Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Esta também é do António Alçada, mas associa outro amigo do coração – o José Guilherme Merquior, grande ensaísta e diplomata brasileiro.
Pouco depois do 25 de Abril, o José Guilherme passou por Lisboa e fez uma conferência no Centro Nacional de Cultura sobre a crise da cultura contemporânea. Ele era uma personalidade fascinante que amava verdadeiramente a liberdade. Ainda havia naquele tempo um fervor revolucionário… A conferência, como se esperava, foi um sucesso e revelou a extraordinária lucidez do seu autor. Um perguntador profissional invocou a ladainha habitual do materialismo dialético. E o José Guilherme foi claro, como era seu apanágio, na resposta: - «O mais que eu posso conceder é que o materialismo dialético, como método de interpretação, pode ocasionalmente servir-nos de alguma utilidade, mas como filosofia, acho que funciona como os candeeiros para os bêbedos: mais para se agarrar do que para iluminar»…
Em Caminhos e Destinos – A Memória dos Outros – II – Ensaios e Crónicas (D. Quixote, 2017), Marcello Duarte Mathias dá-nos um conjunto multifacetado de reflexões, que nos obrigam a conceder especial atenção ao mundo contemporâneo.
LEMBRAR UM EPISÓDIO INQUIETANTE Dei-me a perguntar, ao ler Marcello Duarte Mathias sobre Aldo Moro, como foi possível esquecer-se tão rapidamente esse episódio tremendo da recente história italiana. Para a minha geração, esse assassinato, entre o previsível e o inesperado, constituiu um motivo muito sério de reflexão e de dúvida. E o certo é que as cartas escritas nesse ignóbil cárcere correspondem à interrogação suprema sobre as situações limite entre a violência e o absurdo. E ainda hoje, quando nos lembramos, “renasce a controvérsia, nunca verdadeiramente extinta, sobre as responsabilidades políticas e morais imputáveis pelo seu assassínio, até porque muitos pontos continuam por esclarecer”. Para as Brigadas Vermelhas, Moro pagava com a vida pelo “compromisso histórico” que defendia, abrindo as portas ao eurocomunismo de Berlinguer – e assim “personificava, talvez melhor que ninguém, o espírito reformista que todo o bom revolucionário abomina”. As cartas dessa prisão são impressionantes e deixam-nos cheios de pensamentos contraditórios. Leonardo Sciascia considerou que o cativeiro terá libertado a vítima dos constrangimentos político-partidários… Nunca se saberá o que ocorreu verdadeiramente. Moro insiste para que procedam à sua libertação em troca dos elementos das Brigadas presos… Indubitavelmente, o que há é o drama de uma violência cega. Só um terço da correspondência chegará, no entanto, aos seus destinatários, o que é um pormenor macabro. Mas notamos a “sobriedade do tom”, a “ternura e o afeto” para com os seus, a insistência na coerência do caminho político antes traçado, a lucidez perante o inexorável desenlace previsto, e “a fé religiosa que nunca o abandona e à qual se entrega sem reservas”. Hoje o terrorismo mudou de feição, mas mantém o mesmo ódio à humanidade. “O seu rosto multiplicou-se, atuando agora à escala planetária”. Aldo Moro é o “símbolo e uma peça da engrenagem”, que acaba a pagar “por aqueles seus correligionários que o deixarão morrer, vítima afinal – supremo paradoxo – de um equívoco. O espírito de conciliação face à cegueira sectária”. O retorno do trágico não é aqui uma figura de estilo ou uma questão de voga intelectual… E os dias de hoje continuam a reservar-nos um estranho espaço ocupado pelo esquecimento ou pela desatenção relativamente a Aldo Moro, ao seu testemunho, à sua vida e à sua tragédia.
MEMORIALISTA DE PRIMEIRA ÁGUA Se comecei pelo texto sobre Aldo Moro, fi-lo uma vez que constitui uma espécie de pedra angular nesta obra, onde o autor afirma, mais uma vez, as qualidades de analista atento aos acontecimentos e às pessoas. Diarista e memorialista de primeira água, entre nós como quase ninguém mais, o escritor manifesta nos textos ora reunidos o domínio indiscutível do ensaio. Assim se entende a admiração que nutre por Michel de Montaigne, de quem fala a propósito de um precioso “essencial” de Clara Rocha, aludindo aos Ensaios como livro de referência: “Nele o autor se descreve, dele se emancipa, para nele se voltar a encontrar – inesgotável deambulação à volta de si mesmo”. E há ainda a omnipresença tutelar de Camus. “Não há justiça, mas há limites”. E fica bem clara a opção perante a distância assinalada por Vergílio Ferreira entre Sartre e Camus: “o que separa um do outro é o caminho que vai do niilismo à tentativa de o superar”. E os textos entrelaçam-se, dando motivos de diversão, para citar Auberon Waugh, mas mais do que isso, de compreensão e de conhecimento, no sentido da “co-naissance” de Claudel. É a “segurança de tom que nasce do classicismo da forma e da singularidade da sensibilidade, sempre tão à flor da emoção” de que Sophia de Mello Breyner é exemplo sublime. E lembra-se António Tabucchi a dizer: “no fundo, creio que ao escrever, mais não faço do que uma espécie de autoanálise. Deste ponto de vista, os meus livros seriam outras tantas etapas de uma reflexão sobre mim mesmo que, naturalmente, se oculta evocando outras coisas”…
FALANDO DE DIPLOMACIA... Falando, de Diplomacia, de que o escritor é exímio conhecedor e praticante, deparamo-nos com o retrato (hoje oportuníssimo) de Arthur Schelinger, que «representou à sua maneira o que de melhor existe no escol americano: o patriotismo, a firmeza de convicções, o entusiasmo criativo, o gosto da descoberta e da partilha, a tolerância de espírito, numa palavra, a “decência” no sentido britânico do termo, esse misto de retidão, de compostura e seriedade intelectual». No entanto, nesta matéria, para além deste perfil ático e exemplar, encontramos, depois de uma descrição cheia de humor da querida Carreira (diplomática, já se vê), o relato de uma sessão formativa para jovens adidos, em que o autor se exime a dar pequenos conselhos óbvios para aspirantes a diplomatas, com receio de ser excessivo. Mas não resistimos a lembrar o que ficou por dizer sobre esses princípios básicos que devem reger as relações entre Estados: a regra de ouro – cada país conta consigo mesmo; cada país deve todos os dias aprender a contar, sempre e somente, consigo mesmo; e um país poderá eventualmente, a título excecional, contar com os outros, desde que estes saibam que ele conta consigo e que, nessa medida, terão também de se haver com ele, naturalmente, evitando subordinações. Daí que, para o diplomata, às vezes, o que impede que aconteça, seja mais importante do que aquilo que obtém… Devo lembrar, aliás, o imprescindível texto sobre a Diplomacia e a Geração de 70, essencial para se compreender tudo desse tempo – ou seja, Portugal e a Guerra Franco-Prussiana, a Conferência de Berlim, o Mapa Cor-de-Rosa, o Ultimato, os Tratados Luso-Britânico (1891) e de Windsor (1899) até à Grande Guerra – com uma preciosa adenda, de que beneficiará a edição do Dicionário, que espera ver a luz do dia em breve. Sobre o livro de Bernardo Futscher Pereira A Diplomacia de Salazar (1932-1949), o autor lembra o que um conhecido historiador disse: “A História não se aprende, compreende-se”, referindo o equilíbrio da análise desses tempos complexos da nossa diplomacia sem a preocupação de ser bom aluno de alguém… E invoco ainda a recordação de António Pinto da França, em Angola, e a interessante correspondência entre Saint-John Perse e Calouste Gulbenkian, organizada por Vasco Graça Moura, onde o mecenas alude a Lisboa com a sua “beleza serena e tão comovente” e à amizade com o seu interlocutor como “comunidade de sentimentos assaz excecional e muito preciosa”. Ao lermos e relermos, com grande prazer, este livro de Marcello Duarte Mathias, em que, a cada passo, nos interpela para que a liberdade e a fidelidade não sejam palavras vãs, fica-nos, de novo, a lembrança de Camus: “Conservar no coração a lembrança de um mar feliz, de uma colina inesquecível, o sorriso de um rosto querido”.