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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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ESTRANHO MODO DE VIDA…

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DIÁRIO DE AGOSTO (XXVII) - 27 de agosto de 2017

 

Esta aconteceu com o então Presidente do Grémio Nacional dos Editores e Livreiros, nos anos sessenta do século passado, Luís Borges de Castro, e foi-me contada também pelo António Alçada (de quem tenho muitas saudades).

 

Havia uma reunião de rotina da direção do Grémio e nela irrompeu a PIDE, para prender o Augusto Sá da Costa. Acontece que os PIDES se tinham esquecido de levar o papel azul regulamentar para escreverem o auto de detenção. Por isso, um deles mandou um subordinado de elétrico, do Largo do Andaluz até à Rua António Maria Cardoso para trazer o tal papel

 

Durante cerca de 1 hora manteve-se uma atmosfera de cortar à faca, com uma ou outra interrupção – a pedir testemunhas e com o António a dizer que não contassem com ele para participar na prisão do Dr. Sá da Costa…

 

Borges de Castro tentava quebrar aquele gelo, a desdramatizar a situação… Para desanuviar, volta-se para o agente da PIDE e pergunta, palacianamente, como se aquilo fosse um modo de vida como outro qualquer:

- Então, têm prendido muita gente?...

 

 

 

 

 

 

DIÁRIO DE AGOSTO
por Guilherme d'Oliveira Martins

 

 

 

 

 

 

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Subi à cidade, num qualquer destes dias. Digo subi, sem ofensa para ninguém, até me parece que Lisboa está lá mais em baixo. Mas faço sempre um exercício de alpinismo, por vezes quase acabrunhante, para lá chegar. E de vez a vez me vou sentindo mais ligeiro no regresso, deve ser alívio de pressão atmosférica... Entre consultas médicas e outras tarefas, ainda consegui dar um salto à Bertrand, em busca do último Agualusa, do recente Miguel Real, e, para trazer conforto às minhas insónias, trouxe A memória dos outros II, Caminhos e Destinos do meu velho amigo Marcello Duarte Mathias, cujo estilo de escrita sempre me delicia, e de quem muito aprecio o rigor de uma inteligência independente, seja eu concordante ou não... O Marcello não é correto politicamente, nem por força, obra ou graça de qualquer outro advérbio: apenas por fidelidade à sua inteligência e ao seu gosto, e respeito pelos de outros.  


   A leitura desta coletânea de textos que o autor já antes editara ou pronunciara não é necessariamente contínua e sequente, pelo que desde logo me conduzi aos que se debruçam e refletem sobre Albert Camus: Camus, um homem livre  -  prefácio à 3ª edição de A Felicidade em Albert Camus, do mesmo Marcello Mathias; Camus  -  um homem só  -  texto da participação do autor num colóquio realizado na Universidade do Porto, em 2013, sobre Albert Camus e Vergílio Ferreira; e ainda o texto da palestra proferida na Academia das Ciências, numa homenagem ao filósofo e escritor francês. Li com gosto despertador este último, que não conhecia, e reli os outros dois, com igual cumplicidade. Reencontrei-me em vários passos do Marcello a circunver Camus, como neste: ... o enraizamento é nele a expressão da sua mais íntima identidade. Numa palavra, Camus liberta-se ao ancorar-se na infância, eterna fonte redentora, ponto de encontro e renovado deslumbramento! E cita um trecho do autor de Noces, retirado da polémica política que, em 1948, o defrontou com Emmanuel d´Astier de la Vigerie: «Há a história, mas há também outra coisa, a simples felicidade, a paixão dos seres, a beleza natural. Também estas são raízes que a história ignora, e a Europa, porque as perdeu, é hoje um deserto.» E desse dito de Camus conclui: Sem dúvida: nós somos também as nossas fidelidades.

 

   O que acima para ti transcrevo, Princesa de mim, surgiu-me esta noite como remissão à última carta que te escrevi e que, afinal - vejo-o agora -, desce mais profundamente às raízes e circunstâncias dessa demanda de mim, peregrinação interior, liberdade de um caminho aberto por misteriosas fidelidades. Sabes bem que sou alguém diferente do Marcello Duarte Mathias, e por isso mesmo simpatizo com estes encontros avulsos de percursos pessoais estranhos, quiçá pela magia desses marcos de encruzilhadas de caminhos que são alguns autores lidos, semeadores de olhares e pressentimentos. Aconselho-te a leitura das páginas do Marcello sobre Camus, por esse reconhecimento de uma independência tantas vezes solitária, que me marcou, a mim também, na formação da juventude: Albert Camus e Georges Bernanos foram dois mestres que tive, ensinando-me que o rigor da coerência (ou a chamada honestidade intelectual) é condição necessária de uma autêntica abertura de um olhar humanista à nossa volta. Sem esquecer outros, entre eles François Mauriac, com quem Camus polemicou... e até chegou a reconhecer razão! Todos somos parcelas. 

 

   As trabalhosas arrumações em que me meti vão-me também descobrindo cartas, diários e outras intimidades. Hoje, curiosamente, encontrei-me com umas páginas minhas, datadas de 13/12/84 (23h30), provavelmente escritas logo depois de um jantar em família, em Scarsdale, New York: presumo que a minha filha Teresa - que na altura tinha os seus 17 anos - trouxe para a nossa conversa à mesa duas obras que estaria a ler. Uma delas, Le Malentendu, seria, como confessa o autor em carta a Jean Grenier, ao tempo da conclusão da primeira versão da peça, une histoire de paradis perdu et pas retrouvé. Um regresso à infância?... E/ou, como disse o próprio autor em outubro de 1944, será essa história a de um filho que quer ser reconhecido sem ter de revelar o seu nome [porque me lembro eu agora do Lohengrin?] e que é morto pela sua mãe e por sua irmã, na sequência de um mal entendido.  Registei eu, em 1984:

 

   «Ao jantar, a Teresa lançou a conversa sobre o Huis Clos do Sartre e o Malentendu do Camus. Falar da prisão que tantas vezes nos sentimos, ou da comunicação que é, tão frequentemente, precisamente o contrário...

 

   A mentira, que o dizer, na roda livre de códigos incontrolados, tende a ser. O suicídio que é recusar a comunicação, pelo desespero de ser autêntico.

 

   Compreender que a solidão se vence por dentro, nunca com conversas ou, por exemplo, como cantaria o Marceneiro: foi bem efémero o desejo / do teu coração que, vejo, / no bulício se treslouca...

 

   Entre ouvir a voz de Deus num poço tapado ou cantar a cantiga do infinito numa capoeira (estarão bem lembrados estes versos do Álvaro de Campos?) não há diferença alguma. A única abertura possível está cá dentro, porque só o silêncio nos comunica e só em silêncio ouvimos. Fazer algazarra é equivalente a tapar os ouvidos.

 

   Assim, o amor é secreto, ou seja, uma destilação do silêncio. O que fala por si e só dizemos porque nos ensinaram o hábito de falar.

 

   O pudor é como quem espera, no silêncio, que a liberdade aconteça. Tudo se comunica de dentro. A vida ativa - dizia São Gregório - é um serviço; a vida contemplativa uma liberdade.

 

   Ao amor chama São Tomás de Aquino (e na Summa Theologiae!) o sentimento de inerência mútua. Explica-se ele, quanto à potência afetiva:

 

   Diz-se que o Amado está no Amante, no sentido de se achar no seu afeto por uma certa complacência [gosto partilhado]. Quer dizer-se que o Amante se deleta no Amado se este está presente. Ou, se estiver ausente, que a ele aspira por um amor de desejo; ou ainda, por amor de amizade, pelo bem que quer ao Amado. Tudo isso, não por ação de causa extrínseca, como quando queremos uma coisa com vista a outra, ou como quando queremos bem a alguém por motivo estranho à sua pessoa. Mas, sim, por complacência no Amado, cuja origem está no intimíssimo do Amante. Por isso falamos de amor íntimo e das entranhas da caridade.»

 

   Voltarei, em carta próxima, a estas considerações que, sobre o misterioso Amor, eu tecera num caderno, num fim de serão, já lá vão 33 anos... Elas apenas couberam aqui, pela coincidência do sentimento da minha tensão interior, dessa necessidade do silêncio na construção da palavra livre, ou da solidão como condição fundadora do amor. Marcello Mathias refere no seu Camus - um homem só o conto O Hóspede, em que o professor Daru, a quem um polícia confiara um revoltoso árabe (passa-se isto durante a guerra da Argélia) para que o entregasse à prisão, explica ao árabe as duas opções possíveis - o atalho que o leva diretamente à penitenciária, e o outro, em sentido oposto, que o levará à liberdade, deixando a decisão final nas mãos do prisioneiro. E assim se despedem. Passados uns momentos, Daru olha para trás e avista o árabe a caminho da penitenciária. Por decisão própria. De regresso à escola, Daru lê rabiscado a giz no quadro preto da sala de aulas: «Entregaste o nosso irmão. Hás-de pagar.»

 

   E Marcello conclui assim o seu conto do conto de Camus: Daru está sozinho, vem até cá fora, olha em redor a imensa paisagem à sua volta, dele tão familiar. E Camus termina o conto com esta belíssima imagem: «Dans ce vaste pays qu´il avait tant aimé, il était seul.» 

 

   Estava só - assim se descobria - porque fora silenciosamente capaz desse supremo gesto de amor: deixara ao árabe uma decisão de liberdade, e este livremente escolhera o caminho da prisão. E porque não quisera impor nenhuma lei exterior à que a consciência do próprio revelasse, era agora considerado traidor. Assim também podemos entender a Paixão de Cristo.  

 

Camilo Maria

  
Camilo Martins de Oliveira