AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO
XXIII - PEGGY GUGGENHEIM
Após a grande depressão e crise económica de 1929, o governo de Roosevelt decidiu implementar, a partir de 1933, um conjunto de programas designados por Federal Arts Projets (F.A.P.), destinados a auxiliar os artistas de situação vulnerável.
Tais incentivos, anteriores à segunda guerra mundial, foram favoráveis à consolidação e inovação das artes gráficas, fotografia, teatro, música, escultura, pintura, arquitetura, tendo como resultado imediato o reconhecimento do estatuto do artista, incompreendido e mal visto, até então.
Escultores e pintores foram chamados e grandemente sustentados pela Works Progress Administration`s Federal Art Projet (W.P.A. - F.A.P., 1935/43), que lhes encomendou trabalhos murais, entre vários, para edifícios públicos e instituições governamentais, como que uma continuação da monumentalidade dos arranha céus das novas urbes americanas.
Encomendas que também seriam feitas por magnatas e mecenas particulares, instituições privadas e pessoas singulares, incluindo filantropos, como Nelson Rockfeller, Solomon Robert Guggenheim e Peggy Guggenheim.
Pelo influente e poderoso impulso que deu para que Nova Iorque e a sua Escola se tornasse o novo centro da arte moderna internacional, no após guerra, merece destaque uma mulher: Peggy Guggenheim.
O apelido Guggenheim já era sinónimo de arte contemporânea de primeira água em todo o mundo, dada a criação da Fundação por Solomon Guggenheim, tio de Peggy, em 1937, formando uma rede de locais de exposição em vários países, desde os Estados Unidos à Rússia, passando pela Alemanha e Espanha. E Itália, em Veneza, onde está um dos atuais museus que a Fundação dirige, que integra a coleção pessoal deixada por Peggy Guggenheim.
Peggy era uma mulher ousada, de vida excêntrica, caprichosa, chocante, provocadora, irónica e divertida, mas também determinada e inteligente, cujos biógrafos lhe atribuem três grandes amores e paixões: dinheiro, homens e arte moderna. Obteve o dinheiro por herança, sendo o pai uma pessoa de negócios finado no naufrágio do Titanic. A ávida paixão pelos homens, catapultou-a com a fama de ter uma lista indeterminada, se não mesmo inflacionada, de amantes. Quando interpelada quantos maridos teve na vida, respondeu: “Meus ou de outras mulheres?”. O amor pela arte moderna adquiriu-o do pai e do tio Solomon, bem como do seu gosto pela aventura e pelo vanguardismo da época.
Irreverente e extravagante, gostava de pessoas destemidas, não convencionais, amando a vida, com muito gosto, pisando o risco, se não no limite. Nada melhor que a zona central, cosmopolita, cultural e boémia de Paris, para onde se mudou, quando ainda nova, deixando a zona abastada e mais tradicional da Nova Iorque de então. Em França conheceu a vanguarda parisiense e europeia que admirava. Em Londres quis fundar um museu de arte moderna, que a guerra inviabilizou.
Regressou a Paris. Antes que a guerra avançasse, comprou e colecionou obras de arte de artistas recomendadas pelos seus amigos Marcel Duchamp e pelo historiador de arte britânico Herbert Read.
A ocupação alemã do território francês, obrigou-a a regressar aos Estados Unidos. Passou por Lisboa, Estoril, Cascais e Sintra, com o marido, filhos, o pintor e amante Max Ernst, que ajudou a fugir e com quem, mais tarde, viria a casar. Presume-se que parte da sua coleção transitou por Portugal, disfarçada entre haveres pessoais. Do acervo que adquiriu, colecionou e enviou para Nova Iorque, havia obras de Dalí, Klee, Magritte, Miró, Léger, entre muitas, assim como a elegante escultura de Brancusi Pássaro no Espaço.
Integrada, de novo, em Nova Iorque, abre a galeria de vanguarda The Art of This Century, em 1942, cujo interior foi entregue ao arquiteto austríaco da moda Frederik Kiesler, aí expondo obras que colecionou e para venda, de amigos e autores europeus, muitos fugidos à guerra, alguns com a sua ajuda, ao lado de artistas seus compatriotas. Jackson Pollock foi uma das descobertas de Peggy, que a sua galeria consagrou, após insistentes recomendações de Mondrian sobre a novidade da sua obra.
Artistas europeus emigrados, americanos, a comunidade artística de Manhattan, a elite e intelectualidade nova iorquina frequentavam a galeria como um lugar de culto, confraternização e convívio, numa atmosfera criativa de novas experiências, interculturalidade e interdependência de ideias, numa mescla de ansiedade e esperança, após a grande depressão e a segunda guerra mundial, consolidando a ascensão dos Estados Unidos como superpotência.
Foi neste cenário que surgiu a Escola de Nova Iorque, de que Peggy foi poderosa impulsionadora, colecionadora e mecenas, rodeando-se dos melhores em ajuda e orientação, apesar de orgulhosa e decidida, sabendo-os ouvir, numa comissão consultiva com assessores como Marcel Duchamp, Piet Mondrian e Alfred Barr.
Superou todos os preconceitos contra as mulheres, e nomeadamente por ser mulher, desde as anedotas, más línguas e mexericos de ninfomaníaca, até à censura e inveja de ser uma mulher dominante no mundo da arte, dirigindo e financiando uma galeria vanguardista, ao mesmo tempo que apoiava artistas e escritores.
Morreu em Itália, em 1979, onde está o seu túmulo, em Veneza, ao lado do dos seus cães, nos jardins que integram o palácio/museu que alberga a sua coleção. Local onde somos recebidos pela escultura de Marino Marini, The Angel of the City (O anjo da Cidade), de 1948, onde cavalo, cavaleiro e falo são os elementos visuais que pontuam, desafiando os cânones convencionais, fazendo jus a um gosto por chocar, chamativo e mordaz. Consta que Peggy, discretamente, enquanto viva, gostava de observar a reação dos transeuntes e visitantes da janela de uma sala.
19.09.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício