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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

NO TEATRO SÃO LUIZ, MEMÓRIA DA COMPANHIA DE TEATRO MUNICIPAL


Em novembro de 1971 inicia-se no Teatro São Luiz a primeira temporada do que se denominou Teatro Municipal de Lisboa: companhia patrocinada pela Câmara Municipal, que adquirira e  recuperara o velho Cine Teatro. Organizou-se então no próprio São Luiz um chamado Departamento Teatral dirigido por Luiz Francisco Rebello onde tive o gosto de colaborar como adjunto do Diretor. Departamento que pouco tempo duraria...

 

Tenha-se presente que nesse período os teatros de Lisboa prosseguiam uma temporada interessante em matéria de textos e autores. Recorde-se designadamente que o Teatro Nacional levava à cena, no Trindade, o “Calígula” de Albert Camus; e as outras empresas: no Laura Alves, “Quem tem Medo de Virgínia Woolf” de Edward Albee; no Monumental, “Uma Cama para Toda a Gente” de Jean de Létraz; no Capitólio, “A Querida Mamã” de André Roussin; no Villaret “O Aniversário da Tartaruga” de Garinei e outros; e duas comédias infantis no Variedades e no Capitólio; isto, além das revistas no Maria Vitória e no ABC. 

 

Havia pois teatro em Lisboa. Mas devem desde já salientar-se alguns aspetos da iniciativa do Teatro Municipal.

 

 Antes de mais, a indiscutível qualidade e prestígio de Luiz Francisco Rebello, já então e até hoje, nome referencial do meio teatral português, com a circunstância, não despicienda, da sua independência política, no contexto da época. E foi extremamente relevante a colaboração que tive ensejo de prestar.

 

Mas mais: no São Luiz, a companhia em si mesma reunia um grupo notável de atrizes a atores. Basta evocar os principais nomes que constituíram o elenco: Eunice Muñoz, Alvaro Benamor, Hugo Casais, Vitor de Sousa, Fernanda Figueiredo, Batista Fernandes, Maria de Jesus Aranda, num total de mais de 20 artistas. E como encenador, Costa Ferreira.

 

Independentemente do que significam hoje estes nomes, decorridos quase 50 anos, realce-se a qualidade do elenco: basta consultar a imprensa da época.

 

A escolha do repertório coube a Luis Francisco Rebello. Estavam previstas então quatro peças para essa temporada de 1971/1972. E eram elas “A  Salvação do Mundo” de José Régio, “A Mãe” de Stanislas Witckiewicz, “Fígados de Tigre” de Gomes de Amorim e “Platonov” de Anton Tchekov.

 

 A peça de Régio foi então reeditada num volume que servia também de programa e apresentação da companhia. Nele, Luis Francisco Rebello explica as razões desta seleção. E fá-lo com independência e objetividade. Diz:

 

“Não foi de ânimo leve que aceitei a pesada responsabilidade de assumir a direção do setor dramático de um teatro que é (deveria ser) para toda a cidade. Como qualquer outro teatro, aliás, uma vez que as lágrimas e o riso – disse-o François Mauriac -  não são o privilégio de uma só classe social. Mas o Teatro hoje atravessa (e não só em Portugal) uma fase perturbada da sua evolução, aqui agravada por fatores particulares. Creio que uma das formas de enfrentar essa crise é caprichar na apresentação, a um público que se desejaria o mais vasto possível, de espetáculos artisticamente dignos, o que só se consegue com uma rigorosa conjugação de planos em que o fenómeno dramático se organiza. Um espetáculo esteticamente inferior é, do ponto de vista social, negativo”.

 

Ora bem: esta Companhia de Teatro Municipal de Lisboa pouco haveria de durar. Na segunda peça programada, como vimos “A Mãe” de Witckiewicz, surgiu um problema com a censura. Arrastaram-se negociações, tanto mais prementes quanto é certo que o espetáculo estava em vésperas de estreia. Mas não estreou.

 

Luiz Francisco Rebello demite-se do cargo de Diretor do Teatro Municipal de Lisboa. Eu saí também.  Artur Ramos e Jorge Listopad recusam fazer encenações. E  Natália Correia retira a tradução feita para o “Platonov”.

 

Assim acabou a Companhia de Teatro Municipal.

 

DUARTE IVO CRUZ

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXIV - EXPRESSIONISMO ABSTRATO AMERICANO - I
POLLOCK: DO GESTUALISMO AO “DRIPPING”

 

A action painting, pintura gestualista ou de ação, tem por tema o próprio ato de pintar ou a pintura em si, não tendo como resultado final uma representação ou uma pintura descritiva, mas um conjunto de gestos que o artista imprime para exprimir as suas pulsões emotivas e interiores sem premeditações. Retoma, de modo mais proficiente, o automatismo dos surrealistas, ativando, com fins artísticos, latências ocultas e pulsões interiores isentas de quaisquer controlos. Secundarizando a forma e o cromatismo, sobressai uma visualidade imediata da interioridade do artista.

 

Exemplo de primeira água é a arte de Jackson Pollock, que usualmente pintava em telas de grandes dimensões, estendidas no chão ou encostadas a uma parede, que tinha como uma etapa para a feitura de murais, pintados diretamente na parede, tendo como ultrapassada a pintura de cavalete, à semelhança do mexicano Diego de Rivera. O que era uma anunciação do futuro, em paralelo com a monumentalidade dos edifícios de Nova Iorque, do Novo Mundo.

 

Quando Peggy Guggenheim o contratou, em 1943, para pintar um mural, surgiu a obra Mural, que pintou numa noite, numa velocidade instintiva e vitalidade desenfreada de gestos, cobrindo toda a superfície e onde inexiste uma zona central que atraia o olhar, dando origem ao novo movimento artístico conhecido por expressionismo abstrato.

 

É da autoria do crítico de arte H. Rosenberg a expressão action painting para designar os pintores do expressionismo abstrato. Em 1952, num afamado texto escreveu: “(…) os pintores americanos começaram um após o outro a considerar a tela como o teatro de uma ação, e não mais como um espaço para reproduzir, remodelar, analisar ou exprimir um objeto, real ou imaginário. O que era necessário colocar na tela, não era uma imagem, mas um acontecimento”.

 

Numa fase posterior e mais audaciosa, desenvolve a técnica designada por dripping: telas gigantes salpicadas de tinta, sem indícios de pinceladas, em que a tela é estendida no solo, atacada, explorada e gotejada por todos os meios, ora caminhando em cima, remexendo-a e atirando-lhe coisas, manipulando as tintas com paus, ferros, talheres, adicionando-lhe areia, botões, chaves, cigarros, fósforos, moedas, pregos, tachas, vernizes, vidros, numa infindável amálgama de objetos em permanente experimentação. Ou deixando que a tinta e a cor escorram sobre a tela de uma lata intencionalmente furada, ou os pincéis salpiquem a tela sem a tocar. Full Fathom Five (1947) foi uma das primeiras obras. N.º 5, de 1948, e Ritmo de Outono, n.º 30, de 1950, são outros exemplos.

 

“Eu pinto no chão. A maioria da tinta que uso é muito líquida, pouco espessa. E uso os pincéis mais como varetas, eles nunca chegam a tocar a tela, estão acima dela. Tendo-se experiência é possível controlar praticamente todo o correr da tinta. E eu não uso o acidental, visto negar o acidental”.

 

E justificando-se, dizia: “A arte moderna, para mim, não é mais do que a expressão dos objetivos contemporâneos da época em que vivemos. O que me interessa é os pintores de hoje não terem de procurar assunto fora deles próprios. Agora apoiam-se numa fonte diferente, pintam a partir de dentro. Parece-me que o artista moderno não pode exprimir esta época, o avião, a bomba atómica, a telefonia, à maneira do renascimento ou qualquer outra das culturas passadas” (excertos do filme Pollock, de Ed Harris). Tenho-a, pessoalmente, como uma pintura explosiva, em movimento, que se projeta para o infinito, projetando-se para fora da tela, havendo nela uma anarquia altamente organizada, sendo um ponto alto do expressionismo abstrato norte-americano.

 

Os trabalhos de Pollock, criados por gotas de tinta, ou tinta atirada à tela, foram tidos desde degenerados a pura inspiração de génio, tendo findo prematuramente, num acidente de viação, uma carreira reconhecida, à data, como brilhante.  

 

Como nomes representativos da tendência autográfica, de forte pendor gestualista (action painting), merecem menção De Kooning, Franz Kline, Robert Motherwell, Francis, Adolph Gottlieb. Sem esquecer as influências de Arshile Gorky, emigrante natural da Arménia, que com o recurso à sua força gestual e a formas orgânicas não figurativas, disseminou bases para o expressionismo abstrato americano, influenciando o trabalho de criadores como Pollock.

 

26.09.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

CRÓNICA DA CULTURA

 

É altura de partir o calor, o bom calor de julho e o de agosto que dantes esvaziava o Chiado. O calor dos desejos dos sorvetes e dos refrescos, o calor que amolece o cérebro e o asfalto, o calor das toilettes em desalinho e o recordar das histórias imensas do António Alçada.

 

Estávamos ambos sentados no Largo do Camões a registar o que por ali fulgia em agosto e, na sequência de falarmos em publicações de livros com empurrões de quem tem os ditos conhecimentos e os exerce em função de trocas, e o António diz-me - no meio de um «ó que óptimo gelado este

 

Sabes Teresa, um dia aconteceu-me uma fantástica. Não é que o diretor do jornal x, bem conhecido como sabes, escreveu-me uma delicadíssima carta a convidar-me para escrever uma coluna semanal nesse jornal, e depois de me deixar clara a honra que seria para o Jornal se eu aceitasse, acresceu

«E saiba V. Exa que nada terá de pagar por isso.»

 

E entupimos ambos o engolir do gelado e rimos tanto que bamboleámos os gelados no ar de jeito a que os não perdêssemos na totalidade espraiados no chão.

 

E mais calmos continuámos a dialogar sobre o futuro próximo de setembro e das saídas dos livros no Natal fazendo apostas em quem os iria lançar nas respetivas apresentações explicando as razões das pressões nas escolhas. E assim o país das dignidades de todas as ordens e de todas as vacinas, nada pergunta ou perguntava que fizesse ou pudesse fazer estranhar. Concluíamos. Também achávamos que cavaleiros e comendadores ansiavam pelo Inverno, de modo a que usassem os mantos por baixo do pardessus, sobretudo quando atravessavam a Rua dos Retroseiros e uma leva de vento lhes enfunasse as insígnias.

 

E aguardávamos setembro. Já tínhamos ido ao Vau estar com o Mário que enviava carro a Lisboa para levar o Alçada até ao Algarve e este por sua vez, por duas vezes me levou a mim também. E assim sendo setembro aproximava-se com o conselho do António:

 

Teresa, querida Teresa, nunca passes uma camisa a um homem. Dás cabo dele e de ti. Ambos se habituam a uma espécie de filoxera dos sentimentos.

 

Bora que o calor ainda é muito!

Prodígio inaudito pode ser um nariz? Não achas?

Hum!, prefiro sublime, para nariz. 

 

Teresa Bracinha Vieira

Outubro 2017

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Matisse e as 'Notas de um pintor.' 

 

'A work of art must carry within itself its complete significance and impose that upon the beholder even before he recognizes the subject matter.', Matisse 

 

O texto 'Notas de um pintor' foram escritas em 1908, logo após Henri Matisse (1869-1954) ter-se estabelecido como principal mentor dos fauvistas.

 

Ora, no texto citado, Matisse afirma que numa pintura, acima de tudo, o mais importante é a expressão. O pensamento do pintor não pode separar-se da materialidade da pintura, pois o pensamento não vale mais do que a sua expressão. Segundo Matisse, a expressão será mais completa quanto mais profundo o pensamento. 

 

'I am unable to distinguish between the feeling I have about life and my way of translating it.', Matisse

 

Expressão, para Matisse, não se refere somente a manifestações de movimentos violentos. O todo da composição é expressivo - o espaço ocupado pelas figuras, os espaços vazios, as proporções. Tudo na pintura, tem a sua importância.

 

Composição é o modo de dispôr os diversos elementos de acordo com a sensibilidade do pintor. Todos os elementos da pintura são visíveis e têm um lugar específico e determinante. Matisse chega mesmo a declarar que a pintura, no seu todo, deve ser harmoniosa e que qualquer detalhe desnecessário substituiria, algum outro detalhe essencial, na mente do espectador. Uma pintura contém uma força expansiva, capaz de dar vida às coisas que a rodeiam.

 

'Nowadays I try to put serenity into my pictures and rework them as long as I have not succeeded. Charm, lightness, freshness - such fleeting sensations.', Matisse 

 

Ao pintar, Matisse deseja alcançar um estado de espírito e um estado de sensações condensadas. 

 

Matisse procura características na natureza, mais verdadeiras e mais essenciais, para que possa dar à sua pintura um significado mais duradouro. O movimento capturado durante a sua manifestação tem muito significado mas não pode estar isolado da sensação. Segundo Matisse, a realidade pode ser expressa de forma literal ou evocativa. O artista ao retirar-se de tentar mostrar a realidade tal como ela é, consegue obter resultados de grande beleza e profundidade.

 

'I must precisely define the character of the object or of the body that I wish to paint. I cannot copy nature in a servile way; I am forced to interpret nature and submit it to the spirit of the picture.', Matisse 

 

Para Matisse, todo o significado da pintura está já na conceção. Existe, desde logo, uma clara visão do todo - se existe ordem e claridade na pintura, significa que existe à mesma ordem e claridade na mente do pintor.

 

A cor por sua vez deve servir a expressão da melhor maneira possível. Os aspetos expressivos da cor, para Matisse, impõe-se de uma maneira puramente instintiva, através da observação, da sensibilidade e através da experiência.

 

É através da figura humana, que Matisse, encontra o seu maravilhamento pela vida pura e serena.

 

'The role of the artist, like that of the scholar, consists of seizing current truths often repeated to him, but which will take on new meaning for him and which he will make his own when he has grasped their deepest significance.', Matisse 

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

The May’s Florence speech, 2017-21

 

As palavras de RH Theresa May MP ainda ecoam nas paredes florentinas de Santa Maria Novella. A Prime Minister vai ao continente e discursa na sede toscana dos Dominicans para apresentar a two-years Brexit transition plan.

Reafirmando a fidelidade Tory ao voto popular no referendo, a estratégia atira a saída do UK da European Union para 2021. Ver-se-á agora como respondem “our friends” em Brussels à flexibilidade do Her Majesty Government. — Chérie! Impossible mission n'est pas français. Brighton recebe a Labour Party Conference e The Economist projeta a imagem de RH Jezza B Corbyn na porta do No. 10, acompanhado pela red bike e o Larry. Os trabalhistas ocupam-se a apurar a implementação do programa For the many, not the few enquanto aforram no eurodebate. — Humm. Eventually, something political is happenning there. Washington sobe a escalada verbal contra o regime norte coreano de Mr Kim Jon Un, por lá coloridamente batizado como The Rocket Man. O Mexico treme. Catalonia luta pelo direito de votar a independência. Germany dá mais quatro anos a Frau Angela Merkel na chancelaria e o Bundestag senta deputados da extrema direita pela primeira vez desde 1945.

 

 

Early sunrise with a blue sky at Great London. A BBC tem material ideativo para criar uma nova série de political amusement sob o título Yes or No, Minister. Será a ambiguidade criativa ditada pela navegação das dificuldades nas euronegociações. No Daily Telegraph de um destes dias, Matt desenhava o conceito a traços de carvão – “We weren’t warned that voting Brexit would mean talking about it for EVER!” Ora, enquanto os ilhéus examinam a notícia de, por “family reasons”, o ator Colin Firth ter optado pelo passaporte italiano e obrigar os fãs de Miss Jane Austen, e do seu Mr Darcy, a revisitar Pride and Prejudice, a senhora de Downing Street enaltece em Florence a “shared history” que vem esculpindo o que é ser europeu.

 

Sabereis os detalhes da estratégia de Mrs May para a saída formal do UK da European Union, a 29th March 2019, no quadro da visão traçada em Lancaster House e agora na prática adiada para os arredores de novas eleições no reino. Adiante, pois, nas tecnicidades diplomáticas do Withdrawal Agreement. Importa antes mencionar a presença no hall-church do Foreign Secretary Boris Johnson e do Chancellor Philip Hammond, protagonistas do Brexit divide no Cabinet. Vale ainda sublinhar o tom de confiança ora dado pela honorável representante de Maidenhead às futuras relações entre London e Brussels, em terra que cruza as medievas fraternidades religiosas e as corporações de artesãos, doando ao mundo ideias, obras e artes que a todos interpelam sobre como é ser humano.

 

Alhures no planeta azul, também os homens e as mulheres da NASA interrogam no ramo espacial das odisseias. Uma missão dos texanos visa extrair amostras do asteroide 101955 Bennu e está a cargo do Goddard Space Flight Centre. É o OSIRIS-Rex, acrónimo para Origins, Spectral Interpretation, Resource Identification, Security, Regolith Explorer. No elementar do que podemos entender do nasarez, a par do combustível, tanto a partida como a chegada da spacecraft fruem as leis da gravidade. Mr Rich Burns, que gere as operações no Cabo Cañaveral da Florida, assinala que "the encounter with Earth is fundamental to our rendezvous with Bennu." — Well. Keep in mind Master Will and that daughter Miranda in The Tempest: — “How beauteous mankind is! O Brave new world, that has such creatures in't."

 

St James, 25th September 2017

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 25 de setembro a 1 de outubro de 2017.

 

«O Pequeno Caminho das Grandes Perguntas» de José Tolentino Mendonça (Quetzal, 2017) inicia uma nova coleção da editora, constituída por obras do escritor e poeta.

 

O OFÍCIO DE PERGUNTAR
Os 155 pequenos textos que constituem este livro correspondem a reflexões do autor sobre um conjunto muito vasto de temas em torno da experiência cristã. A esperança, o acolhimento, o espanto, o regresso, a gravidade e a graça, a crença, a sabedoria, o desejo, a compaixão, a perfeita alegria, a solidão, a inutilidade, a surpresa, a santidade, a ressurreição, o milagre, a repetição, a ternura, a oração, o silêncio, a lentidão, a perseverança, a palavra, a comunicação, o desassossego, a saudade, a morte e a vida – são alguns dos temas, colhidos num rápido folheio, que permitem a José Tolentino Mendonça ir-nos falando da complexa relação com Deus. E se falamos de perguntas e respostas devemos ouvir Plutarco a dizer que é necessário habituarmo-nos a fazer uma paragem e a criar um intervalo entre a pergunta e a resposta. No fundo, o fundamental é mesmo a pergunta. Nela se coloca o desafio e o problema. E é na pergunta que está a natureza mesma da oração – não vista como uma troca pessoal ou mercantil, mas como um verdadeiro diálogo. Trata-se de procurar ouvir quem está do outro lado… E se se fala de oração, importa preservar o recato. Os Evangelhos recomendam que entremos no quarto e fechemos a porta. É a decisão e a disponibilidade para o radical encontro consigo. E de que falam as casas? Do silêncio e da palavra, do incumprido e do adiado. E ouvimos Ruy Belo: «Oh, as casas as casas as casas»… Dir-se-ia que neste livro estamos diante de uma espécie de breviário dos tempos modernos, para leitores algo apressados. No entanto, há um apelo constante à reflexão ponderada e a um tempo de espera. Se os textos não ultrapassam uma página, a verdade é que devem ser lidos em ritmo lento. A cada passo o poeta pede-nos para não nos ficarmos pelas simplificações. E a citação de Adorno, traz-nos um elogio do espanto – como longo e inocente olhar sobre o objeto. E esse espanto obriga-nos a uma constante revisão do que sabemos de nós próprios e do mundo. A atenção ao que nos rodeia obriga a um olhar longo e disponível. A fé ensina-nos a arriscar, como nos diz Françoise Dolto, devendo recordar-se a parábola do administrador infiel – que apesar de desonesto, tem a virtude de antecipar as consequências de algo que sabe que vai acontecer. Devemos estar de sobreaviso. Já G. K. Chesterton, sobre a afirmação do evangelho de S. Mateus «se alguém quiser seguir-me, negue-se a si mesmo», vem dizer-nos que esta frase poderia estar gravada na entrada de um clube de alpinistas ou de uma associação de socorros a náufragos. A vida tem muito de escalamento, de subida, e também de ações de salvamento. Já quase nos esquecemos de que outrora nas aldeias na quinta-feira de Ascensão, além de se arranjarem as espigas, subia-se a um monte, em nome da simbologia da celebração.

 

O PARADOXO DA VIDA…
Quem quiser salvar a vida, tem de estar disposto a perdê-la. E o paradoxo torna-se uma marca da interrogação correspondente às grandes perguntas. Lembramo-nos dos ecos difíceis da frase de Tertuliano - «Creio ainda que seja absurdo» («Credo quia absurdum»). Longe das certezas, estamos num domínio, como a fé, em que a racionalidade e a dúvida estarão sempre presentes. E como interpretar o salmo citado por Cristo no Calvário - «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?». François Mauriac perguntou, contudo: «Meu Deus, meu Deus, por que não me abandonaste?». O paradoxo leva-nos a olhar com outros olhos o mundo. Entre a natural multiplicidade de temas e preocupações vem à liça o poema de Sophia de Mello Breyner: «A civilização em que estamos é tão errada / Nela o pensamento se desligou da mão / Ulisses rei de Ítaca carpinteirou seu barco e gabava-se também / de saber conduzir num campo a direito o sulco do arado». E vem ainda à memória a distinção de Zygmunt Bauman entre o caçador, no uso da força, e o jardineiro, no uso da sabedoria – ou ainda a distinção fechada entre o «nós» e os «outros», que nos obriga superar a fronteira do egoísmo. A quantos sinais preocupantes desse isolamento e do medo dos outros assistimos nos dias de hoje. Merleau-Ponty recorda-nos que a solidão e a comunicação não devem ser vistas como dois termos de uma alternativa, mas como duas faces de um mesmo fenómeno… E Edgar Morin lembra que, como toda a gente, tem horror total às esperas, nos correios ou nos consultórios, e não suporta as filas burocráticas a que nos obrigam. Contudo, não cessa de esperar o inesperado… Devemos preparar-nos para a incerteza. Onde existe o humano existe a viagem… Este breviário traz-nos, assim, um permanente vai-e-vem de temas e problemas, de respostas e de perguntas. A fé é um verdadeiro livro do desassossego – e o certo é que, como no livro de Job, todos estamos representados, crentes e não crentes, convertidos e inquietos, locatários e peregrinos, e ninguém fica incólume às dúvidas e angústias. Bernanos recusava o odor a naftalina quando se deveria privilegiar o cheiro do rebanho… Há momentos que a sujidade do templo é sinal de vida. Quem não se dispuser a pôr os pés na lama não compreende a sua responsabilidade humana. Afinal, a dificuldade de crer não descaracteriza a fé – como sempre disse Simone Weil. E que é a perfeita alegria. Nas «Fioretti» de S. Francisco de Assis, lemos o diálogo de frei Leão com o próprio santo: «Imagina que pernoitamos (…) em completo desabrigo, fustigados pela dura neve, devorados pela negra fome, mas sofrendo tudo isso sem nos perturbarmos, sem murmurar contra o porteiro, antes pensando humildemente que aquele irmão nos conhece de verdade e que Deus o fez falar contra nós. Se suportares isso com bom amor, ficarás a saber o que é a perfeita alegria»… A felicidade não tem, pois, a ver com o contentamento imediato – mas com algo de muito mais fundo… Não estamos sós. E na relação com os outros, devemos relembrar a comovente invocação por Montaigne do seu grande amigo La Boétie: «Porque era ele, porque era eu»… De facto, há uma complementaridade incindível que nos liga, eu e o outro, nós e os outros… O pequeno caminho e as grandes perguntas correspondem à ilustração do mundo da vida. Ou será um grande caminho para grandes e pequenas perguntas? Importa lançarmo-nos ao caminho – lembrando António Machado («el caminho se hace al andar»). E Thomas Merton lembra que «o caminho da quietude não chega a ser sequer um caminho, e quem o segue não encontra coisa nenhuma»…   

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

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       Minha Princesa de mim:

 

Miguel Real (já leste tu, Princesa de mim, o seu Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa - Planeta, Lisboa, 2017 ?) será, a meu ver, pelo método e seriedade, o ensaísta de serviço à arrumação dos vários esforços e exercícios que outros fizeram e vêm fazendo, com convergências e divergências, para refletir sobre identidade e cultura portuguesa - e cito-o - desde a obra dos pensadores da Geração de 70, mas também - e sobretudo - de Jaime Cortesão, Teixeira de Pascoaes, António Sérgio, padre Manuel Antunes, Jorge de Sena, António José Saraiva, Boaventura de Sousa Santos, José Mattoso e Eduardo Lourenço. E, no balanço, traça o perfil de um discurso de Guilherme d´Oliveira Martins, por ele espremido da leitura do livro deste (Portugal. Identidade e Diferença, Gradiva, Lisboa, 2007) que parece matizar a afirmação do mesmo de que "os portugueses fizeram mudar os hábitos do mundo":

 

Segundo Guilherme d´Oliveira Martins, Portugal, reafirmando a sua complexada identidade cultural passada, mas recusando simultaneamente «o triunfalismo e o miserabilismo», tem hoje, nos princípios do século XXI, integrado na Europa, a grande oportunidade de superação dos seus traumas históricos, normalizando-se, racionalizando as suas estruturas sociais e estatais, unindo «pensamento e ação», integrando ambos num projeto complexo e multidimensional sumamente caracterizado pela abertura ao «outro». Neste sentido, propõe o repensamento e a revitalização da nossa identidade histórica por via de uma abertura relacional a outras entidades (Europa, África, Brasil...), um autêntico mergulho no «outro» que provocatoriamente abale os nossos complexos («saudosismo, sebastianismo, lirismo sonhador, fatalismo oriental, brandura de costumes»), forçando a sociedade civil a não depender em absoluto do Estado, «matando» definitivamente Dom Sebastião dentro de cada português.

 

Mas agora, pergunto eu, não estaremos nós a reentrar, pela porta do quadro de uma "atualização" conveniente, na mesma obsessão? Na fezada num eu nacional histórico, chamado a dar "autênticos mergulhos" noutros, tudo isto (quanto é?) proposto num discurso grandiloquente e alheio a qualquer análise empírica e crítica da realidade da sociedade portuguesa atual, e da sua presente circunstância?

 

Na verdade, aquele tal Portugal só pode ser um conceito abstrato, um sentimento desencarnado, o "outro" ou "outros" em que deverá "mergulhar" mais não sendo do que destinos de uma viagem de regresso a mitos com que se relacionaram passadas grandezas ou onde se procuram novas alienações... As a matter of fact, como diriam os nossos pérfidos albiões, a portugalidade contemporânea - falo de gente, não de um conceito - surge ainda, infeliz e largamente, como a piolheira de que falava o Senhor Dom Carlos I, e também, doa a quem doer, feliz e crescentemente, como um movimento de novos "estrangeirados" (dói-me, a mim, que assim sejam tratados) que se distinguem no panorama internacional, desde a interpretação da música clássica e barroca até à qualidade dos trabalhos de investigação em áreas de humanidades clássicas, ou em disciplinas na vanguarda da investigação científica. E não esqueço os emigrantes operários que, em terras estranhas, se converteram à contemporaneidade e se reorganizaram, em si mesmos e socialmente, para saber responder a desafios que o imobilismo da sociedade portuguesa vezes demais nem sequer permitiu que se lhes pusessem... 

 

Não vou maçar-te com discursos tratadistas, deixa-me só citar-te passos de autores vários que poderão ajudar-nos na interrogação desses que, quiçá, serão alguns dos nossos atuais mitos alienantes, como a lusofonia, o Atlântico, o Brasil, a África, etc., etc.. Se bem me lembro, já João Gaspar Simões emitia reservas sobre o português do premiado Luandino Vieira, torcendo o nariz ao uso de vocabulário de raiz regional ou dialectal angolana e outros idiomatismos... E talvez me não engane muito ao dizer-te que o famigerado acordo ortográfico também é uma tentativa de controlo da língua portuguesa pelos seus primeiros "proprietários"... Simplesmente, a meu ver, vira-se mesmo assim o feitiço contra o feiticeiro: gerou-se mais confusão no que já era um medíocre tratamento do português por uma geração de nativos europeus, em que deparamos com alunos e, até, docentes universitários a falar e escrever a língua pátria bem pior do que gente do tempo dos nossos avós que apenas recebera instrução primária; e, pior, vai-se fazendo com que se percam oportunidades de cada um poder descobrir caminhos para chegar à origem das palavras e melhor entender o seu significado e a relação entre elas. Mas vou a um trecho do professor Onésimo Almeida, no seu A Obsessão da Portugalidade (Quetzal, Lisboa, 2017):

 

A transformação da língua portuguesa em África é um fenómeno mais recente e mais escrutinizado pelo antigo poder dominante. Agora libertos, os escritores africanos têm vindo a fazer um maravilhoso trabalho linguístico, tornando verdadeiro para eles próprios o dito de Pessoa/Bernardo Soares «A minha pátria é a língua portuguesa». Basta vermos as posições de Jofre Rocha, Suleiman Cassamo, Paulina Chiziane («Uma coisa que eu deixo muito clara: português-padrão, nunca! Não estou interessada.»), Henrique Teixeira de Sousa, Raul David ou Boaventura Cardoso. Este angolano, em particular, é sucinto e claro:

 

   [...] essa língua vai-se enriquecendo de uma forma acelerada, vai-se afastando cada vez mais da norma do português falado em Portugal. Não será uma língua diferente, não será outra língua, mas haverá certamente muitas contribuições novas que resultarão da coexistência entre a língua portuguesa e as mais diversas línguas nacionais. Porque a língua portuguesa coexiste com as línguas nacionais. E, naturalmente, dessa coexistência resultarão uma série de empréstimos - quer para a língua portuguesa, quer para as próprias línguas nacionais. Eu acho que a língua portuguesa em Angola vai sofrer profundas alterações - aliás está sofrendo neste momento - e nalguns casos haverá um afastamento considerável em relação à norma do português falado em Portugal.

 

Luandino Vieira, o esplêndido criador literário que tão bem soube aprender com Guimarães Rosa a transformar a linguagem da gente e a fazer com ela obras de arte - cadeia que desembocou depois no mágico Mia Couto -, captou o problema nestes termos:

 

   Não tenho dúvida nenhuma [...] as nossas crianças não vão falar, evidentemente, o português de Portugal [...]. [Ele] mantém-se, mas o resultado vai ser outro. Ainda não se percebe muito bem como é que vai ser.

 

Nem se poderá facilmente adivinhar. Recordo-me, Princesa de mim, dos meus 25 meses de Guiné, em que diariamente tinha de lidar com onze diferentes línguas nativas que, evidentemente, eu não entendia. Mas falava longamente com os intérpretes, procurava sobretudo entender como se formavam as expressões de diversos modos de pensar. Qualquer língua, ou linguagem, é basicamente uma forma de expressão, sendo ainda verdade, por outro lado, que quando se ensina ou transmite uma língua também se está traduzindo um certo modo de pensar. O crioulo (cabo-verdiano e guineense) era igualmente um cadinho de misturar línguas várias, entre as quais se reconhecia a portuguesa, curiosamente mais pelo vocabulário que emprestava, do que pela sintaxe que a sustentava. Dei comigo a compor, só para mim, uma espécie de gramática do crioulo. Já lá vão 50 anos... Talvez a descubra um dia, numa das caixas de manuscritos que nesta casa dormem e ainda não acordei. Numa antiga entrevista ao Jornal de Letras, intitulada Um Escritor Abensonhado, o moçambicano Mia Couto diz bem o que, alhures e por diferente experiência, eu aprendera na Guiné:

 

   Os moçambicanos não são apenas consumidores, mas também produtores ou coprodutores da língua e, nesse aspeto, fazem-no com muita liberdade e de modo que a cultura que lhes é própria faça estalar o edifício do português-padrão e dessa fratura haja a emergência de termos novos, de construções novas. E essas fraturas deixam ver outra sensibilidade, outra cultura, outra maneira de olhar o mundo.

 

Pessoalmente, sou grande leitor de escritores africanos lusófonos, designadamente Agualusa, Mia Couto e Ondjaki. E recorro também frequentemente aos seis gordos volumes do dicionário Houassis, um vade mecum da minha lusofilia. E sinto-me muito mais feliz no ambiente de um universo linguístico e literário em expansão, do que no colete dos purismos castiços ou, pior ainda, na pretensiosa disciplina de um pretenso acordo ortográfico. Sem que tal impeça, ou sequer condicione o meu estilo de escrita, na expressão que aprendi, acarinhei e amo. E serei sempre mais contente pelo encontro de Houassis alargados do que pela mesquinhez de acordos ortográficos.

 

     Camilo Maria

 

 

Camilo Martins de Oliveira

 

 

 

EVOCAÇÃO DO TEATRO MUNICIPAL DE SÃO LUIZ

 

Chamam-me a atenção para um livro sobre Lisboa, publicado em Paris: “Lisbonne – Histoire, Promenades, Anthologie et Dictionnaire”, dirigido por Luísa Braz de Oliveira (ed. Robert Laffont) que evoca e analisa a cidade num pluralismo de aspetos e dimensões que efetivamente dão uma visão abrangente do historial mas também da realidade contemporânea e quotidiana: e isto, num conjunto de mais de 20 autores franceses e portugueses. E nesse conjunto heterogéneo mas coerente, sobressai a tradição de salas de espetáculo, com destaque para o que é hoje o Teatro Municipal de São Luiz. O Teatro é referido por António Pinto Ribeiro num texto denominado “Lisbonne aux Allés de Jacarandas”.

 

Mas voltemos atrás, a própria denominação merece referência histórica. Na verdade o teatro é inaugurado em 22 de maio de 1894 com a ópera “A Filha do Tambor Mór” de Offenbach e à data chama-se Teatro D. Amélia, homenagem à Rainha homónima. A partir da implantação da República passa a chamar-se precisamente Teatro República. Mas a iniciativa original partira de um luso-brasileiro, o Visconde de São Luis Braga, nascido no Rio Grande do Sul de pais portugueses e que aqui retornou. 

 

É de assinalar que o projeto original ficou a dever-se ao arquiteto Ernesto Luis Raymond, com intervenções relevantes de elementos ligados à produção teatral – e desde logo os cenógrafos Luigi Manini e Carlo Rossi.

 

O edifício ardeu em 1915, mas em boa hora foi devidamente restaurado, mantendo-se o estilo original. Adotou o nome atual em 1918 e converte-se em cinema a partir de 1926. Mas, tal como já escrevi, pelo menos desde 1896 efetuaram-se projeções de “animatógrafo”: de tal forma que em 1911 o Jardim de Inverno é autonomizado como cinema com a designação insólita de “The Wonderful” nada menos… Durante décadas foi sobretudo cinema: e em certas épocas era denominado São Luis Cine.

 

É interessante aliás recordar, tal como já escrevemos, que o São Luiz sempre albergou, desde a origem, o que de melhor existiu em Portugal no que respeita a espetáculos. Desde as companhias de Rosas e Brazão à estreia de Amélia Rey Colaço, passando por artistas “históricos” como Ferreira da Silva, Adelina e Aura Abranches, Lucília e Lucinda Simões, Erico Braga, Chaby Pinheiro, até às gerações mais recentes, antes pelo menos dos anos 70 e de certo modo até hoje. E no que toca a artistas estrangeiros, a tradição vem das origens: desde Sarah Bernard, à Duse, à Novelli, Réjane, Raf Valone, Edwige Feillere, Maurice Chevalier, até aos mais recentes.

 

E no que respeita à dramaturgia portuguesa, recordo que por lá passaram em estreia peças de Marcelino Mesquita, Júlio Dantas, Lopes de Mendonça, José Régio, Bernardo Santareno, Sttau Monteiro... (cfr. “Teatros de Portugal” ed. INAPA 2005).  

 

Em qualquer caso, o São Luiz é municipalizado em 1971. Mas manteve entretanto a tradição de teatro, cinema e sala de concertos que vinha da origem. Basta ler a extraordinária coleção de placas evocativas que preenchem as paredes dos foyers da plateia e balcão.

 

José Augusto França evoca a chamada I Conferencia Futurista de Almada Negreiros no São Luiz, em 14 de abril de 1917, em que apresentou o “Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX”.

 

“À minha entrada no palco rebentou uma espontânea e tremenda pateada, seguida de uma calorosíssima salva de palmas que eu cortei com um gesto. Reduzida a plateia à sua inexpressão natural, tive a glória de apresentar o futurista Santa-Rita-Pintor que o público recebeu com uma ovação unânime. Comecei então o meu ultimatum à juventude portuguesa do século XX e a plateia acostumada a conferências exclusivamente literárias e pedantes chocou-se nitidamente com a virilidade das minhas afirmações pelo que executava premeditadas e cobardes reprovações isoladas mas sem efeito do conjunto”...

 

E refere então José Augusto França:

“Assim descreve Almada, no Portugal Futurista de Novembro, o início da cerimónia de que foi o protagonista visível, dentro de um fato de macaco de aspeto clownesco”... (cfr. “A Arte em Portugal no Século XX”  Liv. Bertrand 1974).

 

DUARTE IVO CRUZ

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

 

XXIII - PEGGY GUGGENHEIM

 

Após a grande depressão e crise económica de 1929, o governo de Roosevelt decidiu implementar, a partir de 1933, um conjunto de programas designados por Federal Arts Projets (F.A.P.), destinados a auxiliar os artistas de situação vulnerável.

 

Tais incentivos, anteriores à segunda guerra mundial, foram favoráveis à consolidação e inovação das artes gráficas, fotografia, teatro, música, escultura, pintura, arquitetura, tendo como resultado imediato o reconhecimento do estatuto do artista, incompreendido e mal visto, até então.  

 

Escultores e pintores foram chamados e grandemente sustentados pela Works Progress Administration`s Federal Art Projet (W.P.A. - F.A.P., 1935/43), que lhes encomendou trabalhos murais, entre vários, para edifícios públicos e instituições governamentais, como que uma continuação da monumentalidade dos arranha céus das novas urbes americanas.  

 

Encomendas que também seriam feitas por magnatas e mecenas particulares, instituições privadas e pessoas singulares, incluindo filantropos, como Nelson Rockfeller, Solomon Robert Guggenheim e Peggy Guggenheim.

 

Pelo influente e poderoso impulso que deu para que Nova Iorque e a sua Escola se tornasse o novo centro da arte moderna internacional, no após guerra, merece destaque uma mulher: Peggy Guggenheim.

 

O apelido Guggenheim já era sinónimo de arte contemporânea de primeira água em todo o mundo, dada a criação da Fundação por Solomon Guggenheim, tio de Peggy, em 1937, formando uma rede de locais de exposição em vários países, desde os Estados Unidos à Rússia, passando pela Alemanha e Espanha. E Itália, em Veneza, onde está um dos atuais museus que a Fundação dirige, que integra a coleção pessoal deixada por Peggy Guggenheim.

 

Peggy era uma mulher ousada, de vida excêntrica, caprichosa, chocante, provocadora, irónica e divertida, mas também determinada e inteligente, cujos biógrafos lhe atribuem três grandes amores e paixões: dinheiro, homens e arte moderna. Obteve o dinheiro por herança, sendo o pai uma pessoa de negócios finado no naufrágio do Titanic. A ávida paixão pelos homens, catapultou-a com a fama de ter uma lista indeterminada, se não mesmo inflacionada, de amantes. Quando interpelada quantos maridos teve na vida, respondeu: “Meus ou de outras mulheres?”. O amor pela arte moderna adquiriu-o do pai e do tio Solomon, bem como do seu gosto pela aventura e pelo vanguardismo da época.

 

Irreverente e extravagante, gostava de pessoas destemidas, não convencionais, amando a vida, com muito gosto, pisando o risco, se não no limite. Nada melhor que a zona central, cosmopolita, cultural e boémia de Paris, para onde se mudou, quando ainda nova, deixando a zona abastada e mais tradicional da Nova Iorque de então. Em França conheceu a vanguarda parisiense e europeia que admirava. Em Londres quis fundar um museu de arte moderna, que a guerra inviabilizou.

 

Regressou a Paris. Antes que a guerra avançasse, comprou e colecionou obras de arte de artistas recomendadas pelos seus amigos Marcel Duchamp e pelo historiador de arte britânico Herbert Read.

 

A ocupação alemã do território francês, obrigou-a a regressar aos Estados Unidos. Passou por Lisboa, Estoril, Cascais e Sintra, com o marido, filhos, o pintor e amante Max Ernst, que ajudou a fugir e com quem, mais tarde, viria a casar. Presume-se que parte da sua coleção transitou por Portugal, disfarçada entre haveres pessoais. Do acervo que adquiriu, colecionou e enviou para Nova Iorque, havia obras de Dalí, Klee, Magritte, Miró, Léger, entre muitas, assim como a elegante escultura de Brancusi Pássaro no Espaço. 

 

Integrada, de novo, em Nova Iorque, abre a galeria de vanguarda The Art of This Century, em 1942, cujo interior foi entregue ao arquiteto austríaco da moda Frederik Kiesler, aí expondo obras que colecionou e para venda, de amigos e autores europeus, muitos fugidos à guerra, alguns com a sua ajuda, ao lado de artistas seus compatriotas. Jackson Pollock foi uma das descobertas de Peggy, que a sua galeria consagrou, após insistentes recomendações de Mondrian sobre a novidade da sua obra.

 

Artistas europeus emigrados, americanos, a comunidade artística de Manhattan, a elite e intelectualidade nova iorquina frequentavam a galeria como um lugar de culto, confraternização e convívio, numa atmosfera criativa de novas experiências,  interculturalidade e interdependência de ideias,  numa mescla de ansiedade e esperança, após a grande depressão e a segunda guerra mundial, consolidando a ascensão dos Estados Unidos como superpotência.

 

Foi neste cenário que surgiu a Escola de Nova Iorque, de que Peggy foi poderosa impulsionadora, colecionadora e mecenas, rodeando-se dos melhores em ajuda e orientação, apesar de orgulhosa e decidida, sabendo-os ouvir, numa comissão consultiva com assessores como Marcel Duchamp, Piet Mondrian e Alfred Barr.

 

Superou todos os preconceitos contra as mulheres, e nomeadamente por ser mulher, desde as anedotas, más línguas e mexericos de ninfomaníaca, até à censura e inveja de ser uma mulher dominante no mundo da arte, dirigindo e financiando uma galeria vanguardista, ao mesmo tempo que apoiava artistas e escritores.

 

Morreu em Itália, em 1979, onde está o seu túmulo, em Veneza, ao lado do dos seus cães, nos jardins que integram o palácio/museu que alberga a sua coleção. Local onde somos recebidos pela escultura de Marino Marini, The Angel of the City (O anjo da Cidade), de 1948, onde cavalo, cavaleiro e falo são os elementos visuais que pontuam, desafiando os cânones convencionais, fazendo jus a um gosto por chocar, chamativo e mordaz. Consta que Peggy, discretamente, enquanto viva, gostava de observar a reação dos transeuntes e visitantes da janela de uma sala.                                                                                        

19.09.2017

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

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