Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O pequeno Teatro Luís de Camões, na Calçada da Ajuda em Lisboa, datado de finais do século XIX e em fase de recuperação, constitui exemplo de certo modo percursor dos chamados Teatros de Bolso que hoje marcam numerosas cidades e vilas por esse país: e é interessante desde já referir o caráter, insista-se, percursor desta iniciativa, que, curiosamente, se ficou a dever a um comerciante local, João Açucar de nome.
A inauguração oficial do Teatro Luís de Camões ocorre em 10 de junho de 1880, no quadro das comemorações do tricentenário da morte do poeta. A peça foi “Camões e o Jau” de Casimiro de Abreu. Em qualquer caso, insistimos, surge percursor, dos pequenos teatros (e hoje até cineteatros) que existem um pouco por todo o país. Só que este, particularmente pela reduzida dimensão e lotação, é percursor de o que chamamos hoje, bem ou mal, Teatros de Bolso, não obstante constituir um edifício autónomo.
José Augusto França, ao historiar a construção do palácio da Ajuda, esclarece que “nenhuma igreja (só uma capela), nenhum grande teatro estava previsto no plano: o complexo arquitetónico tradicional cedia lugar a uma definição mais civil ou mais cívica, e portanto mais moderna, de residência régia” (cfr. “Arte em Portugal no Século XIX, vol. I Bertrand ed. pág.95 e segs.)
E no entanto, o Teatro Luís de Camões da Ajuda marcou, ao longo destes 137 anos, com os altos e baixos inerentes, uma certa “política” cultural na época fortemente descentralizada, até no ponto de vista administrativo. Belém era na época concelho. E não obstante a relevância óbvia que decorria inclusive da proximidade do Palácio, a construção e exploração de um pequeno Teatro aberto ao público assumiu um significado específico, sendo certo entretanto que o Teatro do Palácio da Ajuda ou Casa da Ópera de Belém foi inaugurado em 4 de novembro de 1737 segundo projeto de Bibiena, que seria autor também do Teatro da Ópera do Tejo, este destruído pelo terramoto de 1755.
Muito diferente é desde a origem o Teatro Luís de Camões. A sala reproduzia, na sua dimensão de pequeno teatro, sobretudo pequeno para a época, a estrutura sócio-económica de exploração de espetáculo da época de fundação: plateia, frisas, camarotes, tribuna, num dimensionamento adequado à dimensão percursora, insista-se, de um teatro de bolso, nesse aspeto também percursor.
Em 1899, o Teatro Luís de Camões passa a servir de sede ao Belém Clube. E entretanto, ao longo destes mais de 100 anos, o historial do Teatro assinala uma tradição de iniciativas culturais e de intervenções artísticas dignas de registo histórico.
Lá se estreou e lá se despediu do público Adelina Abranches. Lá atuaram nomes históricos do teatro luso/brasileiro, como Rafael Alves, João Villaret. Auzenda de Oliveira, Sales Ribeiro, Mirita Casimiro, Procópio Ferreira, Bibi Ferreira…
E lá se estreou o grande cantor e encenador de ópera Tomás Alcaide, evocado, entre outros numa placa inaugurada em 1953.
1. A expressão surrealismo popularizou-se e entrou no vocabulário quotidiano sob a forma de um adjetivo: surreal. Estando para além do real, expressa o irracional, a desrazão, o fantástico, o oculto, o absurdo, o estranho, o excêntrico, o esoterismo, a alucinação, resultando da interpretação da realidade à luz do sonho, da imaginação e dos processos psíquicos do inconsciente.
Movimento literário e artístico nascido em Paris, em 1924, sob a teorização de André Breton no Primeiro Manifesto do Surrealismo, onde surge como: “um puro automatismo psíquico pelo qual se pretende exprimir, quer verbalmente, quer por escrito, quer por outro meio seja ele qual for, o verdadeiro funcionamento do pensamento. Um ditado do pensamento, sem que a razão exerça sobre ele qualquer controlo e para além de qualquer preocupação estética ou moral”.
Se como influências e modelos culturais podemos recuar às alucinações de Bosch, a Rimbaud, Lautréamont, ao simbolismo e alguns pintores expressionistas, é o dadaísmo e a metafísica de Chirico que agarram mais de perto, como precursores mais diretos, os ideais surrealistas, via associações e metáforas incoerentes, eventos estranhos, resultados absurdos, delirantes, extravagantes, sombrios e viagens excêntricas. Na pintura, por exemplo, o surrealismo foi beber inspiração aos ready-made de Duchamp e aos Interiores Metafísicos de De Chirico.
Mas enquanto o movimento Dadá era totalmente destruidor, negativo e nihilista, o surrealismo começou por ser um movimento comprometido politicamente com o partido comunista, entendendo que a missão dos intelectuais revolucionários num regime capitalista era a de condenar os valores burgueses, servindo os mesmos objetivos que os revolucionários políticos.
Mas existia uma contradição insanável entre o espírito boémio, libertário e liberticida, entre uma irrestrita liberdade de expressão, de pensamento e de imaginação dos surrealistas e o dogmatismo, autoritarismo e disciplina exigida pela ortodoxia cultural comunista. A aliança não foi duradoura, havendo cisões, dissidências, excomunhões e ruturas. Dos grandes escritores surrealistas apenas Louis Aragon permaneceu sempre fiel ao partido comunista.
O essencial, para os surrealistas, era explorar o mundo novo revelado pela psicanálise baseada na teoria psicanalítica de Freud, defendendo a autonomia da imaginação e a capacidade do inconsciente se exprimir sem limites, baseando a literatura e a pintura na associação de imagens produzidas pelo subconsciente dos artistas. Uma liberdade total de imaginação e expressão permitiu uma imensa diversidade e que este movimento não apresentasse um caráter unitário, com as suas influências anarquistas, marxistas e freudianas, em que estas últimas predominaram.
O papel do inconsciente já tinha sido explorado por artistas como Kandinsky, Malevitch e Mondrian, ao pretenderem provocar uma sensação de fantasia, quimera, sonho e utopia na nossa mente com o abstracionismo das suas telas. Só que os surrealistas queriam ir mais longe, exprimindo o seu subconsciente sem qualquer intervenção, limitação ou censura, confrontando-nos com imagens e palavras chocantes, indecorosas, macabras, subversivas, expondo cruelmente a depravação do nosso íntimo e das nossas mentalidades, destapando pensamentos e segredos íntimos que haviam sido decalcados e proibidos por uma questão de decência e pudor.
Embora apoiando ideias fundamentais do dadaísmo, como a destruição do sistema e a negação do fazer artístico e da arte pela arte, havia que ir mais longe, havendo necessidade de integrar, no que de original e contundente tinham os dadaístas, conceitos freudianos sobre o desempenho do inconsciente na conduta humana, que se revelava através dos sonhos e da escrita automática e espontânea da consciência. Superava-se, assim, o dadaísmo, já esgotado, pela adesão às descobertas da psicanálise e pela afirmação da importância do sonho na criação artística.
2. Afirmando que o surrealismoé um meio de libertação do espírito, os surrealistas representaram cenas absurdas, fantásticas, grotescas, macabras, sonhos e alucinações chamativas em excentricidade e insolência, libertando-se de tabus vigentes no campo da sexualidade, de interferências racionais, morais ou estéticas.
Os surrealistas franceses, por exemplo, criaram o jogo Cadavre Exquis (Cadáver Esquisito), em cada um dos intervenientes escrevia o que desejasse numa folha de papel em branco, que dobrava, ocultando o que escreveu. Entregava-a, parcialmente dobrada, ao segundo jogador, que escrevia o que queria, dobrava-a e entregava-a ao terceiro jogador, e assim sucessivamente, até ao fim da folha. Desdobrado o papel, as linhas e frases desunidas eram lidas por todos, desde o cume da folha, como se fossem uma única peça criativa. Seguia-se uma análise, por entre considerações cuidadas, humor e gargalhadas relacionadas com as associações absurdas obtidas, em comunhão com a real personalidade dos jogadores, tida por convincentemente manifestada. Dado que a primeira frase, da primeira vez que se jogou, foi “O cadáver esquisito beberá o vinho novo”, o nome do jogo resulta do primeiro dos cadáveres esquisitos conhecidos. Que viria a ser recuperado pelos surrealistas portugueses, a vários níveis, como o exemplifica a antologia de Mário Cesariny de Vasconcelos. Emergem, também aqui, influências da pintura metafísica, perante a ideia de desenvolver e misturar temas ao acaso. Bem como do dadaísta Tristan Tzara ao propor que se recortassem palavras de um texto de jornal e se juntassem ao acaso, tirando-as de um saco onde foram guardadas.
A passagem da folha escrita para a tela era mais complexa e menos imediata. Joan Miró é tido como um dos artistas que melhor o conseguiu, ao interiorizar o surrealismo através das suas imagens automáticas. A sua tela Carnaval do Arlequim, é um exemplo, com as combinações e formas aleatórias pautadas por uma imaginação infantil não racional, despida de uma estrutura explícita, em que bichos, peixes, insetos, balões, serpentinas, modelos biomórficos, notas e instrumentos musicais flutuam no ar e andam pelo chão, em que o protagonista é uma bola com bigodes (rosto), cujo pescoço comprido se desdobra numa guitarra decorada com a estampa axadrezada de um arlequim, numa hipotética festança de um dia de carnaval, em que não falta um inesperado olho aberto. Eis um universo mágico e lírico de códigos, signos e associações surreais.
Max Ernst exemplifica a sua produção automática na tela Célebes, em que peixes nadam no céu, um gigante elefante cinzento, tipo máquina, lembra um tanque de guerra, monopolizando a pintura, enquanto uma figura feminina decapitada levanta o braço direito na direção da tromba, em que uma coluna metálica, à direita, apresenta conotações fálicas.
Ernst viria a realizar, em 1935, as suas primeiras frottages, associadas à escrita automática, que implicava transferir a impressão de superfícies texturadas para o papel, friccionando-as com lápis ou lápis de cera, daí resultando formas nodosas ou espinhosas que representavam coisas estranhas, produzindo imagens tidas como uma forma de surrealismo automático. Mason realiza os seus primeiros desenhos automáticos e inventa os quadros de areia.
Porém, outros artistas que aderiram ao surrealismo, recriaram a atmosfera de indefinição e de uma arte livre criadora do desejo, sugerida e teorizada por André Breton.
Foi quando, movida pela irracionalidade, avancei a correr atrás do homem que vendia punhais. Em segundos olhei para todos os lados e vi todos e ninguém. A pesada porta do silêncio perdido avançava para mim e nem tentei uma entrada precária pela blindada fresta luzidia dos pregos de metal. Fatalmente o poder da Medina seduzia-me e apavorava-me e encarcerava-me. Estava perdida à porta de uma porta. Num instante sorvera o discorrer para dentro do senso das especiarias; voava num tapete até ao sensual local dos banhos de rosas argalistas. Desconhecia porventura o destino do jogo que jogava impotente, entregue ou não, não sabia. O tempo não existia, mas antes um poder sábio, hierárquico, precedente à noção.
O que vivia em segundos era um movimento não isento de passividade, nem de agressividade, era algo que se revelava numa explosão de sons e cheiros e movimentos do mundo da morte e do mundo da vida.
Os dentes enormes do homem do punhal sorriram-me num excesso, assediando-me com preços obstinados, perguntando-me, impacientemente, quanto ofereceria eu por dois deles. Então, naquilo que senti como sendo a penumbra de um hemiciclo, fez-se luz, de súbito. A multidão abrira espaço, era uma possibilidade-limite e o teu olhar ali tão perto dos meus olhos agora, e já a memória em mim dispunha daquela liberdade separada que me envolvera no perder-me no poder da Medina.
Local sem corpo, local informe e todo ele torneado. Local pensante de uma inteligência infalível. Local sem escolhas livres e no entanto frémito, emoção, afeto todo ele muito além da simples vontade de o pensar.
O poder da Medina prende-nos às essências dos mundos e a trança que nele nos enrola e nos perde é um antigo comportamento em nós.
Sob um calor que nos desencaminha, o vai-vem de uma passagem recomendava que uma distância prudente fosse preservada. No entanto, os números e símbolos e cheiros, destinados a permanecerem vedados, permanecerão sempre em densos mistérios que não nos serão dados a conhecer. E no entanto, também ali, nós e o nosso princípio, como se pedra e pássaro e beijo e caos e incitação num balanço de opostas forças nos segurasse numa estranha mistura de tempos do sentir.
'Painting expresses my happy side, the one who is at one with the universe.', Etel Adnan
A pintura de Etel Adnan (Beirute, 1925) revela o seu amor pelas paisagens, pelas montanhas, pelo mundo concreto através das cores vivas, espessas mas planas.
As pinturas, em telas pequenas, são feitas de uma vez só. Adnan trabalha sobre a tela como se de uma folha de papel se tratasse - em cima de uma mesa dispõe a tela e uma espátula substitui o pincel. A tinta é aplicada em grande quantidade e na sua cor mais viva e pura.
'Adnan started as an abstract painter using large squares compactly juxtaposed or floating on a background, or else with smaller squares composing a line that divided the area of the canvas or floated somewhere across its surface. Among these hermetic squares, there was always a red one. It was as if the rest of the composition emerged from this red square. Around it the world - its lines of forces, the large picture - organised itself.', Simone Fattal
No texto 'Painting as pure energy' de Simone Fattal, lê-se que Adnan consegue convocar e resumir o mundo físico na tela. Numa só tela consegue ler-se o espírito do lugar através dos quadrados pintados compactos, bem delimitados e herméticos. O mundo representado parece ser visto sempre de longe, porque só assim se revela o sentido total do que foi percecionado.
'She is a person in the world. Much as she talks about the social aspect of the universe in her writing, she talks about the physical beauty of the universe in her painting.', S. Fattal
Não há presença humana nas suas pinturas a óleo - só o mundo que ela vê, colorido, só a presença física e terrena das montanhas, das colinas, dos rios, do mar e do sol.
Não há hesitação na escolha das cores, não há hesitação nas massas de tinta que estão lado a lado. Adnan encontra a forma no momento em que aplica a cor. É uma pintura decisiva que não abre espaço entre a intenção e a materialização. A pintura está lá desde o primeiro momento que começa a existir - assim que uma cor é pintada essa é a cor definitiva. A clareza da ideia reflete a clareza da execução da pintura.
Por isso, as pinturas de Adnan são revelações simples e sucintas sobre um determinado momento de um lugar do mundo real.
'When I die, the universe will have lost its best friend someone who loved it with passion.', Etel Adnan
1. Por maior que seja o meu gosto por efemérides, juro à fé de quem sou que não me apanham a discutir os méritos ou deméritos relativos de Sartre e de Aron. Para esse peditório já dei e até julgo que generosamente. Voltar a ele, a pretexto de centenários, nem com luvas de amianto. Embora não resista a divertir-me com títulos como "o intelectual dos intelectuais" ou "o homem que nunca se enganou". Cala-te boca... Pelo contrário, Júlio Verne puxa-me o pé e puxa-me mesmo por aí acima de qualquer deles. Também é verdade que, no caso dele, se não comemoram berços mas sepulcros, pois que o homem, se fosse vivo, (Aquário como eu, nascido no dia seguinte ao dia dos meus anos) contaria 177 anos bem contados. 77 tinha ele quando morreu, em Amiens, a 24 de março, ainda Sartre nem nascido era e contava Aron apenas dez dias.
2. Antes de me ir à memória, uma divagaçãozinha gramatical sobre mistérios da língua portuguesa. Tal como nunca ninguém me conseguiu explicar porque bulas a proposição a se contrai ou descontrai do artigo dos artigos definidos a ou o em nomes de povoações ou de países, também me é identicamente misteriosa a razão ou razões por que se "aportuguesam" alguns nomes próprios estrangeiros, conservando-se no original a maioria deles. Dou exemplos, para ser claro. Porque é que se diz "ir a Cascais" e "ir ao Barreiro", ou "ir a França" e "ir ao Japão"? Depende das consoantes por que começa o substantivo próprio? Não depende nada, já que igualmente se diz "ir à Finlândia" e "ir a Java", "ir ao Cadaval" ou "ir a Braga". Também nada tem que ver com vogais no início do substantivo. Diz-se "ir à América", mas ninguém diz "ir à Almada", diz-se "ir a Évora" mas nunca ouvi dizer "ir a Estónia". Pura e simplesmente, não há regra ou eu nunca conheci José Pedro Machado que ma explicasse. Mas dá que pensar que digamos todas da mesma maneira ou, quando alguém troque (por exemplo: "ir à Espanha" ou "ir à França") que logo lhe identifiquemos a condição social, já que só o "povo" aglutina assim em vez de assado.
À exceção de alguns puristas, sobretudo do século XIX ou da primeira metade do século XX, não é de bom tom, em português, "aportuguesar" nomes de gente célebre. Não me estou a ouvir, nem estou a ouvir ninguém que conheça, a citar Honorato de Balzac, Henrique Stendhal, Guilherme Shakespeare, Luís de Beethoven, José Verdi, João Bellini, Marcos Rothko ou Frederico Murnau. Mas sei que faço figura de pedante se disser Michelangelo em vez de Miguel Ângelo, Raffaello em vez de Rafael, Victor Hugo (com acento no o de Victor e no o de Hugo) em vez de Victor Hugo, como se estivesse a falar do matemático. Pior ainda (muito pior) se estiver a desfiar nomes de reis. Louis XIV, Henry VIII ou Wilhelm II, não se espera ouvir nem da boca do mais pintado. Por que sim ou por que não quem saiba que mo explique, que eu só sei responder como se responde aos "porquês" das crianças: "por que sim" e está tudo dito sem se dizer nada.
Tanta conversa para quê? Para observar que, além do autor de Les Misérables (e, neste caso, era preferível escrever Os Miseráveis) Júlio Verne é o único escritor do século XIX a que raríssimos portugueses chamam Jules Verne. A imensa popularidade tem que ver com isso, no caso de Hugo como no caso de Verne? É bem possível. Eles foram dos pouquíssimos que foram quase integralmente traduzidos no seu tempo e lidos por portugueses que não sabiam palavra de francês, coisa que no século XIX, e até cerca de 1960, era sinal de incultura grassa. A "sociologia cultural", embora não explique Miguel Ângelo ou Rafael, pode explicar o Júlio Verne, que se pegou aos espíritos cultivados por contágio dos baixíssimos ou dos pré-adolescentes que em tempos idos o liam.
3. Júlio Verne, assim o conheci eu também, entre os meus 8 e os meus 12 anos, mais coisa menos coisa. Em casa dos meus avós, como em casa dos meus pais, havia prateleiras de estantes cheias, com as edições que começaram por ser de David Corazzi, subnominadas "imprensa horas românticas", e passaram depois para a Bertrand (Aillaud e Bertrand), mantendo-se idênticos o formato, a encadernação, o encarnado (às vezes o verde) e as gravuras da capa: uma bananeira com uma serpente enroscada no caule; um leão; um navio naufragado com um vago vulcão ao fundo; e um balão pelos ares. Para além do título da obra, lia-se em maiúsculas itálicas, a quase toda a altura, a expressão Viagens Maravilhosas.
Por uma dessas edições (de 1888 - mas já era a terceira) conto eu trinta e dois volumes já editados nesse ano em português, sendo que vários deles eram duplos ou triplos (A Aventura do Capitão Hatteras, Os Filhos do Capitão Grant, Vinte Mil Léguas Submarinas, A Ilha Mysteriosa, Miguel Strogoff, O Paiz dos Pelles, Heitor Servadac, Um Heroe de Quinze Annos, A Casa a Vapor, Keraban o Cabeçudo, Mathias Sandorf, Norte Contra Sul) e um (As Grandes Viagens e os Grandes Viajantes) era quíntuplo, o que, bem feitas as contas, perfaz quarenta e oito livros, que haviam de chegar aos setenta e dois, à data da morte do escritor. A grafia usada era o esplêndido português anterior ao malfadado acordo de 1911, em que se escrevia A Esphinge dos Gelos e Luctas de Marinheiro, tanto na Rua Garrett em Lisboa como na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro. Esses livros, esse encarnado, essa ortographia, essas figuras da capa, mergulhavam-me em tal êxtase, que me consolava bem de não me deixarem tocar nas luxuosas edições da Hetzel, com gravuras de Neuville, Férat, Laplante ou Doré, que havia em casa do meu Avô Bénard, no original. Numa delas, escreveu o meu Avô a lápis: "Donné par mon père le 27 Juin 1880". Era o dia dos anos dele, 11 no caso em questão, que é o de Vingt Mille Lieues Sous Les Mers, que tivera primeira edição em 1870. Só 71 anos depois, a 1 de Maio de 1951, passaram tais livros à minha posse, oferecidos pela minha Avó. O meu Avô leu Verne em 1880, como o meu Pai o leu em 1907 e eu o li em 1945. Três gerações educadas a Verne, mas já não juro pela quarta, pois que, apesar dos meus esforços, em 1970 ou durante essa década, os meus filhos já não devem ter terminado nenhum dos romances dele. Verne durou de 1860 a 1960, pelo menos como "leitura global". Raros serão hoje os maiores de 50 anos que entraram na adolescência guiados pelos filhos do Capitão Grant ou reencontraram o Capitão Nemo na ilha misteriosa. "Chamaste-me Capitão Nemo?" A mim chamou-me (e de que maneira!) naquele escritório da Rua do Jardim do Tabaco, que ficava logo à direita da porta da entrada e onde uma escura livreira de mogno guardava as viagens maravilhosas que me levaram aos pólos e ao equador, à lua e ao fundo dos mares, à estrela do sul e ao centro da terra.
4. Mas a minha introdução a Verne não foi escrita, foi oral. Tinha eu 9 anos e andava no Lar Educativo João de Deus. Uma das netas do poeta, que era minha professora - Maria da Luz de Deus Ramos que, depois de casada, já fora desse tempo, se chamou Maria da Luz Ponces de Carvalho, a Luzinha como então todos lhe chamávamos - ocupava parte da aula da tarde a ler-nos Verne. O primeiro livro que assim nos leu foi As Índias Negras, que se situava nas hulheiras de Aberfoyle, na Escócia de outras eras.
"Pede-se ao engenheiro Jaime Starr o obséquio de se dirigir amanhã às hulheiras de Aberfoyle (...) onde lhe será feita uma comunicação da mais alta importância." Assim começava esse livro. A hulha havia-se esgotado nas minas que foram abandonadas, mas estranhos mistérios ocorriam nas profundezas dela. Após muitas peripécias - e para muito resumir - descobria-se que o antigo capitão da mina ("Overman", chamou-lhe o tradutor), um velho de nome Silfax, que todos julgavam morto, se refugiava nas galerias dela, acompanhado por uma neta e por uma estranha ave, um harfang, tão mais insólito quanto nunca consegui perceber de que espécie de pássaro se tratava. O velho ensandecido procurava uma vingança contra quem lhe roubara o último filão das velhas hulheiras e também o amor da neta. O plano dele era libertar grisú, um gás explosivo, e fazer ir a mina abaixo, com todos os que o haviam roubado. Terrível era a aparição final do velho, no meio de um lago subterrâneo, "de olhar sinistro, barbas alvíssimas, caindo sobre o peito, roupas talares e a cabeça coberta por um capuz". Tinha na mão uma lâmpada de Davy e com ela queria fazer explodir o gás, o grisú. "Oh, grisú, oh grisú... Soou a hora da minha vingança!" No último minuto, dava-se a salvação e a morte de Silfax. Mas, até chegar aí, foram tardes e tardes em que eu nada mais esperava do que saber que mistério escondia a mina e quem era o fantasma que a habitava. O suspense foi demasiado. Precipitei-me para o livro e, nesse mesmo dia, começou a minha compulsiva paixão por Verne, que durou três anos e trinta livros. Começaram também os meus pesadelos com Verne, revendo o velho e o harfang de "penas brancas mosqueadas de pintas negras". Os pesadelos ainda os consegui transmitir. Em carnavais da Serra da Estrela, em casa da Zézinha e do António Alçada, quando a neve caía lá fora, antes de deitar os meus filhos mais velhos (7 e 6 anos à época) eu contei-lhes resumidamente esse extraordinário romance, detendo-me, como a Luzinha fizera comigo, na descrição das tenebrosas galerias da mina, no pássaro sinistro e na aparição do velho com o seu grito de vingança. Imitava o gesto de "horrível imprecação" que Silfax soltou ao ver frustrados os seus intentos. Grito que foi o último que proferiu, pois se precipitou nas águas do lago que não quiseram restituir à sua presa.
As crianças ouviam-me aterradas e, ainda hoje, a minha filha Ana estremece a evocar os pesadelos infantis, provocados pelo grisú, pelo harfang e pelo velho Silfax com a sua barquinha e o seu "riso cavernoso", enquanto se espalhava o cheiro do "hidrogénio protocarbonado". Imaginem que eu lhe tinha contado a história dos canibais da Galera Chancellor! Não conhecem? Esperem até à próxima sexta-feira. Já não têm 7 anos.
por João Bénard da Costa 1 de abril 2005 in Público
«Ensaios & Artigos (1951-2007)» de Agustina Bessa-Luís (3 volumes, Gulbenkian, 2016), com recolha e organização de Lourença Baldaque e prefácio de José António Saraiva, constitui um reportório de textos que acompanham, e como que ilustram, o riquíssimo percurso da marcante romancista.
UMA EXTRAORDINÁRIA REUNIÃO Contos, crónicas de viagem, referências ao Porto, textos históricos, crítica literária e artística, intervenção política, jornalismo, comentários de atualidade – eis o que encontramos em três deliciosos e substanciosos volumes, nos quais Agustina Bessa-Luís se expõe plenamente, revelando segredos da sua extraordinária oficina de escrita. Dir-se-ia que ao lermos esta reunião podemos visitar os bastidores de um magnífico teatro. E esse teatro é, nem mais nem menos, do que o lugar por excelência de representação da obra romanesca da escritora. A título de exemplo, encontramos num texto escrito no «Diário Popular» em 1968, referência à revista «Águia», órgão da Renascença Portuguesa, cujo diretor literário foi Teixeira de Pascoaes. Aí se afirma, com razão, que a Renascença «representou decerto o movimento mais importante da nossa vida intelectual». De facto, tratou-se de um alfobre único, que fez convergir as repercussões da decadência finissecular e as aspirações de um novo tempo e de um novo século. O que aconteceu foi que nesse momento crucial, a expectativa que a I República representou pôde ultrapassar a mera circunstância política, projetando-se em todo o século XX, na preparação de uma democracia que renasceu tardia, mas que pôde alimentar-se, desde as raízes culturais mais antigas, que vão dos trovadores ao grande lirismo de Camões ou à oratória de Vieira até à força criadora do Romantismo de Garrett e Herculano, do vitalismo das raízes de Camilo ou de Júlio Dinis, da ambição antifatalista da Geração de 1870, de Antero ou de Eça, e da renovação artística do simbolismo. E que foi a Renascença Portuguesa senão o ponto de encontro de Pascoaes, Leonardo, Cortesão, Sérgio e Pessoa? Toda a pujança de um século que o tempo foi enriquecendo – donde sairia da Seara Nova ao Orpheu. Para a nossa autora, «a Renascença foi a breve epopeia de espírito de alguns homens movidos por ideias sentimento e que, de repente, instauraram a noção de pátria além do vago consenso quotidiano». Numa fórmula muito própria de Agustina - «a pátria faz-se penumbra de todos, e não apenas teatro de alguns». E foi essa penumbra que se tornou desafio, pela insatisfação e pelo apelo à inquietude e ao «desassossego»: «não para dar a conhecer insubmissos mistérios da alma, mas para contar o segredo antiquíssimo da pátria». E é esta a chave que atrai a escritora, ciente de que essa ânsia de Renascença ocupa o espaço que para os liberais decimonónicos era a Regeneração.
COMPREENDER A SOCIEDADE CONCRETA Contra os lugares comuns, do que se trata é de tentar compreender a sociedade feita de pessoas de carne e osso com destinos contraditórios, em que as complexas relações de influência e de poder pesam permanentemente. A sua escrita intensa e laboriosamente construída como uma renda de bilros – procura dar-nos um retrato fiel de uma grande complexidade escondida por trás de aparente placidez. E assim o português «troca-se em homem sensato quando esperam dele loucuras». O saudosismo torna-se, deste modo, contraditório - «apontem-se glórias a decidir, optará pelo papel dos que não foram célebres nem lutadores; reservem-lhe alianças poderosas, sentirá necessidade de se distrair delas». O português é contraditório por natureza. E assim Agustina define-o: «Hábil, certo, elementar, terrível, é este recriar das brumas, iludindo a agressão, esperando sem desejar, tendo esperança sem planos, coragem sem abismos, causa sem ordem, influência sem poder, alma sem cruz. Renasce já em cinzas, mas renasce sempre». Identificamo-nos com este retrato? O certo é que é este o tecido humano, a matéria-prima da romancista de «A Sibila»… E a ilustração é dada, neste significativo texto, por uma carta de Camilo Castelo Branco, sombra sempre tão presente na reflexão agustiniana. Aí o romancista é apresentado como português paradigmático – dizendo nessa missiva que vai inscrever-se em Teologia na Universidade de Coimbra, mas pondo-se em posição para sustentar uma polémica. «Nas suas palavras anda um voo de vespas, da mistura com aves que delas se nutrem». É o gosto da contradição que se manifesta. Se virmos bem em Agustina também encontramos essa permanente tensão entre o desejo e a resistência, entre o prazer e a repulsa. E fala Camilo de «tristes convicções», de que «fica proveito descontente» - e são tristes porque se «limitam a julgar, mais do que a crer». São ecos quase autobiográficos em que os romancistas se encontram. As águias voam baixo e por isso sobrevivem. Mas a audácia exige mais. É o instinto que sempre prevalece. E as grandes gestas geram grandes culpas, com consequente desejo de reconstruir o passado. «O nosso saudosismo não é amor do passado, é só consentimento da sua força. E no consentimento o aplacamos». Compreende-se a ideia de renascimento, como desejo e lembrança, decorrentes das contradições, de que o universo romanesco da escritora se alimenta. E sobre Camilo (ou, em boa verdade, sobre o romance português) diz, num ensaio em «O Tempo e o Modo» (1964), sobre uma experiência partilhada com José Régio, algo que tem a ver com a proximidade que Agustina sente do bruxo de Seide: «Dos seus livros, alguns há que sempre me causam admiração; a frescura da sua prosa é inimitável, o seu humor, como uma rajada fulgurante traz consigo, porém, aquela reticência nostálgica que um português de boa lei sempre faz acompanhar, quer dos seus juízos graves, quer das confissões líricas. (…) A ironia e a versatilidade, o prazer iconoclasta logo redimido por uma afabilidade pelos humilhados, vão direitos a certa culpabilidade congénita no português». Mais do que ideias, do que se trata é de entender o género humano e de descobrir nele todas as fascinantes contradições que nos permitem compreender a vida como um drama, mas sempre cheia de uma estranha ironia. Um dia apontaram a Agustina algumas aparentes contradições que se apresentam nas suas obras. Prontamente respondeu: E a vida não está cheia de incoerências? O interlocutor ficou sem palavras… Em suma, lembremo-nos apenas do que Agustina disse da Cultura (e não das honras e reputações): «O fenómeno cultural parte da renúncia aos “caminhos bifurcados que se dirigem para norte ou para sul”, como dizia um letrado chinês, o seu mérito está em não ser interrogável de maneira vã. A cultura só existe quando um povo a resumiu num traço de ódio ou de humor». Nestes ensaios e artigos é a fecunda ficcionista que se exprime e manifesta – e nela a criatividade vai ao encontro da humanidade e da sua inesperada complexidade. O génio de Agustina está exatamente nessa capacidade de ir ao âmago da alma humana.
Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
Tenho o meu gabinete no rés do chão, abrindo sobre uma fileira de miosporos e a "minha" cerejeira do Japão, antes de um vale de pereiras, em cujos baixos está a charca grande, rodeada de choupos. Diverti-me, esta manhã, a observar um casalinho de melros espertos que, mesmo à beirinha de mim se ia entretendo com o que chamo a sua, deles, saltitante restauração matinal. Apareceu então uma pega, muito senhora de sua voz. Ave bonita, com graças de senhora estouvada, terá fugido do seu salão no Palácio da Vila, em Sintra, ou saiu direitinha de Les Bijoux de la Castafiore, pega tão ladra quanto rossiniana, atraída talvez pelo fascínio de algum brilho esquecido no chão? Mais certo é ter ninho por aí, alto posto num dos grandes plátanos, aqui mesmo diante da casa, ou num dos choupos que avisto lá em baixo. Irei ver: os ninhos de pegas também são depósito de quinquilharia, não é só nas aventuras do Tintin que atua a operática Gazza Ladra. Mas não creio que esta ave que por aí vai voando e pousando seja cleptómana; antes fará tudo, como as suas parentes de Sintra, por bem... Esta pega rabuda, por enquanto, vai saltitando e picando pelas ervas, como os melros; ao vê-la não diria que é omnívora como o homem, ainda que também seja pega de um só pego, ou pego de pega única, coisa que o humano nem sempre é. Encontro-a muitas vezes silenciosa, é ave prudente e ciosa, ainda que seja tida por palradora, quiçá porque, dizem, imita os sons alheios... Mas eu só lhe surpreendi berros de alarme. Surpreso fui eu, logo pela manhãzinha, quando avistei sobranceiramente, de secreta janela do meu quarto, uma poupa planando no ar sereno, ao carinho de uma luz de oiro que lhe afagava as cores inesperadas da cabeça e do pescoço e o branco e negro das asas abertas... Não era um pássaro, era uma "apassarição"! Fez-se de súbito franciscano o meu coração, noutras vezes tão distraído da beleza: há milagres assim.
Não sei porquê, deu-me então para pensar a beleza como sentido íntimo e último das coisas todas. A contemplação do belo é a descoberta da nossa vida, o encontro final, a fruição dessa essência trina (belo, bom, vero) que hoje apenas temos enquanto saudade, desejo e busca. Somos peregrinos do amor, eis todo o nosso sentido. A Teresa Calem, querida amiga, reencaminhou-me, um dia destes, um vídeo sobre um miúdo de 12 anos, chamado Campbell, que dedica as suas horas de recreio, enquanto irmãos, amigos e colegas juntos brincam ou jogam à bola, a costurar bonecos de pano, para depois os levar e oferecer a crianças doentes. Os bonecos são todos diferentes, cada um com sua personalidade e seu nome. Em comum apenas têm o cuidado com que foram feitos e a secreta beleza que torna cada um deles um ser amável, um amigo para ser querido, uma companhia como testemunho de humanidade. Campbell também fez um para o pai, ao saber que este era vítima de cancro. E o pai, comovido, diz que já sente melhoras e, com o filho, acredita que anda ali poder mágico...
Pensossinto que as evidências íntimas não têm necessariamente de ser aparições, alucinações, visões ou ilusões: não são, não podem ser, projeções dos nossos nós mesmos. São o reconhecimento do nosso encontro com o Outro. Narciso afogou-se por muito se ter debruçado sobre a água que lhe servia de espelho. Mas eu, quando, ainda que em fotografia, sinto sobre mim o olhar de magoada misericórdia de Madre Teresa de Calcutá, ardo de assombro perante a mulher mais linda do mundo.
O programa de visitas organizado pelo Centro Nacional de Cultura no eixo da Avenida da Liberdade justifica esta evocação do setecentista Teatro do Salitre, a certa altura (1858) também chamado Teatro das Variedades, o que desde logo define o seu âmbito de programação, mas também documenta a antecipação urbana e cultural que a sua construção e atividade representa relativamente ao eixo central urbano da Avenida da Liberdade e ao próprio Parque Mayer.
É interessante e oportuno por isso referir que o Teatro do Salitre, inaugurado em 27 de novembro de 1782 e demolido em 1879, logo no início das obras de implantação da Avenida, representou durante um século como que a antevisão do que viria a ser, ali mesmo, o Parque Mayer: curiosa antevisão, insista-se, de funções urbanas e culturais desta zona da cidade!
O Teatro do Salitre foi edificado por iniciativa de um negociante, de nome João Gomes Varela, que encomenda o projeto ao arquiteto Simão Caetano Nunes. Varela terá sido pois o primeiro empresário, diríamos hoje, do Parque Mayer. E para o espetáculo de estreia, é também contratado um equilibrista na altura muito prestigiado, Tersi de seu nome.
Mas quem mais marcou o Teatro do Salitre como cena referencial foi o ator António José de Paula que a partir de 1794 explorou o Teatro com um repertório notável para a época: inclusive, estreou em Portugal duas peças adaptadas de textos de Voltaire. E anos mais tarde, lá se instalaria uma companhia dirigida por Emile Doux, nome referencial no seu tempo e de certo modo ainda hoje.
Mas em 1840 o Teatro do Salitre estava em fase de decadência. Teófilo Braga, no seu estudo intitulado “Garrett e os Drama Românticos” (1905) transcreve um artigo onde se traça uma visão muito negativa do Teatro nessa época:
“O Teatro do Salitre era o único regular de Lisboa, e este mesmo, que mais se assemelhava a uma baiuca do que a um lugar de recreio público, só era frequentado pela classe ínfima da sociedade: ali, as graças mais obscenas eram unicamente aplaudidas, os ditos mais desonestos eram os que melhor soavam aquela plateia”…!
E mais adiante, na mesma obra, mas reportado a 1806: “o Teatro da Salitre tornou-se um asilo para os literatos pobres, assalariados para trucidarem a arte e a língua com traduções de dramas franceses”… (pág. 135).
A crise vinha pois de trás. E nesse sentido, Ana Isabel de Vasconcelos assinala agora que “o Teatro do Salitre tem desde sempre sido referido como um parente pobre da arte dramática. (…) Já no fim do século XVIII, quando não havia atores em número suficiente, este teatro é preterido relativamente ao Condes, que se apropria da designação de teatro nacional”. Mais refere ainda que “o Salitre tinha uma boa lotação – 900 espetadores em plateia, frisas e camarotes” (in “O Teatro em Lisboa no Tempo de Almeida Garrett” ed. MNT 2003 págs 30-31).
E é interessante recordar que quando Garrett, em 1836, elabora a sua reforma estrutural do teatro português, as duas salas dominantes de Lisboa – e do país inteiro, em rigor - eram precisamente o Teatro do Salitre e o Teatro da Rua dos Condes, sem referir, claro, o Real Teatro de São Carlos, esse inaugurado em 30 de junho de 1793 e vocacionado, como bem sabemos, para a música, para a ópera.
O teatro de D. Maria II seria inaugurado em 13 de abril de 1846. Pode referir-se também o pequeno Teatro das Laranjeiras, do Conde de Farrobo, inaugurado em 1825 e restaurado em 1842. O Teatro do Gymnasio data do mesmo ano de 1846. O Teatro da Trindade é de 1867, o Teatro Gil Vicente de Cascais de 1869, o Teatro Taborda de 1870...
Mas recorde-se então que o Teatro São João do Porto é inaugurado em 13 de maio de 1798, e antes dele existiram Teatros em Lisboa, no Porto e um pouco por todo o país: de muitos deles temos falado aqui, e desses e de outros voltaremos aqui a falar.
1. INTRÍNSECAMENTE CORRETO E IDEOLOGICAMENTE INCORRETO
Numa perspetiva cultural as apreciações, avaliações, críticas, considerações e julgamentos intelectuais, ou outros, tendo por fim a cultura no seu todo, devem ser feitas em função de critérios e valores próprios, não se subordinando à realização de fins que lhe são exteriores, de natureza política, religiosa, económica ou social.
Toda e qualquer manifestação cultural e artística vale por si, independentemente das opções ou preferências filosóficas, políticas, religiosas, económicas, sociais ou vivenciais de quem as cria, medeia ou divulga.
Nesta sequência, defende-se deverem ser perfilhados critérios de cultura pura, que não necessitam de validação externa, em detrimento de critérios de cultura para, enfeudados ou funcionalizados ao serviço de qualquer coisa.
Os méritos artísticos dos criadores não devem estar subjugados a dogmas, valendo pelo merecimento e valor intrínseco da própria obra criada, pela sua autenticidade, originalidade, intemporalidade e universalidade, e não pela lealdade ao partido político x ou y, pela sua devoção ou mensagem de propaganda política e toda a utilidade que lhe está associada.
É cada vez menos compreensível, nos tempos atuais, que o pensar-se assim não seja ainda bem entendido, como o demonstram os preconceitos, querelas e insultos de uma certa esquerda e direita que se digladiam e hostilizam cultural e reciprocamente, avaliando antecipadamente tudo em função da sua ideologia e ortodoxia de pensamento, sem ter apreciado e se ter confrontado com o valor intrínseco de uma obra artística.
Os livros, em literatura, devem ser avaliados, no essencial, pelos seus merecimentos estéticos, narrativos, genuinidade, criatividade, numa linguagem permanente e experimentalmente trabalhada, intelectual e literariamente, não pela filiação do autor neste ou naquele partido, apoio ou afeição por esta ou aquela ideologia.
O bom ou mau feitio, as simpatias ideológicas de Pessoa, Céline, Brecht, Jorge Luís Borges, Neruda e Saramago, entre outros, não devem servir como critérios de valoração artística da sua obra literária, nem para classificar as suas manifestações artísticas como “conservadoras” ou “revolucionárias”, sendo certo que, gostemos ou não, são nomes consagrados, intemporal e universalmente reconhecidos.
Também, a nível da música, o invocado antissemitismo de Wagner e o partidarismo ideológico de José Afonso não podem, nem devem servir para avaliar, consoante a nossa perspetiva ideológica ou política, o mérito intrínseco das suas obras.
O mesmo releva, na pintura, quanto a Salvador Dalí, em cuja apreciação e valoração não devem interferir as suas alegadas indecências, paranoia, funambulismo e egocentrismo narcísico e excessivo.
É censurável e lamentável que a obra de escritores, músicos, pintores, realizadores e demais criadores seja desconsiderada e repudiada em função das ideologias e por aquilo que os seus autores pensam e têm liberdade de pensar, fazendo uso da sua liberdade de expressão e de pensamento, extensiva à sua criação.
Se uma obra de arte vale por si e é um fim em si mesmo, os critérios de valoração artística não são forçosamente coincidentes com os juízos políticos, podendo-se ser culturalmente “revolucionário” e ideologicamente “conservador” ou “reacionário” e o inverso, com a agravante de que tanto o ser-se conservador ou pela mudança são, em si, valores culturais em estado de permanente acordo e conflito.
Não há que aceitar e validar como autorizados e oficiais manuais ou normas imperativas do que é ideologicamente e politicamente correto ou incorreto, mas sim saber separar o valor intrínseco da obra do temperamento e do que pensa o seu autor, valendo em termos autónomos e específicos o acesso à fruição cultural, como um fenómeno transversal a todos os grupos sociais, e não apenas em termos económicos e sociais, ainda que também deles dependente.