Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Se há poeta português que continua a ser desconhecido e injustiçado, apesar do seu talento, ele é Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). É quem mais se aproxima de Camões na sua vida e como símbolo de português com a alma pelo mundo repartida.
Partiu para a Índia, ficou algum tempo no Rio de Janeiro, fez escala em Moçambique, cursou estudos regulares de oficial de Marinha em Nova Goa e foi colocado em Damão, donde desertou, indo até Macau. Fez, pois, a rota do Império e com justiça comparou-se ao lírico e épico de «Os Lusíadas»
Camões, grande Camões, quão semelhante Acho teu fado ao meu, quando os cotejo! Igual causa nos fez, perdendo o Tejo, Arrostar co’o sacrílego gigante
Como tu, junto ao Ganges sussurrante, Da penúria cruel no horror me veja; Como tu, gostos vãos, que em vão desejo, Também carpindo estou, saudoso amante.
Ludíbrio, como tu, da sorte dura Meu fim demando ao Céu, pela certeza De que só terei paz na sepultura.
Modelo meu tu és, mas… oh, tristeza!... Se te imito nos transes da Ventura, Não te imito nos dons da Natureza
Só 40 anos de vida, um apurado sentido poético, uma sólida cultura clássica… Alexandre O’Neill homenageou-o. E hoje devemos lê-lo, em vez de seguir as historietas que por aí andam…
"Diário de Viagens Fora da Minha Terra" de Eugénio Lisboa (Opera Omnia, 2017) completa os imperdíveis cinco volumes das Memórias do escritor e ensaísta - «Acta est Fabula».
UM LEITOR INCANSÁVEL
Depois de termos seguido a par e passo nas Memórias as deambulações ao longo da vida do escritor, do engenheiro, do diplomata, do ensaísta, do estudioso e do crítico literário, temos direito a uma interessante sobremesa, na qual contamos com a verve e o estilo do leitor incansável, que nos acompanha em encontros e caminhadas por Montevideo, Los Angeles, Peru, Viena, Budapeste, Praga, São Tomé, Havana, Paris e Marrocos. E Antonieta está presente. É como se o escritor nos convidasse para irmos com ele ao encontro de referências culturais e literárias que nos enchem de prazer e curiosidade. As recordações de Eugénio Lisboa têm a extraordinária virtude de ser genuínas e de não embrulhar em papel de presente, com flamantes laços, o que pensa sobre o que vê, lê, conhece e encontra. Daí dizer-nos, a propósito de um obituário sobre Vergílio Ferreira, que a melhor atitude perante um autor que respeitamos é dizer o que se pensa – abrangendo os claros e os escuros, as penumbras e as luminosidades, e nesse sentido elogia a prática britânica, que se revela imbatível em rigor e respeito por quem se pretende recordar. Ao começar por Montevideo, no ano de 1996, tão próximo, parece que se retrata um momento distante, talvez do neolítico, quando, com uma dose especial de ironia, o autor nos fala de pessoas que usavam, por uma questão de estatuto, telemóveis falsos. E conta que nesse tempo em Madrid num lugar público houve um incêndio, vieram os bombeiros, o vestiário ficou intacto e, surpresa das surpresas, nos casacos deixados pelos utentes, metade dos telemóveis eram falsos. Hoje, parece anedota... E lembro o que Umberto Eco afirmou, nessa altura, sobre a utilidade dos telemóveis sobretudo, dizia ele, para intriguistas e doentes crónicos... Onde já vai tudo isso... Em duas décadas, o que avançou o mundo da tecnologia e da informação... Hoje, há mais telemóveis que habitantes nas sociedades de consumo e a dependência desses bicharocos tornou-se endémica. Mas o fait-divers serve para ilustrar um seminário académico, em que Cleonice Berardinelli pontua com charme e interligência. Eugénio gostou do Uruguai – “a gente é acolhedora e simpática e as ruas parecem, por enquanto, seguras. Mas vê-se que é um país recente, a que ainda falta um bom bocado de história. (...) Mas há um ar exterior de riqueza relativamente bem distribuída e parece que a maior fatia da população é constituída pela classe média”. Também gosto do país, que é uma espécie de domínio do “portunhol”, dadas as vicissitudes históricas. E, pensando na Colónia de Sacramento, ainda há muito para fazer para valorizar esse património que tem tudo a ver com a cultura da língua portuguesa.
JOSÉ RÉGIO VEM À LEMBRANÇA
Em Los Angeles, José Régio vem à lembrança. A encenação de Lisistrata de Aristófanes é motivo de regozijo. “Fiquei contente. E o Régio também ficaria, se fosse vivo”. Mas sobre os excessos da criatividade interpretativa, lembra-se Yehudi Menuhin no King’s College a dizer que cada intérprete dá sempre a sua interpretação de uma partitura, mas esta só admite uma certa margem de variação... O reparo visa em cheio certas liberdades teóricas que nada têm a ver com o sentido original, para além da margem do bom senso... Entre contratempos burocráticos e contactos inteligentes, na companhia do amigo Boris Katz, um médico cheio de solicitações, o escritor encontra a afirmação de Charles Townes, especialista em Eletrónica Quântica: “Se olharmos para aquilo de que a religião se ocupa, verificamos que ela visa compreender o propósito e o significado do universo. A ciência tenta compreender funções e estruturas. Se existe algum significado, a estrutura terá muito que ver com esse significado. A longo termo, chegarão a convergir”. Mas Eugénio Lisboa fica cético e fala de especulação e de wishful thinking... O mundo do conhecimento está naturalmente cheio de dúvidas e contradições... No Peru, “pobrete e nada alegrete”, vai ao encontro da filha Geninha e família, e depara com o “país vivendo de desassossego em desassossego, até que um dia salta uma erupção qualquer, que um ditador sem escrúpulos, como Fujimori, sufocará, legislando no sentido de dar às forças de repressão imunidades que são uma vergonha”. Sente-se uma situação de incerteza e instabilidade – e na passagem por Caracas (era 2005) ainda não se sentia todo o inferno em que a Venezuela se transformou. Já a peregrinação ao Império Austro-Húngaro – a Viena, Budapeste e Praga – é singular. Apesar das pequenas desilusões culinárias, é Graham Greene, do “Terceiro Homem”, a ser recordado, como símbolo da transição após o fim da catástrofe da Segunda Guerra, que prolongou por trinta anos o inesperado conflito iniciado em Agosto de 1914. Há um fundo musical mozartiano nesta invocação vienense. Os Habsburgos, o Palácio de Belvedere, o principe Eugénio, e compreende-se que a ponte Francisco José tenha as luzes apagadas, por contraste com a iluminação da ponte Sissi – que é venerada, “farta das peneiras austríacas, veio viver para Budapeste e não quis mais nada com os seus compatriotas, que abominava...”. Depois vem Kafka: “Habita-me a presença de Kafka que, obviamente, não cabia aqui”... Eugénio parece-se fisicamente com Kafka, já o diziam Vergílio e Régio... A inesgotável matéria-prima kafkiana poderia não ter chegado até nós... E a imersão total parisiense lembra que “foi bom ter-te conhecido, em 1953, ter-te visitado, depois, uma dúzia e meia de vezes e ter estado contigo, agora, mais uma – que será, provavelmente, a última. Que milagre ter nascido e que milagre maior ter nascido entre aquele número muito reduzido de pessoas a quem foi dado conhecer cidades e tesouros, como tu, Paris...”. E se a capital francesa é uma referência civizacional, Cuba é o lugar mítico que recorda Fidel e Che a descerem da Sierra Maestra em 1959, para pôr fim à ditadura de Fulgêncio Batista. Depois o regime começou a endurecer, a eternizar-se no poder e a perseguir e prender os dissidentes. E com que emoção, na viagem a S. Tomé, Eugénio Lisboa fala de Isaura Carvalho, que com João Carlos Silva era a alma da deslumbrante roça de S. João dos Angolares. Deixou-nos há pouco – com uma voz lindíssima e um português que era um modelo de perfeição... As memórias tornam a vida presente...