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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

Onésimo Teotónio Almeida.jpg

 

      Minha Princesa de mim:   

 

Recordo-me desse conceito de irrealismo prodigioso português, que Eduardo Lourenço invoca no seu O Labirinto da Saudade e Onésimo Teotónio Almeida retoma no seu recente A Obsessão da Portugalidade, livro em que inclui um texto escrito nos anos 90, por lhe parecer que essa tendência para o nacional ufanismo se voltava a manifestar. Na sua referida entrevista à revista LER (Primavera 2017), diz o professor açoriano da Brown University (EUA):

A entrada na Europa e o acesso aos fundos europeus, que supostamente permitiriam a Portugal recuperar o atraso gerado ao longo dos últimos séculos, provocaram um novo delírio. Reinstaurou-se no País um clima festivo, celebratório, completamente desligado do real. De um momento para o outro, Portugal parecia sentir-se truncado das suas raízes, como se fosse possível atirar-se pela janela com 500 anos de História. O País parecia acreditar de novo em fadas e estar a viver nas nuvens. Atingiu-se os picos do irrealismo por altura da Expo 98. Uma outra manifestação dessa mesma época que refletia esse tipo de atitude, uma vivência no mundo poético, foi a euforia com o caso de Timor-Leste...

 

A expressão nacional ufanismo - que, aliás, posso aplicar a uma qualificação das citadas frases sobre a ação de mudar os hábitos do mundo ou de ter a Ásia sob influência portuguesa - remetem-me para outra lembrança: essa, de que várias vezes te falei, das crónicas intituladas Lágrimas de Crocodilo (???), publicadas na revista Flama, na década de 50se a memória não me atraiçoa, por um tal Joaquim Silva Pinto: Que irão os estrangeiros pensar de nós? Eis o reverso da medalha: ao nacional ufanismo corresponde um exacerbado e receoso sentimento de detetável e fatal inferioridade...

 

Na verdade, creio, Onésimo Almeida põe, pelo menos, um dedo na nossa ferida histórica quando aponta para a impossibilidade de atirarmos 500 anos de História pela janela... Não se refere a glórias passadas, antes nos recorda o esquecimento dos séculos da "decadência" - aqueles sobre que se debruçou a "nossa" geração de 70, com destaque para a conferência [do Casino] de Antero de Quental, como tantos outros, então e mais tarde, em Portugal e na Espanha irmã (Miguel de Unamuno, por exemplo). A questão que se levanta não é, pois, a de saber porque é que a lembrança e consciencialização de "glórias passadas" não tem sido suficiente para apoiar a regeneração de sociedades anquilosadas. Já sabemos que assim não tem sido, antes deparamos, cada vez mais, crescentemente, com fantasias coletivas, alienações que nos levam a substituir o mito Gama pelo mito Ronaldo, qualquer vitória desportiva ou êxito festivaleiro sendo transformados em sacramento ou sinal "eficaz" da lusitana vocação para a superioridade. A grande interrogação a que nos cabe responder é a do porquê do desgosto por, ou quase ausência de espírito crítico e analítico em Portugal, ao longo de tantos séculos e hoje ainda. E não chega acusar a Inquisição nem o obscurantismo fatalista e beato do ensino tradicional da Igreja portuguesa - por muitos casos demonstrativos que se possam apontar - pois também todos sabemos que o último quase meio século de democracia "progressista" pouco conseguiu elevar o nível geral dos nossos debates públicos, diminuir a futebolice reinante, ou tirar fôlego às nossas inspirações mitómanas... 

 

Por obscura razão se pretende, entre portugueses, singularizar uma identidade nacional pela sua essencial diferença ôntica, essa alma lusíada que inspirou um povo a realizar obras inéditas: ser português é ser forte, fiel, façanhudo, fazendo feitos famosos. À nossa maneira, sempre original, com mais ou menos desenrascanço, a grande virtude nacional. E/ou a saudade no cerne da "nacional-filosofia"... Os chamados intelectuais, com variações, discordâncias e até polémicas, lá vão insistindo no labor de definirem uma identidade cultural pela diferença de ser, tal como a tradição popular nos remete para o fado, o "marialvismo" e a saudade, ou se considera o "milagre" de Fátima um sinal da especial estima mariana e divina pela nação lusitana. O patriotismo não pode ser um qualquer "ópio do povo", nem evasão "mística", fantasia épica ou efabulação de um ser ideal e acima de qualquer suspeita, menos ainda uma forma mesquinha de sentimentalidade, que o Eça tão bem caricaturou ao fustigar o clamor de "ó pátria, ó querida"! comparando-o a qualquer torpe declaração a "uma espanhola barata". Antes seja o patriotismo, como o amor, uma forma suprema da misericórdia de nós como comunidade histórica, isto é, passada, presente, futura. Somos portugueses entre todos os povos, com suas e nossas forças e fraquezas, tristezas e alegrias, originalidades, também, quiçá todas resultantes de encontros e heranças, de trocas e empréstimos... A mesma humanidade, e as suas caras. Cabe aqui, Princesa, a ida a outros passeios, novos devaneios das minhas cartas que, por isso mesmo, por serem cartas escritas ao correr da pena, ou seja, dos meus dedos sobre o teclado do computador, são só confidências ou partilhas amigas, destituídas de qualquer propósito de tratamento estruturado de ideias.

 

     Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira