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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Estou de volta àquela página de diário que escrevi em Scarsdale, num fim de serão, há trinta e três anos atrás. Na minha última carta, deixara-te esse meu texto no fim de uma citação de São Tomás de Aquino que dizia: Por isso falamos de amor íntimo e das entranhas da caridade... Logo adiante acrescentei: «E lembramos Camões: Transforma-se o amador na coisa amada / por virtude do muito maginar; / não tenho logo mais que desejar / pois em mim tenho a parte desejada. // Se nela está minha alma transformada, / que mais deseja o corpo de alcançar? / Em si somente pode descansar / pois consigo tal alma está liada. Lembrei-me de procurar estas reminiscências na desvairada biblioteca que trago comigo, depois de ter aberto ao acaso um dos volumes do Le je-ne-sais-quoi et le Presque rien do Vladimir Jankélévitch:

 

   Mais Platon pense que l´amour n´est ni ce vieillard vénérable, ni ce jouvenceau ridicule; à vrai dire, Diotime, porte-parole de Platon [no "Banquete", e continuo com Jankélévitch, mas traduzindo-o], descreve-nos um Amor mais próximo dos jovens do que dos velhos, posto que o Amor, segundo ela, está, vez a vez, em plena flor e moribundo e de novo renascente; infatigável caçador, eterno aprendiz, incorrigível noctâmbulo - eis o Amor! Em resumo, foi Pascal quem com maior clareza formulou o paradoxo do Amor: "O amor não tem idade, está sempre a nascer..." Por isso os poetas no-lo representam como uma criança. O amor é simultaneamente criação e reprodução; é totalmente aurora radiosa de uma nova era e herdeiro duma continuidade biológica, duma tradição imemorável. Quantas incontáveis vezes não terá sido repetida a palavra do amor, desde que o mundo é mundo? E sempre nos mesmos termos! E todavia o novel enamorado que hoje declara o seu novo amor improvisa essa palavra como se fosse o primeiro namorado desde a origem dos tempos, como se ninguém, antes dele, jamais tivesse pronunciado a palavra do amor, como se pela a primeira vez na história do mundo um homem dissesse o seu amor a uma mulher ; os próprios gestos do amor, gestos cuja iniciativa se perde na longínqua noite dos primórdios, dir-se-ia que o novel enamorado os reinventa a par e passo: porque cada homem, nesses momentos, é um inspirado e um inventor de génio. Tornando insensível a eterna repetição, o encanto sempre renovado arrasta o namorado no seu incansável impulso; cada manhã é para ele a primeira manhã do mundo.

 

   E, nesta catalisação de memórias e raízes que me provocou a conversa ao jantar (que andou muito à volta da demanda do reconhecimento ou angústia do irreconhecimento em Camus), recordo um texto de Diniz, teólogo antigo, no seu Tratado dos nomes divinos: O Amor é ele mesmo causa de tudo. Pelo excesso da sua bondade ele ama tudo. Faz tudo. Contém tudo. Realiza e leva tudo à plenitude. Ele é, Eros divino, bom, a própria Bondade, a Bondade emanente pela Bondade. Na verdade, Amor benfeitor dos seres, substituindo-se ele mesmo no Bem, infinitamente, não quis que o Bem permanecesse estéril, e levou-o a operar segundo a infinita eficácia da sua virtude.

 

   Depois da conversa sobre Camus e Sartre, etc., lembrei-me de ir a uma dessas estantes em que o Livro Sexto da Sophia está ao lado de títulos como Business Economics e o Ricardo Reis ombreia com o Código Comercial -  à caça de A Capital do Eça que, por acaso, se encostava ao Romancero Gitano e aos Veinte Poemas de Amor (Llorca de um lado, Neruda do outro). Porquê? Porque me lembrei de que Artur Corvelo é pretexto para descrever a superficialidade, a projeção desenraizada, a dificuldade ou impossibilidade de comunicar. E quis que a "minha" criançada me ouvisse ler, naquele português queirosiano, as fantasias, as peneiras, as deceções, as vergonhas, os melindres, os desgostos e as agressividades contidas, ou não, de um jovem provinciano incomunicado num salão (afinal provinciano também) de Lisboa.

 

   Tudo, esconso, está no olhar interior que nos criamos e nos faz nascer. Diz uma canção de Coimbra: És linda, se foras feia / mesmo assim eu te queria... / Não é por ser lua cheia / que a lua mais alumia... E posso dizer precisamente o mesmo, assim:

És feia, se foras linda / mesmo assim eu te queria... Mais luminosa brilharia então essa virtude criadora que se chama ternura. O amor não tem idade nem gosto, é um sopro de Deus.»

 

   Mais de três décadas depois, a minha biblioteca está muito maior e, com a instalação definitiva em Portugal, vou-lhe dando outra arrumação... que, aliás, inclui a doação de muitos, muitos livros. A pouco e pouco, com tempo até para ir tecendo novos panoramas de leituras idas e lembranças, de relações sem idade. Às vezes, um livro que agarro para lhe achar o lugar em estante retém-me, para que o vá ligar ao que me vai no peito ou na cabeça. Assim me encontrei hoje nas Maximes et Réflexions de François VI de La Rochefoucauld. Deixo-te, para fecho desta carta, as sentenças ou máximas morais fixadas no texto de 1678, com os números 68 a 76, que traduzo: É difícil definir o amor. O que se pode dizer é que, na alma, é uma paixão de reinar; nos espíritos, é uma simpatia, e no corpo mais não é do que um desejo escondido e delicado de possuir o que se ama depois de muitos mistérios... ... Se há amor puro e isento de mescla com as nossas outras paixões, é o tal que se esconde no fundo do coração e nós próprios ignoramos...   ... Não há disfarce algum que por muito tempo possa esconder o amor que aí esteja, nem fingi-lo onde ele não está...   ... Não há pessoas que não se envergonhem de se terem amado, quando já não se amam...   ... Se julgarmos o amor pela maioria dos seus efeitos, parece-se mais com o ódio do que com a amizade...   ... Podemos encontrar mulheres que nunca tiveram galanteria, mas é raro encontrar alguma que apenas tivesse tido só uma...   ... Há só uma espécie de amor, mas dele existem mil diferentes cópias...   ... O amor, tal como o fogo, não pode subsistir sem um movimento contínuo, e deixará de viver logo que deixe de esperar ou de temer.

 

 

   Das considerações de La Rochefoucauld posso concluir que o amor é uma potência ativa, só como ato existe, mas cuja essência ainda ignoramos, pois quanto muito apenas sabemos que se esconde no fundo do nosso coração. E é bem certo que muitas vezes com amor se confundem paixões de domínio e de posse... o que não significa que essas, ainda se contraditórias do bem querer, sejam totalmente estranhas ao impulso nativo do desejo de amar. Por isso, em carta anterior, eu te dizia que o amor se destila no silêncio do coração, no despojamento interior de cada si. Amores há muitos e diversos, todos eles devem ser filtrados por esse exercício ascético da procura do encontro do Amor. Como escreveu São João: para que seja completa a nossa alegria. 

 

Camilo Maria

     
Camilo Martins de Oliveira