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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Terminava a minha última carta, traduzindo-te um haiku do Kobaiyashi Issa, poeta que viveu de 1763 a 1828, bem depois de Basho. Jiro Taniguchi inclui-o no seu Furari, creio que por ser contemporâneo de Ino Tadataka, sob cuja direção se mediu e desenhou o Dai Nihon enkai yochi zenzu (1832), o primeiro mapa completo do território e mar do Grande Japão. Para o efeito, utilizaram-se técnicas europeias que, já no período Edo, antes mesmo da era Meiji, - na qual, erradamente, te disse que Tadataka Ino ainda teria entrado - começavam a "modernizar" o Japão. Terá sido esse cartógrafo, ou um seu colaborador, o inspirador da personagem sem nome do herói de Furari. O poeta Issa que, menino ainda, perdera a mãe e foi malquerido pela madrasta, tinha também hábitos peregrinos e um olhar cheio de ternura pela natureza e pelas pessoas, sobretudo as crianças e os mais fracos. Cedo perdeu os seus quatro filhos, deixando-nos este haiku pela morte do último sobrevivente, comparando a insignificância deste mundo e desta vida com a eternidade no paraíso de Buda:

 

          Tsuyu no yo wa

          Tsuyu no yo nagara

          Sarinagara

 

   É tempo de nada / de despedida de nada / despedida só - traduzo eu, muito livremente. Mas nota bem: neste, como noutros, em português, conto, ao nosso jeito, 5-7-5 sílabas.

 

  (Vou guardando cá por casa os meus achaques, distrai-me e até me alivia este meu entretenimento com letras japonesas) 

 

   E faz como eu: conta também,em cada verso japonês (aqui posto em caracteres latinos ou romaji), as suas 5-7-5 sílabas, somando 17 no haiku inteiro, o verso nipónico sendo sempre um penta ou um heptassílabo. Diferentemente da língua chinesa, que é pobre foneticamente, servindo-se mais de tonalidades do que de diversidade de sons, o japonês tem uma fonética comparável, por exemplo, à do italiano ou do português, sendo cada sílaba formada por uma consoante e uma vogal. Todavia, a poesia nipónica não procura a rima, antes a evita. Por outro lado, é evasiva, o poema japonês é, por regra, inconclusivo, por vezes até só uma impressão da qual o próprio autor se ausenta. Como neste haiku de Basho (1644-94):

 

          kumo no mine

          ikutsu kuzurete

          tsuki no yama

 

que traduzo assim:  cúmulo de nuvens / descompõe-se em muitos flocos / montanha de lua...

 

 Escolhi-o por acaso, mas ocorre-me que o mesmo serviu para o seguinte comentário do professor Donald Keene, da Columbia University (New York), quiçá um dos ocidentais que melhor conhece a literatura nipónica: Um poeta ocidental teria provavelmente acrescentado uma conclusão pessoal, tal como D. H. Lawrence no seu Moonrise, em que diz que aquela visão lhe deu a " certeza de que a beleza é algo para além do túmulo, essa perfeita experiência do brilho nunca cairá no nada". Eis algo que nenhum poeta japonês diria explicitamente: ou o seu poema o sugere, ou então falhou. Os versos de Basho acima citados terão claramente falhado se o leitor acreditar que o poeta ficou impassível perante o espetáculo que descreve. Mesmo para leitores sensíveis às qualidades sugestivas do poema, a natureza da verdade percebida por Basho diante da súbita aparição da montanha iluminada pela lua variará consideravelmente. Na verdade, Basho consideraria falhado o poema se este apenas sugerisse uma experiência de verdade. O que os poetas japoneses mais frequentemente procuram é criar com poucas palavras, o mais das vezes através de algumas imagens insinuantes, o enquadramento de uma obra cujos pormenores devem ser fornecidos pelo leitor, assim como numa pintura japonesa umas poucas pinceladas podem sugerir um mundo inteiro. Eis também porque pensossinto que traduzir poesia japonesa é como tentar captar o etéreo, tanto ela nasce de surpresas íntimas e instantâneas. Cada leitor sentirá a seu modo revelações de um poema surto noutro tempo. A forma poética normaliza comunicações, não comanda conteúdos.

 

   Sendo fraquíssimo conhecedor do idioma nipónico, tenho lido toda a literatura que me chega através de traduções francesas ou inglesas. Mas sempre que se trata de encontrar uma versão portuguesa para algum curto texto, um qualquer conceito que repute importante, ou, sobretudo, um poema, encho-me de brios, deixo de contar o tempo a consumir, e atiro-me à obra. E ora decifro kanji (que me parecem fundamentais para o entendimento de certos conceitos e certamente do significado de nomes de pessoas, épocas e lugares) ou vou em busca de transcrições em romaji, que directamente traduzo, servindo-me rigorosamente do Dicionário Universal Japonês-Português, do padre Jaime Cepeda Coelho, SJ., querido amigo -para cuja edição pela Shogakukan, Tokyo, em 1998, também dei a minha ajuda -, mas sem esquecer A Guide to Reading & Writing Japanese (Charles E. Tuttle Co. Inc., 1959), pelo apoio que me dá ao reconhecimento dos romaji em caracteres sino-nipónicos. Fundamental. Não será obra, mas dá trabalho. Trabalho muito compensador, pois me aproxima mais das origens e espírito dos textos, e me traz um entendimento novo. Já agora, Princesa de mim, deixa-me dizer-te que esse esquecimento das nossas raízes, que me aflige, e de que tanto te tenho falado, essa transformação da memória e da cultura do espírito das nossas sociedades hodiernas em vagos registos efémeros, me recorda com frequência aquela imagem dada pelo Zygmunt Bauman: a dos registos magnéticos, em fitas ou discos, ou no que for, que depressa se apagam e substituem. Já não sabemos quem somos. Tampouco saberemos o que quer dizer muito do que dizemos: a nossa errante levitação audiovisual, acompanhada de novas ortografias e da ignorância geral das raízes da nossa língua, parece-me que nos corta o entendimento... Mas estou mesmo velho. Novo é ainda o professor Toru Maruyama, da Universidade Nanzan, em Nagoya - com quem mantive longas e amigas conversas - que se dedicou à aprendizagem do português só para poder restaurar a fonética da língua japonesa nos séculos XVI//XVII, já que a transcrição da mesma era feita, nesse tempo, pelos jesuítas portugueses ... em romaji ! Com o padre João Rodrigues, o tçuzu (intérprete), à cabeça, inventaram um sistema de transcrição que ainda hoje funciona! E a mim, por exemplo, me ajuda a dizer um haiku. Sem todavia me esquecer de chegar o melhor possível ao original, mesmo não tendo quaisquer pretensões a tradutor de poemas nipónicos, coisa que faço só por gosto, para afinal recitar a minha induzida inspiração. Assim, qualquer "haiku" meu é apenas o que essa palavra quer dizer em dois kanji lidos da direita para a esquerda: verso (ku) por graça ou gosto (hai). Just for fun. Sobretudo quando manhas de saúde não me deixam sair de casa...

 

   Waka é, originalmente, desde o século VI, a designação da poesia japonesa, para a diferenciar do kanshi, ou verso chinês. Na verdade, este, composto em chinês por poetas chineses ou japoneses, não se casava com a poesia oral nativa, a Yamato no uta, ou canto do Japão Antigo (Yamato), pelo que foi este sendo registado em escrita sínica japonizada, obedecendo então a novas formas poéticas. Assim, o poema japonês de 31 sílabas (5-7-5-7-7) ou tanka (canto breve ou poema curto), torna-se a forma dominante do waka, confundindo-se com ele, contrapondo-se ao chosai ou poema longo. Surgem também, pela cultura nova de uma língua japonesa escrita:

 

 1- o renga, poemas encadeados (como uma "desgarrada"!), que se encontra já no Kojiki (registo das coisas antigas, de 712) e é, na sua forma mais simples, um tanka cujos três primeiros versos são escritos por uma pessoa e os dois últimos por outra; lembra-me um pouco a nossa tradição de mote e glosas ou voltas, ao reparar em que, no decurso da era Heian, era passatempo de cortesãos, em que o segundo compositor procurava coroar os três versos do primeiro; mas, na verdade, o renga era muito praticado nos mosteiros budistas e entre poetas populares, e, afinal, podia desencadear-se quase sem fim  --  um dos seus estilos tornando-se conhecido por haikai, no sentido de ligeiro, livre, simultaneamente, de regras restantes das composições chinesas e de temas sempre sérios;

 

 2- o hokku, que é esse terceto inicial, dará origem a outra forma poética, largamente praticada ao longo de séculos, e hoje internacionalmente reconhecida e imitada, ainda que só no XIX lhe seja atribuído o nome de haiku; o primeiro terceto pode pois ser glosado como mote, mas ir-se-á chamando haikai ao que, originalmente, mais não é do que a autonomização do hokku, isto é, a "promoção" do primeiro terceto de um tanka renga a poema independente.  Certo é que se confunde muitas vezes a designação haiku com hokku ou haikai... Mesmo entre poetas e letrados nipónicos surgem, em matéria literária, hesitações e confusões. Para melhor entenderes esse passo de tanka-renga-haikai (haiku), vou buscar ao Shin Kokinshu (Nova Antologia de Poesia Antiga e Moderna, de 1205) um poema de Minamoto no Toshiyori, que traduzo do japonês, com o indispensável auxílio do "meu" dicionário e do "meu" guia de regresso aos pertinentes caracteres sino-japoneses:

 

          furusato wa

          chiru momijiba ni

          uzumorete

          noki no shinobu ni

          akikaze zo fuku

 

   na casa natal / caem as folhas do bordo /  cobrem o chão todo / e vão  prender-se aos beirais / ao sopro do outonal  vento...

 

   Lê, Princesa, os romaji à portuguesa, mas abrindo as vogais todas, e contarás, por esta ordem, versos de 5-7-5-7-7 sílabas. Os três primeiros somam 17 sílabas e, por si, formam aquilo a que se pode chamar um haiku. Os dois últimos, acrescentados por um segundo compositor aos três primeiros, vão formar um renga. Mas se este mesmo poema tivesse sido escrito por idêntico autor seria simplesmente um tanka, com as suas 31 sílabas.

 

    A escrita japonesa faz-se em kanji, ou caracteres chineses, em hiragana, ou caracteres chineses simplificados e cursivos, silábicos e fonéticos, e katakana, isto é, kanji cortados, constituindo um silabário fonético que serve para escrever nomes estrangeiros. Kanbun apelida qualquer texto em chinês clássico, composição literária, mesmo japonesa,  escrita em chinês. É uma prática de escrita, reservada a letrados. De facto, só pelo século VI se começou a escrever no Japão: em letra chinesa, pois do Império do Meio viera a escrita então introduzida no do Sol Nascente. Aliás, os letrados nipónicos começaram por ler e escrever textos chineses, passando depois a utilizar a escrita sínica para redigirem textos em japonês, desde documentação comercial a histórias, lendas e narrativas constantes da tradição oral da cultura japonesa. Progressivamente, foram-se simplificando caracteres chineses, de modo a constituir-se um silabário fonético e a introduzir partículas próprias à sintaxe nipónica. Dos milhares de caracteres chineses, a gramática e a escola japonesas retiveram apenas 1850 - 881 dos quais considerados básicos e obrigatórios - mais uns tantos apenas utilizáveis em alguns nomes ou apelidos pessoais. A talho de fouce, posso acrescentar que também em coreano, que desde o século XVI inventou uma escrita própria, muito diferente da chinesa e das japonesas, os nomes que lemos em cartões de visita, por exemplo, se escrevem em caracteres sínicos...

 

   Como aliás anteriormente te disse, Princesa, cada caracter chinês tem, pelo menos, duas leituras fonéticas possíveis em japonês: a on-yomi (leitura china) e a kun-yomi (nipónica). Mais ainda: um kanji, a compor uma palavra, pode esquecer o seu significado de ideograma, para reter tão só um seu valor fonético. Tal como pode reter ambos: assim, kanbun (nome dos primeiros escritos - em caracteres sínicos, claro, no Japão) - escreve-se com dois kanji, o primeiro (kan) querendo dizer chinês e o segundo (bunescrito (ou composição literária).  As pronúncias são, aqui, sínicas, tal com em kanji, que quer dizer chinesa letra. Bungaku significa literatura, já que bun é o escrito e gaku a ciência, ensino ou aprendizagem da escrita. Ora, nos primórdios da literatura no Japão - ainda no período de Nara - a escrita chinesa e a sua literatura eram apanágio e privilégio dos letrados, apesar de senhoras da corte imperial, já na era Heian, como a célebre Murasaki, autora do Genji Monogatari, terem acesso a elas. Mas, para escreverem (e eram relativamente correntes os diários, cartas, bilhetes e poemas, até porque mandavam as regras de uma corte polígama - onde se insinuavam clandestinas promiscuidades - que só aos maridos as mulheres pudessem mostrar o rosto, pelo que falavam com amigos e amantes, por detrás de um biombo ou outra divisória, e comunicavam, o mais das vezes, através de flores e bilhetes poéticos) recorriam ao silabário hiragana, não só porque esse lhes era autorizado, mas também porque lhes facultava uma expressão mais autêntica, fluente e matizada, do pensarsentir japonês... Aliás, desde muito cedo, os próprios caracteres sínicos foram sendo utilizados para se lerem à japonesa, isto é, sendo ideograma, o mesmo caracter podia ser pronunciado consoante a palavra chinesa correspondente, ou a sua equivalente nipónica, donde as leituras on-yomi e kun-yomi... E logo o idioma japonês se apropriou dos mesmos caracteres para reproduzir sons em textos. Explico: o ideograma chinês shu (mão), poderá ler-se em japonês, com o mesmo significado, mas também como simples sinal fonético na composição de outra palavra. Quando, para tal função, ele é mais simplesmente desenhado ou caligrafado em hiragana ou, mais tarde, em katakana, o fonema serve exclusivamente a língua nipónica escrita, que assim se emancipa do colete da letra chinesa.   

 

   Da primeira antologia escrita da poesia japonesa, a Man´yoshu, já te falei há tempos, ou sobre ela escrevi alhures. Man diz dez mil, yo folha de papel, shu é sufixo para contagem de poemas, posso pois concluir que se fala de dez mil folhas de poemas ou antologia. Na verdade, tal coletânea de poesia japonesa anterior ao ano 759, contém, em 20 livros, 4516 waka, dos quais 4200 tanka (poemas curtos), 265 choka (poemas longos) e mais poucos poemas chineses e notas nesta língua, em também se escreveu o título da compilação. Curiosamente, o caracter usado para folhas (yo) pode, em leitura japonesa, querer dizer, era, reino, geração... Mas de antologias, espírito e inspirações da poesia nipónica te falarei noutra carta. Tal como voltarei ao Genjimonogatari, obra prodigiosa, escrita por uma mulher, e que tanto nos diz da vida da corte imperial e da estética da era Heian, período em que a capital que Kyoto foi, enquanto residência dos imperadores, durante um milénio, acolhia também o governo... O vício do esteticismo e o relaxamento dos costumes da corte fizeram todavia que este acabasse por se instalar noutras partes, começando por Kamakura, onde surgiu o primeiro shogun, Minamoto no Yoritomo em 1192...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira