Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Ainda há muito pouco, Luís Miguel Cintra recordou o momento em que Sophia de Mello Breyner disse ter terminado a tradução do «Hamlet» de Shakespeare. Foi um momento heroico. Trata-se de uma obra-prima da língua portuguesa.
O mais curioso é que ocorreu em relação a esse texto de 1965 um episódio caricato que dá bem ideia do absurdo que é sempre qualquer ato de censura.
António Alçada Baptista pretendeu publicar um excerto dessa magnífica tradução na revista «O Tempo e o Modo» - mas, como acontecia nesses casos, era necessário enviar as provas do texto à Comissão de Censura. Importa esclarecer que a revista foi das mais martirizadas pela censura, tendo sofrido a proibição de cerca de metade dos textos que, entre 1963 e 1969, foram a exame.
Inesperadamente, o texto de Sophia veio totalmente cortado. António Alçada ficou estupefacto. Não esperava que tal acontecesse relativamente àquele texto clássico. Pegou no telefone e falou ao coronel dos serviços de censura. Eram coronéis reformados que normalmente estavam encarregados dessa tarefa…
Do lado de lá da linha, o censor confirmou o corte total do texto. António, com uma paciência infinda, explicou quem era Shakespeare e que o texto era do século XVII. No entanto, inabalável, o coronel insistiu na decisão. Era assim, não havia volta a dar… Mas não dava razões…
Perante a insistência, lá veio a justificação. É que no «Hamlet» há uma personagem de nome Marcelo – e (ainda que Salazar estivesse de saúde) falava-se com insistência na hipótese de Marcelo Caetano poder suceder ao Presidente do Conselho – como aconteceria três anos depois… E o censor estava convencido que havia naquela publicação uma intenção politica qualquer…
Não se conformava, porém, António Alçada – e, palavra puxa palavra, tudo acabou com um corte parcial, não se publicando a fala de Marcelo…
Da janela do Hotel Borges, a luz Jablochkoff iluminava orgulhosa os passeantes do início da noite. Não se sabe se alguém recordou a ténue claridade do anterior gás que, aceitando o jeito ténue de abat-jour, fora espécie cúmplice aos abraços dos apaixonados e não só. De qualquer modo, diz-se, que esta luz Jablochkoff imprimiu à cidade de Lisboa o cunho de uma cidade europeia. Com esta nova luz, muitos locais tornaram-se pensadores aprazíveis do que aos destinos do mundo respeita, ou, as medalhas e as joias e as plumas e os ares de casacas, se não tivessem tornado feitos extraordinários apenas por maior visibilidade na direção dos poderes.
É certo que o russo que inventou esta forma de luz não terá tido em conta que a clareza do poder importuna o próprio poder ou não lhe perguntasse:
- Vi-o ontem com o senhor x. Tenho a certeza que era V-Exa. Não estou a supor sequer que não seria. Creio bem que a grã-cruz lhe escapou justamente por essa clara companhia.
Aqui chegados todos se lembravam da importância da vela de sebo, verdadeira agente da escuridão, espartana o bastante para não revelar antes de entregue, qual a propina que ao criado caberia naquele dia.
(…) Esta minha relação com a Bárbara estava fora de todos os hábitos. Era exatamente o contrário de quem se ama para fazer uma história comum.
- Olha o que aqui escreveste, disse-me:
«Hoje a minha ideia de Deus não tem que ver com a criação do mundo, com a sua intervenção no meu dia-a-dia, nem com a condenação nem com a salvação. Diria que há coisas na natureza e na condição humana que me impõem a existência de um núcleo misterioso a que chamo Deus. Acho que a morte de Deus significa o necessário silêncio que é preciso fazer antes de Deus se tornar significativo.
(…) É evidente que não posso estar interessado num deus que aterrorizou toda a minha vida passada, que me cortou cruelmente de uma perspetiva de desenvolvimento humano que tem que ser vivido na terra (…)
Recuso uma conceção de Deus cujo caminho seja a tristeza e a angústia, já que o projeto humano pressupõe o amor e a alegria.»
António Alçada Baptista, in “O Tecido do outono” 1999, ed. Presença
António! António, digo-te que depois de aqui estarmos neste mundo, prendemo-nos numa grande teia e quanto mais nos debatemos mais nos enredamos. Nós somos mundo e artesão.
- Teresa, já escrevi e cada vez sinto mais que se não houvesse mulheres eu não tinha com quem falar.