de “all German titles and dignities” enquanto anuncia que os residentes no palácio serão doravante "styled and known as the House and Family of Windsor." O British Royal Blood tem trajetos admiráveis. Os últimos ingleses são os Tudor de 600. As raízes alemãs da atual família real recuam à House of Hanover, a qual sucede aos escoceses Stuart. Herdando o cetro, sem herdeiros, da Queen Anne of Great Britain & Ireland, cabe ao primo teutão Georg Ludwig naturalizar-se como George I. Sucedem-se quatro reis e a Queen Victoria, casada com o bávaro Prince Albert. O primogénito Edward VII assume o sobrenome régio da casa ducal do pai, Saxe-Coburg Gotha, abandonado depois pelo seu filho. Muitos o dizem como vencedor da I WW e salvador da monarquia. Se a dinastia formalmente dura sete anos, resta agora saber da perenidade secular dos Windsor. Já contam com três reis e uma rainha, simplesmente a jóia da linhagem.

 

Com o Palace of Westminster a cessar a atividade parlamentar e os MP’s de partida para férias, notas finais da cultura londrina. O que vem por aí, lá para October, a tal recomenda. Ocupado Whitehall nas rondas mensais da Brexit, faço ainda votos de a common long cool break. Assim, após o excitante triénio de referendos e eleições pelo veraneio, destaque agora para um tipo mais tranquilo de power play. No Theatre Royal Haymarket abre Queen Anne, pela Royal Shakespeare Company. A peça esteve em cena no Swan de Stratford-upon-Avon e desce ao palco de West End sob aplauso plural dos críticos. O espetáculo foca precisamente o reinado da last Stuart monarch. Da autoria de Mrs Helen Edmundson e dirigida por Mrs Natalie Abrahami, a história tem como protagonistas a rainha escocesa e a sua confidente: Mrs Emma Cunniffe (de Great Expectations) e Mrs Romola Garai (de Suffragette ou The Hour). Os ingredientes estão lá todos, para absorver a audiência em vésperas das outoniças conferências partidárias. Mostra acontecimentos históricos como a coroação, a união real de England e Scotland ou a emergência do bipartidarismo no reino. À conjuntura somam as intrigas palacianas e o poder por detrás do trono, a influente Duchess Sarah of Marlborough. — Well, well. Keep in mind how Master Will dissects the moral authority that comes with the sceptre in his Macbeth: — “Could trammel up the consequence, and catch / With his surcease success: that but this blow / Might be the be-all and the end-all, here, / But here upon this bank and shoal of time, | We’d jump the life to come. But in these cases / We still have judgement here, that we but teach / Bloody instructions which, being taught, return / To plague th’inventor."

 

St James, 24th July 2017

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 24 a 30 de julho de 2017.

 

A Exposição “Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, na Fundação Calouste Gulbenkian, comissariada por Ana Vasconcelos, Carlos Silveira e Pedro Aires de Oliveira, constitui uma oportunidade para lembrar (tal como acontece em Londres) um momento dramático e decisivo na História europeia do século XX.

 

UMA POLÉMICA INTENSA
“A grande verdade, pelo que diz respeito ao progresso da Humanidade, é que existe um horrível tumor militarista corroendo a Europa e que vários operadores se preparam para o extirpar. Qual será o resultado da operação? Esperemos; mas julgamos bem que, por muitos estragos operados, a Humanidade sofrerá ainda longo tempo desse horrível mal”. É Jaime Cortesão quem o escreve, quando a Grande Guerra dava os seus primeiros passos – em 10 de agosto de 1914. A lucidez das palavras é profética. Ninguém esperava que tudo se precipitasse, mas havia razões profundas para a eclosão do desastre. Muitos julgavam que a guerra seria rápida, depois de pensar que era impossível, até porque o Kaiser Guilherme II era neto da Rainha Vitória e porque se pensava que os proletários mobilizados para a frente recusar-se-iam a combater quando os respetivos Estados-Maiores dessem ordem para atacar. Perante tais circunstâncias, é fácil de perceber como a sociedade portuguesa se dividiu quanto a saber se deveríamos ou não participar na guerra. É este o tema da Exposição “Tudo se Desmorona. Impactos Culturais da Grande Guerra em Portugal”, na Fundação Calouste Gulbenkian, comissariada por Ana Vasconcelos, Carlos Silveira e Pedro Aires de Oliveira. E a oportunidade do tema não oferece dúvidas. Lembra-se a guerra em nome da cultura e da paz. Houve polémica intensa entre nós. Jaime Cortesão e Raul Proença defenderam a intervenção. Pascoaes disse: “a hora é magnífica (…). Se formos para a guerra, mostraremos ao mundo que estamos prontos a morrer pela pátria (…) e Portugal criará novas raízes na História”. No entanto, António Sérgio e Aquilino Ribeiro tinham entendimento diverso, já que a prevalência dos fatores económicos dominantes tornaria os benefícios ilusórios. No “Portugal Futurista”, Álvaro de Campos assumiu uma violenta posição antiguerra, com laivos germanófilos. Em contraste, na mesma revista (proibida pela censura), Almada Negreiros considerava a guerra como “a grande experiência” regeneradora da pátria futura. Em pano de fundo, havia o panorama negro traçado por Raul Brandão em Húmus: “Na barafunda da Europa ardem aqui e ali cidades inteiras. Um brasido e gritos”. E os ecos nas Memórias – Vale de Josafat eram igualmente pesados: “Foi a morte que se aproximou de repente de nós todos, dos desgraçados e dos outros e nos pôs o problema da vida como uma faca apontada aos peitos. A morte passou para o primeiro plano”.

 

UM REGIME MUITO FRÁGIL
A República era muito jovem e as instituições não estavam estabilizadas. A polémica era melindrosa. O eco popular das campanhas intervencionistas foi diminuto. De facto, não havia condições para uma resposta eficaz e, mais do que o teatro europeu, havia África – a lembrança do velho Ultimatum inglês de 1890 não se tinha apagado, havendo obrigações nacionais, que as ambições alemãs punham em xeque no norte de Moçambique e no sul de Angola. Esse apelo africano tornou-se natural, mas Basílio Teles dizia: “A desilusão, a fadiga, o sofrimento e o mal-estar de todo o mundo acabarão breve por fazer ouvir a sua voz retumbante e imperiosa; e os partidos da guerra, por lhe obedecer sem murmurar, pondo por uma vez ponto na pavorosa chacina”… A pergunta sacramental era: seria necessária a participação portuguesa na frente europeia para salvaguardar em futuras negociações de paz a manutenção dos nossos territórios? Não tinham tido Londres e Berlim, em 1898 e em 1912-13, a tentação de partilhar os despojos de um desmembramento do império africano português? Apesar de tudo, a situação no sul de Angola estava estabilizada, com a rendição das forças alemãs em 1915, ao contrário do que ocorria no norte de Moçambique. Foram, todavia, os ingleses que deram pretexto para a declaração de guerra alemã de março de 1916 ao instarem os portugueses a apresarem os navios alemães estacionados em portos portugueses. Mas os britânicos conheciam bem as nossas fragilidades. Se se falou do “milagre de Tancos”, pela preparação rápida do Corpo Expedicionário Português, o certo é que o desastre de La Lys (9.4.18) tornou-se um novo Alcácer-Quibir. Afonso Costa procurou fazer da guerra um fator de unificação interna que fortalecesse a República, mas a frente doméstica acabaria em colapso com o golpe e o assassinato de Sidónio Pais. O complexo contexto em que se desenvolveram os acontecimentos portugueses ligados à I Grande Guerra foi analisado no Colóquio Internacional intitulado significativamente “Ninguém Sabe que Coisa Quer – A Grande Guerra e a crise dos cânones culturais portugueses”, comissariado por António José Telo. De facto, os argumentos invocados na altura anulavam-se mutuamente, quanto às origens e às possíveis consequências do trágico conflito, que se tornaria origem de uma nova Guerra dos Trinta Anos, que só terminaria em 1945.

 

UMA ARRISCADA PARTICIPAÇÃO
Para o bem e para o mal, Portugal seria profundamente marcado por essa arriscada participação. A crise da I República, as práticas e as representações que marcaram a sociedade e a cultura, os temas religioso e social, a génese da ditadura e do Estado Novo, a questão colonial, o papel de Portugal no mapa geoestratégico, a memória presente até 1974 e decisiva para a prevenção e para a consolidação do regime democrático atual – tudo esteve bem evidente numa reflexão atual e pertinente, em que o tema da Guerra (como acontece em Londres no Imperial War Museum – agora a comemorar cem anos) constitui ponto de partida para uma reflexão histórica e estratégica sobre um conceito aberto e partilhado de identidade cultural, que se revela atualíssimo, sobretudo quando falamos das legitimidades nacional, supranacional e cidadã – num mundo em que o local e o global se confrontam e articulam contraditoriamente. Na conferência proferida pelo Cardeal Patriarca, D. Manuel Clemente, foi lembrada a proposta feita pelo Papa Bento XV aos governo beligerantes em 1 de agosto de 1917, para acabar com a “inútil carnificina”: a) desarmamento simultâneo e recíproco; b) arbitragem internacional; c) liberdade dos mares: renúncia recíproca a indemnizações de guerra; e) reexame conciliador das reivindicações territoriais. Ninguém ouviu. Pelo contrário, as potências consideraram excessiva a referência à carnificina. Mas a sensibilidade “politicante” (diferente da atitude “zelante”) de Bento XV foi importante para Portugal e para a acalmação na questão religiosa (até com a beatificação de Nuno Álvares, em 1918), quer através do papel muito importante dos capelães militares na Guerra, quer pelas consequências duráveis da concordata informal, do modus vivendi de 1919, do apoio às missões católicas. Jaime Cortesão diria em julho de 1920: “Vem aí a vida nova. Quem não o sente? Mas quem a conhece de antemão?! Sabe-se apenas que as suas mais altas esperanças mergulham as raízes nesses milhões de sepulturas. Os túmulos dos soldados da grande guerra sãos caboucos donde o palácio do futuro vai erguer-se”.

 

 

Guilherme d'Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Nos dias em que abro o computador e olho para o correio que este eletronicamente me traz, capricho em logo apagar a maioria das mensagens chegadas, que não leio, conforto-me com recados e lembranças de amigos, surpreendo-me a deitar os olhos, por simples curiosidade, a textos e imagens que poderia deixar despercebidos. Entre estes descubro, o mais das vezes, coisas repetidas, isto é, transmissões do mesmo por diferentes remetentes. Presumo tratar-se de temas de sucesso -  como se diz hoje em dia - frases ou relâmpagos que vão fazendo sensação pelos corredores virtuais da nossa leviana comunicação.

 

   Calhou-me apanhar uma gracinha sobre qual seria o nome do nosso atual Presidente da República em japonês: Taki Tali Taculá. Eis mais um disparate da nossa produção nacional de chalaças. Na verdade, tal nome, se assim escrito for mostrado a um filho do Sol Nascente, será por este lido: Taki Tari Tacurá. O nosso líquido L não existe em japonês. Na transcrição em katakana (caracteres fonéticos japoneses para reprodução de nomes estrangeiros), os dois primeiros nomes do nosso presidente, por exemplo, soariam assim: Maruceru Reberu. E, nos liceus nipónicos, é frequente os professores de inglês contarem aquela laracha: R como em Roma ou R como em Rondon?

 

   Tampouco existe naquela língua o som SI. Diz-se sempre SHI. Cito-te este exemplo, Princesa, porque nem sempre, por cá, entendemos bem a racionalidade e a utilidade do método Hepburn de romanização (transcrição fonética do japonês para romaji ou caracteres latinos) que, todavia, a meu ver, é hoje, não só o menos confuso para falantes de muitas outras línguas, como o mais aceitável universalmente. Uso-o sempre, até por ser, quando devidamente interpretado, aquele que melhor transcreve a tónica das sílabas breves ou longas, indispensável à compreensão do que em japonês é dito. Tokyo não se lê Tóquio, nem Kyoto Quioto, como seríamos tentados à portuguesa... Voltando ao SHI que, em transcrições portuguesas, tantas vezes se confunde com CHI, dou-te uma ilustração: chitai deve ler-se tchitai, significa asneira, disparate, e escreve-se com dois kanji, o segundo dos quais é o mesmo, com igual caligrafia e som, na palavra shitai, que se deve ler shitai, e quer dizer pose, elegância. O kanji tai, em ambos os casos, refere-se a aspeto, aparência. Mas enquanto o chi (lê tchi) evoca tolo, o shi fala só de forma, figura. E muito embora possa verificar que, para muita gente, tolice e elegância signifiquem o mesmo, sei que tal não faz sentido no cotejo destes dois vocábulos nipónicos. Por outro lado, também a leitura tchi de chi é mais universal do que a portuguesa chi ou a italiana ki. Aliás, se abrires um dicionário do castelhano, encontrarás, na ordem alfabética do mesmo, o ch, que se lê tch.

 

   No português corrente, a pronúncia de estrangeirismos e neologismos de origem estrangeira é bastante indisciplinada e, em regra, pouco racional. Vá lá a gente perceber porque é que dizemos uísque (e tal qual o escrevemos à portuguesa), mas chamamos quivi ao fruto e à ave que lhe deu o nome indígena neozelandês, o qual foi transcrito por ingleses para ser lido como por lá se diz: kiwi, isto é, quiúi. E que nos custaria chamar a Hawaii Haùaií e a Tahiti Tahìtí, como eles chamam às suas terras, em vez de Avai (para onde?) e Taiti (parece cócega). E porquê Zamora e não Samora (até temos cá uma Samora Correia) e Zapatero para Sapatero (Sapateiro também é apelido português). Ou, ainda, Paóla e Paólo, em vez de Paula e Paulo, ainda que com os ditongos alongados e musicais? Se lemos Hawai com W à alemã, quando a transcrição é inglesa, porque haveremos de pronunciar à inglesa nomes franceses de futebolistas portugueses, filhos de emigrantes em França, como Adrien e Cédric, ambos devendo ter tónica na última sílaba? Inúmeros exemplos poderiam ser acrescentados a estes poucos, entre os quais os nomes de futebolistas em línguas mais "exóticas", como o holandês: a primeira sílaba de Seegelar ou Seedorf devia ler-se Zê, mas dizem-na por aí à inglesa: Si. Se a pronunciassem lusitanamente ou Cé, não me irritaria, nenhum de nós está obrigado a decifrar pronúncias em todas as outras línguas. Mas o doutoral inglês, que esquecem quando não deviam (em kiwi ou Hawai, por exemplo) arrepia-me. Dever-se-á este fenómeno a qualquer alardeada pretensão ou, antes, a relutância em ordenar e regular? Talvez seja só culpa dos mídia, como hoje tanto por aí se gosta de pronunciar, à inglesa, a palavra latina media, há tanto tempo já acolhida pela língua portuguesa...

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira

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