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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Entre muitos poemas e outros temas, a grande poeta Izumi Shikibu (970-1020?), por cuidar que ia morrer, compôs dois tanka: descobri um deles na antologia Goshuishu, o outro na Shuishu. Esta compilação, que abrange mais poetas, é de 997, anterior à outra, que data de 1086, mas os poemas a que me refiro foram provavelmente escritos na ordem inversa. O mais antigo, por ordem cronológica de publicação, na Shuishu, reza assim:

 

          Kuraki yori

          Kuraki michi ni zo

          Irinubeki

          Haruka ni terase

          Yama no ha no tsuki

 

   Na noite escura / por caminho de negrura / devo agora entrar / alumia-me de longe /  lua da franja do monte! - traduzo eu...

 

   O primeiro, por ordem cronológica de composição, mais tarde inserido na Goshuishu, lamenta-se assim:

 

          Arazaramu

          Kono yo no hoka no

          Omoide ni

          Ima hito tabi no

          Au koto mo gana

 

   Ao cuidar que morro / e me aparto deste mundo / quero levar a lembrança / da derradeira visita / que o meu amor me fizer...

 - será, mais ou menos, isto, no sentimento do ocidental que sou.

 

   Se me perguntasses, não saberia responder-te se, na verdade, me ocorreram estes dois tanka pela ideia da morte ou se pela do amor, pelo rasgão da despedida ou pelo vazio que o nirvana pode ser. Ambos, todavia, me remetem para aquele haiku do Kobayashi Issa, quase nove séculos depois, a falar-nos de tempo de despedida, que te enviei em carta anterior. O mesmo haiku, tê-lo-ia, mais literalmente, traduzido assim: É tempo de orvalho / e o tempo de orvalho corre / corre todavia...E ambas as versões portuguesas me dizem o mesmo...

 

   A era Heian, quando Heiankyo designava ainda a capital que se chamaria Kyoto, será certamente aquela em que as mulheres mais se revelaram como escritoras, talvez por lhes ser censurada a escrita sínica, e ainda, de outro ponto de vista, por lhes ser negada a possibilidade de exercerem cargos políticos ou administrativos, mesmo quando eram herdeiras ricas e os maridos vinham habitar a casa da família delas... É interessante observar como o regime sócio económico da nobreza procurava conservar pelas mulheres a fortuna familiar, mas atribuir exclusivamente aos homens o direito e a obrigação de subir, pela carreira política ou administrativa, na escala social. Assim se completavam ambas as contribuições para um matrimónio bem sucedido... O clã dos Fujiwara, que longamente dominou o governo durante a era Heian, conseguiu ir casando as suas filhas com membros da linhagem imperial, e ir assim assegurando a colocação dos varões da família, parentes próximos de imperatrizes, mulheres e mães de imperadores, em postos chave da administração do estado. Contrariamente a um caso narrado em Os Contos de Genji, que fala dos aposentos de três mulheres na mansão do marido comum, não há qualquer documento histórico que permita afirmar que, com exceção do imperador (esse sim, habitava o seu palácio, com seu harém), tal fosse possível: mais ortodoxamente, era na casa da primeira mulher que o noivo residiria, sem que tal o impedisse de tentar seduzir damas da companhia dela ou suas criadas. Mas também podia acontecer que a mulher cometesse adultério que, aliás, poderia não ser punido ou, quanto muito, ser apenas invocado como razão de divórcio. Na sociedade aristocrática de Heian, era corrente a endogamia, sendo os matrimónios celebrados por acordos entre famílias e servindo os seus interesses económicos, sociais e políticos. As normas de prevenção do incesto definiam-no apenas entre ascendentes e descendentes diretos, ou irmãos e meio irmãos. Perguntar-me-ás, Princesa de mim, o que terá este parêntese "socio familiar" a ver com a poesia de que vimos falando. Para além da influência directa do ambiente, costumes e regras de uma corte sobre a requintada cultura das letras e das artes (inclusive as decorativas), vemos que vai progredindo o desenvolvimento de uma literatura nipónica, que se emancipa da chinesa. É à Kokin waka shu, antologia antiga, publicada como volume 8º do Nihon koten bungaku taikei (compêndio de literatura clássica japonesa), de Saeki Umetomo (Tokyo, Iwanami shoten, 1959) que The Cambridge History of Japan (volume 2, Heian Japan, Cambridge University Press, 1999) vai buscar os elementos de informação do texto que seguidamente dela te traduzo, por me parecer esclarecedor:

 

  O waka começou a reaparecer em público por volta de meados do século IX. O seu regresso surge associado a outros desenvolvimentos, entre os quais a revitalização e aperfeiçoamento de interesses e valores tradicionais; o ressurgir do princípio hereditário, que diminuiu a utilidade de uma educação chinesa; o aperfeiçoamento dos kana; e a propensão crescente das grandes famílias à procura do poder através das suas representantes femininas no harém imperial, cada uma das quais era a potencial mãe de um manipulável infante soberano. Em especial, os edifícios em que as consortes viviam, coletivamente chamados o palácio traseiro (kokyu), iam-se tornando em centros de atividade musical, artística e literária. Parece que foi a partir desses apartamentos luxuosamente mobilados que os biombos decorados com a caligrafia de poemas japoneses se foram espalhando por outras partes do palácio (por volta de 850-900), tal como o gosto dessas senhoras por elegantes compitas (lembras-te, Princesa, dos "jogos florais" da nossa juventude?) que mais contribuiu para o aparecimento dos concursos de poesia, um dos maiores fenómenos culturais da era Heian. Houve vivo incremento da procura de waka formais durante os últimos quinze anos do século IX. Os poemas japoneses em biombos (byobu uta) ganharam exposição e fama, multiplicaram-se os concursos de poesia, e os waka começaram a suplantar os kanshi em banquetes e outras funções oficiais. Poetas quase profissionais, dos quais Tsurayuki terá sido o mais estimado, surgiram das filas da nobreza menor, servindo-se dos seus talentos poéticos para forjarem laços com os grandes, e obrando para elevar o estatuto do verso nativo. Bem cedo, no século X, tal atividade culminou na compilação da primeira antologia de waka, a Kokin [waka] shu, editada por Tsurayuki e mais três poetas, burocratas menores, e submetida ao trono por volta de 905.

 

 

   Esta antologia de poesia japonesa, a primeira compilada por ordem de um imperador, encerra 1111 poemas, quase todos waka, e acabará por ser inspiradora e modelo da lírica nipónica por mil anos... O prefácio, ou apresentação, por Ki no Tsurayuki, começa assim: A poesia japonesa tem por semente o coração humano e cresce por numerosas folhas de palavras. Nesta vida, muitas coisas tocam os homens:  tentam então exprimir os seus sentimentos por imagens desenhadas pelo que veem e ouvem. Que homem não irá compor poesia, ao ouvir o canto do rouxinol entre as flores, ou o grito da rã na água? A poesia é algo que, sem esforço, move o céu e a terra e leva à piedade os invisíveis demónios e deuses; que torna doces os laços entre homens e mulheres; e que pode confortar os corações de briosos guerreiros.  Depois, Tsurayuki tenta esboçar as circunstâncias inspiradoras dos poetas selecionados, muitos deles anónimos : quando olhavam para os rebentos florais espalhados pela manhã primaveril; quando em noite outonal escutavam a queda das folhas; quando suspiravam sobre a neve e as ondas que em cada ano se sucediam; quando mergulhavam em pensamentos sobre a brevidade da vida, ao ver o orvalho na relva do chão ou a espuma na água do mar; quando, se ontem eram altivos e esplêndidos,  hoje caíram da fortuna na solidão; ou quando, depois de ternamente amados, foram esquecidos.  

 

   Estes temas são incessantemente retomados na poesia e na pintura japonesa: têm intrinsecamente a ver com o sentimento e o entendimento da vida e das almas das pessoas pela contemplação das estações do ano, movimento do mundo, da efemeridade da aparência, e de um nirvana que é, paradoxalmente, vazio e esperança. Certas exigências de tal contemplação acentuar-se-ão pela influência Zen, que muitos autores estimam que acelerou a evolução do haikai no renga, que o próprio Basho praticou até nos seus derradeiros anos, para o mais sintético haiku, que aquele mestre ainda chamava simplesmente haikai, do qual dizia: o haikai é apenas o que tenho a frente dos meus olhos... Um instantâneo: naquele caminho / a malva p´lo meu cavalo / foi assim comida. Ou ainda essoutro, famoso: nesta velha charca / a súbita rã mergulha / só um som de água... E aquele que dizem ter composto antes de morrer: viajo doente / e meus sonhos pelos campos / soltos se aventuram...

 

   Basho é alcunha que ao poeta foi posta, desde que decidiu viver, pelos seus 36 anos, num eremitério chamado Basho-na, ou seja, ermida da bananeira. O seu nome era Matsuo Munefusa, sendo estes Matsuo uma família de bushi (guerreiros) e diz-se que Matsuo Yozaemon, pai de Kinsaku (tal era o nome de infância de Munefusa) era um musokunin de Iga. Jiro Taniguchi faz dele uma personagem fugaz do seu romance épico Kaze no Sho (O Livro do Vento), com enredo e texto de Kan Furuyama, que nos conta a história lendária de Yagyu Jubei, grande mestre da esgrima japonesa. O pequeno Kinsaku, então com 7 anos apenas, depois de assistir à morte de seu pai, a caminho de um encontro com Jubei, para lhe transmitir informações secretas, percorre sozinho uns bons quilómetros, sobre a neve fria, e ele mesmo dará a informação ao samurai. Assim se espalhou a lenda de que o livro de Basho, O Caminho Estreito para o Interior, teria sido inspirado por uma missão secreta. O título da obra, em japonês, é Oku no Hosomichi, literalmente "caminho (michi) estreito (hoso) do interior (oku)", sendo que o kanji oku, com doze traços, tanto pode dizer o interior de uma região ou país, como as profundezas, ou o íntimo do nosso coração. O mais provável, todavia, é que a obra se refira a uma viagem do poeta, acompanhado, pelo seu discípulo Sora, a distritos da ilha de Honshu, situados a norte de Tokyo. A edição com o título Oku no Hosomichi será a última de uma obra do autor, em vida deste. Vale a pena deixar-te aqui um trecho desse livro de viagem: Os meses e os dias são os viajantes da eternidade. Os anos que vêm e vão também são viageiros. Aqueles que embarcam suas vidas flutuantes ou criam velhos cavalos que os conduzem estão para sempre em jornada, e as suas casas são onde os levarem as suas viagens. Muitos dos homens de idade morrem pelo caminho, e eu mesmo, em passados anos, fui incitado, pela visão de uma nuvem solitária ao sabor do vento, a incessantes cismas de vagabundagem... Passei o último ano a cismar ao longo da costa marítima. No Outono voltei à minha casinha sobre o rio e limpei as minhas teias de aranha. Devagarinho, o ano chegou ao fim. Quando a Primavera chegou e havia cacimbo no ar, lembrei-me de atravessar a Barreira de Shirakawa, até Oku...- Esta Barreira, situada hoje no Shirakawa Seki no Mori Koen (Parque Natural da Floresta da Barreira de Shirakawa), a noroeste e não muito longe de Tokyo, de fácil acesso pelo comboio Shinkansen, fora fortificação em tempos idos levantada para impedir infiltrações, para sul, de bárbaros do norte da ilha de Honshu. Estas minhas cartas não sendo compêndios de coisa alguma, mas apenas confidências de lazeres ocupados, indolentemente te confesso que a leitura, ontem de manhã, desse passo do Caminho Estreito me trouxe à lembrança a abertura do Florbela Espanca, da Agustina: Os sábios experimentados da ciência da morte sabem que os moribundos têm de ser mantidos despertos e em plena consciência dos sintomas do seu fim. Doutro modo, eles não poderiam reconhecer a Luz Fundamental na sua realidade.  A vida dos poetas assemelha-se a esse estado de confrontação em que o espírito se equilibra como uma agulha sobre um delgado fio; movida pelo sopro dos desejos egoístas e a força do eu, a agulha cai e a vida é arrastada de novo para a sua roda de padecimentos. Bardo significa entre dois estados, quer dizer, situação crepuscular e incerta que oscila entre a morte e o renascimento. Os lamas chamam bardo ao estado imediato à morte; o corpo bárdico começa então a usar as suas faculdades supranormais e pode atingir diversos graus de uma nova existência. O bardo celta, ligado à função sacerdotal, manifestava-se pela poesia lírica ou heroica e provavelmente teve origem na escola búdica, que ensina que tudo o que o homem pode aprender pode crer também. As imagens semeadas no seu pensamento durante a vida são fecundas no espírito que o acompanha na morte. Esta observação, escrita há mais de quarenta anos, traz-me, hoje ainda, insuspeitamente, o brilho da inesperada argúcia de Agustina Bessa-Luís. Pode servir de chave para a leitura de alguns dos poemas nipónicos que tenho vindo a referir-te... Reparo em que nunca mais me calo, parecem infindáveis as minhas cartas: sem o talento nem a graça do Nemésio (se bem me lembro), desfio, melhor, deixo desfilarem em mim memórias, pensandossentindo que, se tudo o que o homem pode aprender pode crer também, também em tudo aquilo de que me posso lembrar me posso encontrar. Como contigo, Princesa, porque te conto. E com todos esses, homens, livros ou poetas, de que falo ou cito, só porque me aparecem sem que eu os tenha mandado vir... Talvez seja isso uma velhice feliz. Com muita companhia.

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira