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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

 

RECORDAÇÕES IMAGINÁRIAS: O TEMPO DA CABALA

 

1 - O termo cabala surgiu no léxico político português recente com Ferro Rodrigues, quando este, na sequência da prisão de Paulo Pedroso e de rumores que também o incriminavam (o famoso "e o Ferrinho também não escapa", atribuído a um desembargador folgazão), veio a terreiro avisar que estava em curso uma cabala contra o Partido Socialista, de que era então secretário-geral. Houve quem o acreditasse, houve quem o ridicularizasse. O que é certo é que, com cabala ou sem cabala, gerou-se, com o tempo, um vasto consenso sobre o "erro monumental" de uma tal acusação, que estaria na base da sua futura desgraça política. Erro dele? Pelo menos, má fortuna não convém dizer, pois que a invocação das casualidades da sorte (ou da deusa da cornucópia e do leme) já demasiado se aproxima de sentidos cabalísticos. Recentemente, a palavra voltou a dar que falar, quando o ministro Gomes da Silva citou uma cabala urdida pelo PÚBLICO, "Expresso" e Marcello Rebelo de Sousa contra o Governo a que ele pertence. Não vou glosar o tema da "cabala involuntária" que já lhe valeu os mofos de gregos e troianos. Pode-se é agourar (outro vocábulo assaz suspeito) que a expressão lhe vai ficar colada à pele e lhe será recordada de cada vez que abrir a boca que o ofício o impede de cerrar. Tão depressa, mais ninguém se atreverá a falar de cabalas, ou só o fará com superioridade irónica. Em artigo publicado neste jornal (PÚBLICO, 30 de outubro de 2004) Helena Matos, muito racionalista, diz-nos: "Venham elas donde vierem (...) as histórias das cabalas produzem em mim sempre o mesmo efeito: nos primeiros minutos começo a olhar para a parede mais próxima na esperança de que a mesma caia e, quem sabe, engula o meu interlocutor. Depois, consoante as horas a que tais relatos ocorrem, ora tenho de reprimir uns óbvios bocejos, ora começo a ser atacada por uma espécie de nervoso miudinho." Convenhamos que a esperança e a reacção mais nervosa têm o seu quê de "cabalístico", pelo menos na ampla aceção que a autora depois dá ao termo, quando passa do significado mais comum ("negociação secreta e artificiosa", "intriga de grupo, partido ou fracção secretamente conluiados para determinado fim") para sentidos de outro calibre, apontando "sociedades secretas, símbolos enigmáticos e forças obscuras" em luta pelo poder. Paredes a cair, lembram-me irresistivelmente o Livro de Daniel, que não é propriamente o melhor exemplo que se pode dar do uso do livro arbítrio, ou, em termos de Helena Matos, dos resultados das responsabilidades dos nossos actos. 

Não me move, contudo, qualquer desejo de embirrar com a minha colega colunista. O que me surpreendeu foi ver, metidos no mesmo saco, dislates ministeriais e um suposto ou real "espelho do tempo", traduzido pela atracção provocada por códigos Da Vinci e quejandos, que confirmariam, nos adultos, a "tendência que os livros juvenis de Harry Potter vinham anunciando".

 

2 - Como se sabe (não há nada melhor do que ensinar o padre-nosso ao vigário) cabala provém do termo hebraico "kabbalah", que literalmente, segundo me ensinaram, quer dizer "ensino oculto". Historicamente, está conotado com uma interpretação mística, alegórica e esotérica do Antigo Testamento, que floresceu sobretudo a partir do século XII. Mas também há quem diga que o termo pode ser traduzido por "tradição", pois que as revelações cabalísticas mais não fariam do que permitir a transmissão da mensagem não escrita, comunicada pelo Senhor Iavé a Adão e a Moisés. 
Inspiração maior para esta doutrina (que remontaria ao século I da nossa era) é o Livro de Daniel, o mais visionário dos textos da Tora e, talvez por isso, o que mais influenciou (indirectamente) o Apocalipse de S. João. As visões de Ezequiel apontam um dos mundos mais fantásticos da literatura da Antiguidade, sobretudo na descrição dos quatro animais do carro de Iavé; na "sarabanda cultual" do Templo, com seus monstros e ídolos; na célebre descrição das ossadas renascidas; ou na profecia do Tempo futuro, donde brotaria o rio de ouro. 
"Foi no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto, quando me achava entre os deportados, nas margens do rio Kebar, que o céu se abriu e eu presenciei as visões divinas. No dia quinto do mês - era o quinto ano do exílio do rei Jojaquim - a palavra de Iavé foi ouvida pelo sacerdote Ezequiel, filho de Buzi, no país dos caldeus, nas margens do rio Kebar." "Antes de ouvir a voz de Iavé ('Filho do homem, de pé, que Eu te vou falar') Ezequiel teve a visão do Carro do Senhor, conduzido por quatro animais de forma humana. Tinham quatro faces e quatro asas, cada um (...)." "Tinham uma face de homem e todos os quatro tinham à direita uma face de leão e todos os quatro tinham à esquerda uma face de touro e todos os quatro tinham uma face de águia (...)." "As rodas do carro pareciam ter o brilho do crisólito (...) Quando os animais avançavam, as rodas avançavam junto a eles e, quando os animais se erguiam da terra, as rodas erguiam-se com eles. Para onde o Espírito os guiava, as rodas dirigiam-se também e também, como eles, se elevavam, pois que o espírito do animal estava em as rodas (...). E o que estava sobre as cabeças do animal assemelhava-se a uma abóbada resplandecente como o cristal (...)." "E, por cima da abóbada que estava sobre as cabeças deles, havia qualquer coisa que se assemelhava a uma pedra de safira, em forma de trono e sobre esta forma de trono, ainda mais por cima, havia um ser com aparência humana. E vi que Ele brilhava como brilha o mínio e junto a ele havia algo como se fosse fogo, envolvendo-o completamente desde o que pareciam ser os seus rins, até abaixo deles. E esse fogo assemelhava-se ao arco que se vê no céu nos dias de chuva (...). Qualquer coisa que tinha o aspecto da glória de Iavé."  Não é muito de espantar que uma tal visão tenha servido de tudo e para tudo. O leão, o touro, a águia e a figura humana foram, no cristianismo, os símbolos dos quatro evangelistas. O carro de fogo, a "merkava" da Kabala, bem como o divino trono, foram a visão prometida aos iluminados, os únicos a poder aceder aos dez números divinos de Deus Criador, através das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. Na sua globalidade, esses eram os "trinta e dois caminhos para a sabedoria divina".

 

3 - Se me demorei no primeiro capítulo do livro de Ezequiel, foi mais por prazer estético do que por intenção programática. O carro atravessou-se-me no caminho da Kabala e não resisti. Se o não travasse (releve-se-me a impenitência), conhecendo-me como me conheço, não sei até onde iria, até porque a visão continua alguns capítulos adiante. Mas uma tal torrente de misticismo, de que se podiam dar múltiplos e mais esotéricos desenlaces (quisesse eu continuar a resumir a história da Kabala), não exclui, antes inclui (ao contrário do que parece pensar Helena Reis, na sua diatribe contra os ocultismos) duas advertências solenes à responsabilidade pessoal (capítulos XIV e XVIII do mesmo Livro). Ezequiel foi também o primeiro a sustentar, nesses capítulos, que a salvação do homem, ou a sua perdição, não dependem nem dos antepassados, nem dos contemporâneos, nem mesmo dos erros passados. Se o indivíduo (passe o modernismo) agir rectamente, Iavé o salvará e salvará os homens que o seguirem. No pecado e na redenção, só o homem é responsável pelos seus actos, o que já levou tantos comentadores a considerarem-no o primeiro grande individualista da tradição bíblica. "Se os pais comerem das uvas verdes, os dentes dos filhos rangerão", era provérbio antigo de Israel. Iavé diz a Ezequiel: "Pela tua vida, oráculo do Senhor Iavé, nunca mais repitas este provérbio." "Todas as vidas contam para Mim, tanto a vida do pai como a vida do filho. Só aquele que pecou morrerá." "Aquele que for justo, que respeitar o direito e a justiça, que não comer no alto das montanhas, que não levantar os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não conspurcar a mulher do próximo, que não se aproximar de uma mulher durante a sua impureza, que não oprimir ninguém, que restituir o que tirou, que não cometer rapinas, que der de comer a quem tem fome e de vestir a quem está nu, que não emprestar usurariamente, que não cobrar juros, que desviar a mão do mal, que der testemunho verídico perante os homens, que se conduzir segundo a minha lei e observar os meus costumes agindo segundo a verdade, esse homem é verdadeiramente justo, oráculo de Iavé." Ignoro se a Kabala desenvolveu esta linha, numa das passagens do Antigo Testamento que mais anuncia o Novo. Não me admiraria nada se o tivesse feito. É que na história da humanidade, ao contrário do que tantos pensam, só a razão desacompanhada (não estou a falar da razão pura) gerou monstros e gerou a irracionalidade que tanto quis combater. Os dois mestres supremos dos séculos passados - Freud e Marx - dão-nos exemplos abundantes e aqui - ao que julgo - estou de acordo com Helena Matos. Mas, ao contrário do que ela parece acreditar, são as boas histórias que fazem a História. O mal dos Códigos em moda é serem más histórias. De outras, igualmente "cabalísticas", que vão dos poemas homéricos aos Cavaleiros da Távola Redonda, da "Divina Comédia" aos "Lusíadas", de Proust a Beckett, nunca veio mal ao mundo e pelo contrário veio muito bem. Eu diria, veio o melhor, mas isso já é outra conversa. Ou, como um dia escreveu George Steiner: "Não há, não pode haver, nesta terra, uma comunidade, por mais rudimentares que sejam os seus meios materiais (...), sem essas narrativas da recordação imaginada a que chamamos 'mito' e 'poesia'. Há, de facto, verdade na equação e no axioma; mas é uma verdade menor." A Cabala - a única que me interessa - é, também, mito e poesia. "Narrativa da recordação imaginária." Verdade maior.

 

por João Bénard da Costa
5 de novembro 2004, Público