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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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MÁ CONSCIÊNCIA...

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Esta também se passou com o António Alçada Baptista. O problema da má consciência é que funciona muitas vezes como motivo de cegueira e de falta de um mínimo de racionalidade.

 

Uma vez na UNESCO, onde António Alçada estava a convite do saudoso Eduardo Portella, que nos deixou há pouco, um suíço, num discurso inflamado, condenou severamente os espanhóis por terem descoberto a América.

 

Felizmente, estava presente um egípcio que pôs os pontos nos ii: «Quando se fala da história dos nossos povos, parece que depois da chegada dos europeus é que tudo ficou muito mal. Ora, não é possível esquecer que, antes da chegada dos europeus, os nossos povos tinham expressões de escravatura e de exploração, tanto mais graves do que aquelas que os europeus trouxeram. Mas há uma coisa que se esquece (referiu o egípcio, com particular ênfase): é que, se os nossos povos viveram um dia a liberdade, isso é devido aos valores da democracia e dos direitos humanos, que foram trabalhados e divulgados pela Europa, que ela levou para lá e constituem hoje a nossa única esperança…».

 

 

 

  

 

     DIÁRIO DE AGOSTO

     por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

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XVIII - SURREALISMO – V

 

AS SURREALISTAS

 

Há no surrealismo nomes no feminino que merecem referência. Exceções à regra estabelecida pelo cânone oficial masculino sempre existiram, como Sonia Delauney, Lyubov Popova, Aleksandra Ekster, Natalia Goncharova, Marianne Brandt, o mesmo sucedendo no movimento surrealista com Méret Oppenheim, Frida Kahlo, Leonora Carrington, Louise Bouirgeois e Dorothea Tanning. Mesmo se consagradas eram secundarizadas, se não mesmo omitidas, num mundo gerido esmagadoramente por homens. Apesar de mulheres como Elena Diakonova, conhecida por Gala, ser acusada de controlar a vida (amorosa e financeira) de Dalí, Peggy Guggenheim, norte-americana colecionadora, galerista e negociante de arte moderna ser abastada em homens, dinheiro e poder, e Gertrude Stein ser influente na vida artística de Paris.

 

Foi numa exposição de mulheres artistas, sugerida ousadamente para a época por Duchamp a Peggy Guggenheim, numa galeria desta, em Nova Iorque, em 1943, que sobressaiu Méret Oppenheim, com a obra Objeto (O Pequeno-Almoço em Pele), com uma chávena de chá, pires e colher revestidas de pele, de interpretações e referências de vária índole. Desde a sensação repulsiva ou agradável de uma chávena peluda levada à boca ou tocada, associações de culpa pelo uso burguês aleatório de pêlo de animais em falares fúteis de salões de chá, a conotações sensuais e sexuais explícitas, há toda uma metamorfose do agradável em desagradável, do prazer em desprazer e outras antinomias, num jogo com a ambiguidade semântica da obra. Também transformou sapatos de mulher em coxas de frango, pintou mesas com patas de pássaros, em metamorfoses surreais cheias de ironia, piadas picantes e algo sinistras.

 

Frida Kahlo foi a primeira artista mexicana do século XX a integrar a coleção do Louvre, em Paris, urbe onde era vista como uma curiosidade exótica, dada a sua origem. Optou por ser artista, e não médica, no decurso de vários meses hospitalizada e após um acidente de autocarro quando regressava da universidade, tendo ficado com a coluna vertical, clavícula e duas costelas partidas, sendo perfurada e trespassada por uma vara de metal e ferros do veículo, sofrendo onze fraturas na perna direita e ficando com o pé esmagado. Este sofrimento, a que sobreviveu, inspirou a obra A Coluna Partida, em que a autora surge com o corpo rasgado suportado por uma coluna de metal, tipo espingarda, que simboliza a sua coluna fraturada, cujos coletes de aço simbolizam os ortopédicos que usou para a fortalecer. A paisagem desértica envolvendo a sua figura é a continuação do seu sofrimento. Chegou a dizer: “Fui tantas vezes aberta, partida, repartida, recosida. Sou como um puzzle”.

 

Refutava o pensar de André Breton de que era surrealista, dizendo: “Nunca pintei os meus sonhos, pintei a realidade”. Mas consentiu que as suas telas fossem exibidas em mostras surrealistas, entre elas a sugerida por Duchamp. Onde não foram alheias as crenças, mitos e rituais da cultura nativa mexicana, onde o ideário surrealista foi beber influências e novidades, dada o ambiente escaldante, atrasado e exótico do México tido, para Breton, como o país mais surrealista do mundo. E apesar de Frida não teorizar nem partilhar em pleno os mesmos conceitos do surrealismo dominante, há obras suas em que estão presentes elementos surrealistas, a começar pelos elementos fantásticos atribuídos aos sonhos, mesmo quando não se desprende totalmente da realidade. É o que sucede com a sua tela O Sonho (1940), cujo título, em si, é paradigmático, onde o sono, o sonho e a morte, dor, sofrimento e feminilidade estão fortemente interligados com contornos e influências marcadamente surrealistas e da cultura mexicana. Há nela um esqueleto que dorme por cima de Frida, uma espécie de amante da sua vida real, segundo Diego Rivera, seu marido, dado que dormia com um de papel no dossel da cama. A cama flutua no céu e a morte no ar. Um ramo de flores (para campa) surge nas mãos do esqueleto. Ao invés dos arbustos cobertos de espinhos que rodeiam o corpo de Frida. O que talvez justifique a sua despedida, surreal, para muitos: “Espero que a saída seja alegre. E espero nunca mais voltar”.

 

Dúvidas não subsistem quanto ao surrealismo da britânica Leonora Carrington, amiga de Frida Kahlo, que após viver com o surrealista Max Ernst, passou de fugida por Espanha e Portugal, tendo conhecido em Lisboa Renato Leduc, escritor mexicano, com quem se mudou para o México, onde morreu.

 

A sua tela surrealista Self Portrait: Inn of the Dawn Horse (Auto Retrato: Cavaleiro da Madrugada), do Metropolitan Museum em Nova Iorque, é tida como a primeira e uma das mais significativas da sua carreira. Carrington, sentada numa cadeira, antecipa no tempo o futuro vanguardismo das cantoras pop da década de 1980, com uma cabeleira anarquicamente despenteada e um vestuário entre o masculino e o feminino (andrógino), tendo pela frente uma hiena fêmea cuja crina se assemelha com a dela, imitando a sua pose. Ao fundo há uma janela onde se visualiza um cavalo branco galopando numa floresta, cuja cor e galopar se repetem no de pau que salta sobre a cabeça da autora. O seu fidedigno interesse por animais transforma-a numa caçadora noturna dos seus sonhos, operando-se um metamorfismo de real e irreal, num surrealismo pleno de simbolismos, onde o seu branco cavalo galopa em liberdade, tal e qual ela nos seus sonhos. O Gato, O Grande Adeus e Labirinto são outras obras representativas do seu percurso.

 

Refira-se ainda a francesa Louise Bourgeois com a escultura Maman (1999), de dez metros de altura, em memória da sua mãe que foi tecelã. Ou a pintora, escultora e escritora norte-americana Dorothea Tanning.

 

Representavam o corpo e o desejo das mulheres à sua maneira, do modo que o imaginavam e sem medos, ao invés de surrealistas como Dalí e Miró que representavam o corpo feminino como objeto de desejo.

 

 

15.08.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício