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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A VIDA DOS LIVROS

 

De 4 a 10 de setembro de 2017.

 

Eduardo Lourenço ensinou-nos que ao contrário do que muitos disseram, a Geração portuguesa de 1870 não foi nem exemplo de decadência, nem sinal de desistência. Pelo contrário, quem ler com atenção a sua obra crítica facilmente encontrará a busca persistente de uma saída positiva baseada na capacidade de regeneração ou de renascença de Portugal.

 

 

A CHAVE DA HISTÓRIA
A célebre conferência de Antero de Quental no Casino Lisbonense em 1871 sobre as causas da decadência do povos peninsulares constitui, muito mais do que uma intervenção circunstancial, uma chave para o tempo que se seguiu e no qual ainda participamos. Não por acaso, Miguel de Unamuno considerou esse momento como o culminar do “século de ouro português”. É certo que há paradoxos e contradições, mas o que aparece com nitidez é a ideia da procura de fatores democráticos, capazes de mobilizar os cidadãos e de fixar as riquezas… Antero falava de três causas da decadência: Trento, o Absolutismo e as Conquistas. O fechamento religioso, a centralização política protecionista e a dispersão de um império dificilmente governável para um país europeu de dimensão média – tudo isso determinou a incapacidade de criar condições económicas e políticas capazes de assegurar um verdadeiro autogoverno democrático. A verdade é que, no final, do século XIX Portugal tornara-se periférico, pobre e mais distante (como não antes) da economia e da cultura europeias. É esse afastamento dramático que constitui pano de fundo do romance Os Maias ou do dilema de Gonçalo Mendes Ramires em A Ilustre Casa de Ramires… E se o batismo de “Vencidos da Vida” teve o seu quê de irónico, como melhor do que ninguém demonstrou Eduardo Lourenço na sua psicanálise mítica do destino português, o certo é que essa marca de decaimento significava a necessidade de partir de uma visão autocrítica para a superação da mediocridade – daí haver, de Alexandre Herculano a Jaime Cortesão, a procura do reencontro com as raízes ancestrais da liberdade e da democracia. O reencontro de Portugal com a democracia e a Europa, no último quartel do século XX e início do século XXI, corresponde assim a uma resposta que confirma que a permanência cultural portuguesa se reforça com a autonomia, com o sentido crítico, a desconstrução dos mitos e com a capacidade inovadora.

 

OS EFEITOS NEFASTOS DAS CONQUISTAS
Herculano e Coelho da Rocha, na linha de pensamento que Antero seguiria no Casino, puseram-nos de sobreaviso relativamente ao sonho e à dispersão imperiais. “As riquezas do Oriente produziram entre os portugueses os mesmos efeitos que em todos os tempos têm feito sentir aos seus conquistadores” – ensinava o professor de Coimbra. “A antiga singeleza foi substituída por um luxo imoderado; este corrompeu os costumes; e a avidez do ouro ocupou o lugar da virtude e do patriotismo. Por outra parte, as longas e perigosas viagens, a guerra e a colonização despovoaram o reino e abriram um vazio que as riquezas não podiam preencher”. É como se voltássemos a ouvir Gil Vicente, Sá de Miranda ou o incompreendido Camões, pela boca do Velho do Restelo… Ao invés da glorificação do passado está aqui o apelo à fixação… Afinal, “a glória de mandar e a vã cobiça” mostraram-se mais poderosas do que o espírito inovador e do que a capacidade de dar novos mundos ao mundo… Oliveira Martins lembrou: “a bordo fomos tudo; em terra apenas pudemos demonstrar o heroísmo do nosso carácter e a incapacidade do nosso domínio”. A orientação para o mar foi ditada pela situação geográfica e pela tradição comercial – menos por uma vocação imperial, daí que os defensores do regresso à “vida simples” e à “fixação” tenham considerado não haver contradição histórica, mas complementaridade de vocações, enfatizando a fixação como complemento do transporte… E Herculano atribuiu, assim, a falta de esforço, crença e patriotismo na crise dinástica de 1580 aos “hábitos de desenfreio, cobiça, ódio e egoísmo que em cada monção carreávamos do Oriente para a Europa”. E um certo providencialismo decorreria da contradição entre os feitos alcançados e a míngua de efeitos duradouros conseguidos.

 

ENTRE FIXAÇÃO E TRANSPORTE
António Sérgio deu coerência a uma genealogia nobre, enaltecida por Herculano: desde a política de independência da primeira dinastia, passando pela justificação do Infante D. Pedro na Carta de Bruges, pelo sentido crítico de Sá de Miranda e de Camões, pelos economistas do século XVII, pelos académicos de setecentos e finalmente por Mouzinho da Silveira… Não por acaso, Oliveira Martins considerou modelar o exemplo do Príncipe Perfeito, como delineador de um plano para a Índia, fundado na criação de uma base económica na Península Ibérica. Ainda que concordasse com Herculano e Antero, estudou a hipótese de uma estratégia global assente na articulação entre a inserção europeia e o melhor aproveitamento dos recursos obtidos na circulação mercantil. A criação de uma base peninsular gorou-se, porém, do mesmo modo que as posições dos economistas do século XVII e a tentativa da atração dos capitais dos judeus e cristãos-novos não tiveram consequência em fixação manufatureira – que a descoberta do ouro do Brasil tornou aparentemente dispensável. O fulgor da corte de D. João V correspondeu à passagem das riquezas pelo transporte, e não a uma consolidação económica e cultural. Daí a evolução do século seguinte. Se é verdade que, desde a primeira geração liberal, de Garrett e Herculano, intelectuais e políticos reivindicaram a aproximação à Europa, sem prejuízo da salvaguarda das especificidades nacionais, o certo é que, entre meados e o fim do século XIX, houve uma clara divergência no tocante ao produto per capita, chegando-se à primeira década do século XX com uma distância não alcançada anteriormente. O PNB per capita português que era de 86% da média dos países desenvolvidos, em 1860, passa para 45% no início do século XX. Isto poderá parecer estranho, quando assistimos a uma política de melhoramentos, tantas vezes à custa da dívida pública. No entanto, o desfasamento em relação à Europa deveu-se ao facto de faltar entre nós a fixação, que permitiu no resto da Europa um crescimento muito mais rápido, graças às economias de escala. Tem razão Rui Ramos quando encontra as raízes da condenação dos efeitos das descobertas e das conquistas em Herculano, Antero e Oliveira Martins na ideia de que urgia construir uma “república”, como comunidade de cidadãos patriotas, autónoma e viável, explorando o enraizamento e a “vida simples” baseada nos próprios recursos. Fora da ideia de uma história impossível, como Eduardo Lourenço ensina, trata-se de assumir a herança multifacetada (de Pedro Nunes, Garcia de Orta, Camões, Fernão Mendes Pinto e D. João de Castro) e as suas lições – sendo o regresso ao cais europeu a possibilidade de conciliar a fixação na ampla frente de mar do hemisfério norte com o aproveitamento das virtualidades de um relacionamento global, em geometria variável, designadamente do mundo da língua portuguesa.

 

Guilherme d'Oliveira Martins

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Estou de volta àquela página de diário que escrevi em Scarsdale, num fim de serão, há trinta e três anos atrás. Na minha última carta, deixara-te esse meu texto no fim de uma citação de São Tomás de Aquino que dizia: Por isso falamos de amor íntimo e das entranhas da caridade... Logo adiante acrescentei: «E lembramos Camões: Transforma-se o amador na coisa amada / por virtude do muito maginar; / não tenho logo mais que desejar / pois em mim tenho a parte desejada. // Se nela está minha alma transformada, / que mais deseja o corpo de alcançar? / Em si somente pode descansar / pois consigo tal alma está liada. Lembrei-me de procurar estas reminiscências na desvairada biblioteca que trago comigo, depois de ter aberto ao acaso um dos volumes do Le je-ne-sais-quoi et le Presque rien do Vladimir Jankélévitch:

 

   Mais Platon pense que l´amour n´est ni ce vieillard vénérable, ni ce jouvenceau ridicule; à vrai dire, Diotime, porte-parole de Platon [no "Banquete", e continuo com Jankélévitch, mas traduzindo-o], descreve-nos um Amor mais próximo dos jovens do que dos velhos, posto que o Amor, segundo ela, está, vez a vez, em plena flor e moribundo e de novo renascente; infatigável caçador, eterno aprendiz, incorrigível noctâmbulo - eis o Amor! Em resumo, foi Pascal quem com maior clareza formulou o paradoxo do Amor: "O amor não tem idade, está sempre a nascer..." Por isso os poetas no-lo representam como uma criança. O amor é simultaneamente criação e reprodução; é totalmente aurora radiosa de uma nova era e herdeiro duma continuidade biológica, duma tradição imemorável. Quantas incontáveis vezes não terá sido repetida a palavra do amor, desde que o mundo é mundo? E sempre nos mesmos termos! E todavia o novel enamorado que hoje declara o seu novo amor improvisa essa palavra como se fosse o primeiro namorado desde a origem dos tempos, como se ninguém, antes dele, jamais tivesse pronunciado a palavra do amor, como se pela a primeira vez na história do mundo um homem dissesse o seu amor a uma mulher ; os próprios gestos do amor, gestos cuja iniciativa se perde na longínqua noite dos primórdios, dir-se-ia que o novel enamorado os reinventa a par e passo: porque cada homem, nesses momentos, é um inspirado e um inventor de génio. Tornando insensível a eterna repetição, o encanto sempre renovado arrasta o namorado no seu incansável impulso; cada manhã é para ele a primeira manhã do mundo.

 

   E, nesta catalisação de memórias e raízes que me provocou a conversa ao jantar (que andou muito à volta da demanda do reconhecimento ou angústia do irreconhecimento em Camus), recordo um texto de Diniz, teólogo antigo, no seu Tratado dos nomes divinos: O Amor é ele mesmo causa de tudo. Pelo excesso da sua bondade ele ama tudo. Faz tudo. Contém tudo. Realiza e leva tudo à plenitude. Ele é, Eros divino, bom, a própria Bondade, a Bondade emanente pela Bondade. Na verdade, Amor benfeitor dos seres, substituindo-se ele mesmo no Bem, infinitamente, não quis que o Bem permanecesse estéril, e levou-o a operar segundo a infinita eficácia da sua virtude.

 

   Depois da conversa sobre Camus e Sartre, etc., lembrei-me de ir a uma dessas estantes em que o Livro Sexto da Sophia está ao lado de títulos como Business Economics e o Ricardo Reis ombreia com o Código Comercial -  à caça de A Capital do Eça que, por acaso, se encostava ao Romancero Gitano e aos Veinte Poemas de Amor (Llorca de um lado, Neruda do outro). Porquê? Porque me lembrei de que Artur Corvelo é pretexto para descrever a superficialidade, a projeção desenraizada, a dificuldade ou impossibilidade de comunicar. E quis que a "minha" criançada me ouvisse ler, naquele português queirosiano, as fantasias, as peneiras, as deceções, as vergonhas, os melindres, os desgostos e as agressividades contidas, ou não, de um jovem provinciano incomunicado num salão (afinal provinciano também) de Lisboa.

 

   Tudo, esconso, está no olhar interior que nos criamos e nos faz nascer. Diz uma canção de Coimbra: És linda, se foras feia / mesmo assim eu te queria... / Não é por ser lua cheia / que a lua mais alumia... E posso dizer precisamente o mesmo, assim:

És feia, se foras linda / mesmo assim eu te queria... Mais luminosa brilharia então essa virtude criadora que se chama ternura. O amor não tem idade nem gosto, é um sopro de Deus.»

 

   Mais de três décadas depois, a minha biblioteca está muito maior e, com a instalação definitiva em Portugal, vou-lhe dando outra arrumação... que, aliás, inclui a doação de muitos, muitos livros. A pouco e pouco, com tempo até para ir tecendo novos panoramas de leituras idas e lembranças, de relações sem idade. Às vezes, um livro que agarro para lhe achar o lugar em estante retém-me, para que o vá ligar ao que me vai no peito ou na cabeça. Assim me encontrei hoje nas Maximes et Réflexions de François VI de La Rochefoucauld. Deixo-te, para fecho desta carta, as sentenças ou máximas morais fixadas no texto de 1678, com os números 68 a 76, que traduzo: É difícil definir o amor. O que se pode dizer é que, na alma, é uma paixão de reinar; nos espíritos, é uma simpatia, e no corpo mais não é do que um desejo escondido e delicado de possuir o que se ama depois de muitos mistérios... ... Se há amor puro e isento de mescla com as nossas outras paixões, é o tal que se esconde no fundo do coração e nós próprios ignoramos...   ... Não há disfarce algum que por muito tempo possa esconder o amor que aí esteja, nem fingi-lo onde ele não está...   ... Não há pessoas que não se envergonhem de se terem amado, quando já não se amam...   ... Se julgarmos o amor pela maioria dos seus efeitos, parece-se mais com o ódio do que com a amizade...   ... Podemos encontrar mulheres que nunca tiveram galanteria, mas é raro encontrar alguma que apenas tivesse tido só uma...   ... Há só uma espécie de amor, mas dele existem mil diferentes cópias...   ... O amor, tal como o fogo, não pode subsistir sem um movimento contínuo, e deixará de viver logo que deixe de esperar ou de temer.

 

 

   Das considerações de La Rochefoucauld posso concluir que o amor é uma potência ativa, só como ato existe, mas cuja essência ainda ignoramos, pois quanto muito apenas sabemos que se esconde no fundo do nosso coração. E é bem certo que muitas vezes com amor se confundem paixões de domínio e de posse... o que não significa que essas, ainda se contraditórias do bem querer, sejam totalmente estranhas ao impulso nativo do desejo de amar. Por isso, em carta anterior, eu te dizia que o amor se destila no silêncio do coração, no despojamento interior de cada si. Amores há muitos e diversos, todos eles devem ser filtrados por esse exercício ascético da procura do encontro do Amor. Como escreveu São João: para que seja completa a nossa alegria. 

 

Camilo Maria

     
Camilo Martins de Oliveira

O Tivoli e outros teatros e espetáculos de Raul Lino, arquiteto e doutrinador

 Teatro Tivolo _ planta.jpg

  

Há cerca de um ano referimos e analisamos o Teatro e Cinema Tivoli numa dupla perspetiva de edifício construído para cineteatro e sala de concertos, mas também no ponto de vista estético e da coerência artística, técnica e doutrinário de Raul Lino, autor do projeto e gestor artístico do Teatro, de 1924 a 1931. Evocamos o próprio arquiteto, num texto coligido por Diogo Lino Pimentel e publicado no ano passado num volume evocativo da Exposição Retrospetiva da Fundação Calouste Gulbenkian (outubro/novembro de 1970).

 

Escreveu então Raul Lino, a propósito do Tivoli:

“Levou mais de quatro anos a construir (…) era grande a vontade de fazer alguma coisa de original na decoração interna e cheguei a propor uma decoração que principalmente consistia em grandes ramalhetes de cerâmica policromada de estilo moderno e cores muito vivas (…) mas não consegui convencer o meu bom amigo (Frederico Lima Mayer): no entanto este pediu-me que me quisesse incumbir de organizar os seus programas, o que fiz durante sete anos” (cfr. “Tivoli - Memórias da Avenida”, coordenação de Duarte de Lima Mayer e João Monteiro Rodrigues, ed. Building Ideas, CM e Arquivo Municipal de Lisboa e Centro Nacional de Cultura - 2016).

 

E no texto aqui publicado referi a valência cultural do Tivoli como cinema, como teatro e como sala de concertos e de ópera, e isto, desde as chamadas Terças Feiras Clássicas, às sucessivas temporadas de espetáculo teatral e musical, que aliás marcaram uma modernidade absolutamente notável em épocas sucessivas.

 

E basta lembrar que no Tivoli, em 1925, António Ferro lançou a companhia denominada Teatro Novo, efetivamente a primeira iniciativa experimental da história moderna do teatro português.

 

Ora, é caso para dizer, no respeitante ao teatro português, o Tivoli marcou uma coerência de modernização, em décadas sucessivas. Vocacionado para a apresentação de espetáculos vindos do exterior torna-se no entanto relevante evocar iniciativas de verdadeira renovação de companhias portuguesas; citamos então o Teatro Experimental de Cascais dirigido por Carlos Avilez, o Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra dirigido por Paulo Quintela, ou o Grupo 4 e mais espetáculos que acertavam este registo de modernização/renovação.

 

Isto, no que se refere a artistas portugueses. Porque, no que respeita a temporadas ou espetáculos vindos de outros meios, pelo palco do Tivoli passaram a Royal Shakespeare Festival Company com Barbara Jeford e Ralph Richardson, ou o Pirakon Theatron de Atenas, este em cooperação com a Fundação Calouste Gulbenkian.

 

E ainda as chamadas Galas Karsenty-Herber e outras companhias vindas de França, que levaram à cena peças de Montherlant, Peter Brook, Anouilh, Noel Simon, Ariano Suassuna ou Abélio Pereira de Almeida.  

 

E no que se refere à musica? Aí, evocamos concertos em que se apresentaram “ao vivo” artistas com a qualidade e projeção de Stavinski, Rubinstein, Menhuin, Kempff, ou dos portugueses Viana da Mota, Freitas Branco, Ivo Cruz, Silva Pereira, Frederico de Freitas, Alvaro Cassuto, Tânia Achot e também tantos mais.

 

No catálogo da Exposição acima referido, enumeram-se os principais espetáculos ou textos dramáticos e bailados em que Raul Lino colaborou como cenógrafo, sendo certo que algumas delas não chegaram a estrear: "Rosas Bravas" de Afonso Lopes Vieira, "Auto de Mofina Mendes", "Fausto" de Júlio Dantas, João de Barros e Manuel Sousa Pinto, "Bailado do Encantamento" de Rui Coelho com coreografia de Almada, "Salomé" de Oscar Wilde, "Milagre" de Veva de Lima, "O Fidalgo Aprendiz", "Orfeu" de Monteverdi, "Pastoral" de Ivo Cruz e Margarida de Abreu - isto quanto a cenários projetados ou executados e para além de largas dezenas de figurinos desenhados para estes e outras espetáculos de ópera e bailado, segundo o Catálogo da Exposição acima referido.

 

E ainda acrescentamos que Raul Lino é autor do projeto do Cineteatro Curvo Semedo de Montemor-o-Novo e de elementos decorativos do Cinema Palácio de Lisboa. Mas esses serão referidos noutra ocasião.

 

 

DUARTE IVO CRUZ     

 

 

 

 

AS ARTES E O PROCESSO CRIATIVO

Paul Valery

 

XX - CRISE E RUTURA DOS VALORES E CHOQUE DA GUERRA - II

 

Para uns, a origem da crise no século XX era terem ruído os valores tradicionais, essencialmente os religiosos. Para outros, a divinização da ciência e idolatria dos cientistas, o mito do progresso científico, substitutos das crenças tradicionais, entre elas a religiosa. Apesar de defenderem que o afastamento de Deus tinha ocorrido em pleno século XIX e, mesmo assim, a humanidade tivesse vivido um período de um expressivo e significativo otimismo.

 

A razão e a racionalidade fomentariam a dignidade humana e a liberdade individual, trariam a paz, a justiça social, a promoção e reconhecimento dos melhores. A guerra viria provar o contrário, dada a sua violência e totalitarismo, produzindo armas letais que punham em perigo a sobrevivência da humanidade e de melhores condições que possibilitassem uma vida interior mais humanizada. As tentativas de institucionalização da paz internacional, após a primeira guerra mundial, fracassaram, com a malograda Sociedade das Nações. Reflexões pessimistas emergem, revelando a guerra o que havia de não adquirido e de transitório na civilização do princípio do século XX.

 

O filósofo, escritor e poeta francês Paul Valéry, em 1919, escreveu: “Nós, civilizações, nós sabemos agora que somos mortais. (…) Agora vemos que o abismo da História é suficientemente grande para todos. Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que uma vida. (…) E não é tudo. A lição escaldante é ainda mais completa: não bastou à nossa geração aprender por experiência própria como as coisas mais belas e as mais antigas, as mais formidáveis e as mais bem ordenadas são perecíveis por acidente: viu na ordem do pensamento, do senso comum e do sentimento, produzirem-se fenómenos extraordinários, bruscas realizações de paradoxos, deceções brutais da evidência”.

 

Mas se é verdade que este choque belicista colocou em causa a cultura cosmopolita, o clima intelectual e artístico, a crença no progresso e a prosperidade da sociedade da Belle Époque (Bela Época), que se iniciou no fim do século XIX (década 1870) até ao implodir da primeira guerra mundial (1914), também é verdade que foi um acelerador de novos meios de comunicação, massificando-os e difundindo-os junto de um público mais vasto, através da rádio, do cinema e do disco, por exemplo.

 

Face à transitoriedade da vida, foi ainda um acelerador poderoso para a fúria de viver, o culto do fruir, gozar e usar a vida ao ritmo do dia a dia, para os que sobreviviam, dada a certeza de efemeridade da vida, aliada à maior incerteza do momento, agravada pela mortalidade da guerra. Literatura e cinema fizeram o seu culto.

 

O mesmo sucedendo a nível das convenções morais, incluindo o Reino Unido, profundamente afetado pelo choque da guerra, exemplificando-o o filme Mrs Henderson, de Stephen Frears, dado que: “O puritanismo, quando a vida se tornara tão ameaçada e os prazeres tão raros, sofrera rudes golpes. Os breves encontros do soldado de licença harmonizavam-se mal com o respeito pelo ritual vitoriano do noivado, as convenções do decoro já não eram admitidas nos “cabarés para soldados”, os nascimentos fora do casamento tornavam-se aceitáveis, senão admitidos. De um só golpe a guerra acabava de tornar ultrapassado o código social e moral do século XIX. Dali em diante, os puritanos tiveram de resignar-se a tolerar a existência de comportamentos “não convencionais” ou até “emocionais” (Pierre Léon, História Económica e Social, Vol. V, Sá da Costa, Lisboa, 1982). Com mudanças no mundo feminino, em termos de estatuto e responsabilidades.

 

Amargura, ansiedade, dúvida, incerteza e inquietude, sucederam ao otimismo. A fé positivista e inabalável na ciência e na razão, foi posta em causa pelo filósofo francês Henry Bergson, para o qual a intuição é o motor de todas as coisas, não a razão nem a ciência, originando o intuicionismo, sendo o impulso vital que explica a evolução do universo (vitalismo). O cientista, apercebendo-se de que nem tudo é explicável racionalmente e em termos deterministas, abre portas à intervenção de Deus na ciência. Albert Einstein apresenta a teoria da relatividade pondo em causa a natureza absoluta do espaço e do tempo de Newton, surgindo uma súbita relativização de tudo o que até então era tido como inatacavelmente científico. O físico alemão Heisenberg criou o princípio da incerteza, reforçando o indeterminismo.

 

O que trouxe novas preocupações aos homens de letras, tornando a literatura mais angustiada e crítica, com reflexos da guerra. Franz Kafka, autor da angústia e do absurdo, Aldous Huxley, usando a ironia, Máximo Gorki, autor soviético empenhado politicamente, Malraux, Hemingway e Scott Fitzgerald, são alguns exemplos.

 

29.08.2017
Joaquim Miguel De Morgado Patrício

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