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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

Voando sobre um ninho de cucos

Um filme de Milos Forman com Jack Nicholson- 1975. As características de um estar contemporâneo, redescoberto por indivíduos e equipas geniais no exercício do temor. Um filme que se estende a muitas realidades diferentes com consequências tendencialmente inescapáveis.

E UM POUCO COMO McMURPHY. É FÁCIL ENTRAR. O DIFICIL É SAIR.

 

 

Governar pelo medo, governar pelo poder, governar pela capacidade de infligir tristeza, governar pela falta de cognição, pelo ajoelhamento, pela culpa na alma dos outros, governar para que vença quem torna o outro culpado, governar contra a existência digna, governar contra o sono, governar para interromper a pulsação da esperança, governar condenando, governar pela insignificância de governar, pela festa de tudo controlar, governar chamando a figura admoestadora do chicote, governar contra o número dos vivos que dolorosamente tenta ganhar com que viver, governar como quem mata a sede a cativos, governar para ser auditor dos próprios milhões em registo de prece, governar invocando religiosidades de fação, governar com a virtuosidade de impor, governar por analogia da dor, pelo raio laser focado em quem se pergunta, governar humilhando os homens em frente dos homens que os roubam, governar de bandeira seca, governar a cada segundo tornando-o longo, governar sem que se descubra o que se passa, governar para fazer tremer a vontade alheia, governar para nunca confessar o seu erro, governar com os anjos rejeitados pelo céu, governar com ódio, hipocrisia, mentira, governar como intruso em corpo alheio, governar provocando uma solidão rodeada de solidões, governar pelo direito com bolor, governar prometendo mais medo, governar para que o poeta só escreva um verso, governar brutalmente como coveiro dos sorrisos, governar como se o filho pudesse ser mais velho do que a mãe, governar sem compaixão pelos encontros de jardim, governar esquecendo que os nossos pais nos educaram transmitindo-nos que a partir do ano anterior de nós, rejuvenesceria a casa, o tempo velho, as missões impossíveis, e que uma mulher sempre longilínea, sempre bela, ergueria embrulhado num gracioso xaile de recém-nascido, o seu filho, aos olhos de seu pai e de um mundo feliz, e eis o abraço célebre da vida, que, comovida abria o peito, resguardando a criança fora deste estar de desabridos caninos e molares prostitutos com que se governa em jeito de fast-food inimputável, o horror universal.

 

Bem-haja quem pelo seu caminho e arte, aspira a que de si fique uma memória imperecível, e seja ela prova de que governar poderá não ser uma sátira astuta protagonizada por personagens ridículas de sorrisos canalhas face ao destino de uma civilização.

 

E governar justapondo lugares distantes, reflexões brilhantes, estilos de vida superiores?

 

Governar sem utopias para além das necessárias ao impulso das mudanças, governar numa epopeia de se construir o melhor, sabendo a sério o quanto a seriedade é discussão com um louco que deve saber onde é a vida, a identidade, a circunstância.

 

E saudade. Não se governa a saudade.

 

A saudade não tem dimensão e o seu lugar é todo um coração que alberga toda uma emigração seja de que género for. A saudade é catalisadora na nossa viagem de regresso ao país natal, país seja ele como seja, mas feliz onde se focalize e no que se transforme.

 

Saudade é pujante condição humana que não constará nunca dos programas dos atos de governança, e mais, mesmo que seja uma tristeza do pensamento, saudade é livre, é fogo, é luta, ela é um sentimento que vê, ela é um som de sentir isolado que definirá modo e lugar que enfim, existem, sem que governar seja deixar um Big Bang ao nascimento do Ser.

 

Saudade é também acreditar que é difícil sair para uma verificação última da verdade ou do erro. Mas saudade é a que sabe negar o estatuto de um absoluto ou este não tivesse afinal qualquer história. Saudade é um pensamento no decorrer da vida e que abre caminho por ser capaz de chegar a algum lado.

 

Saudade é um saber que também conhece o quanto as tonalidades da mentira são inesgotáveis e que a certeza se desdobra em múltiplas camadas. Mas a saudade de uma paz humana conhece-lhe os complexos filtros para a atingir ou não vivesse nas relações perturbadas entre pensamentos e amor e luta.

 

Teresa Bracinha Vieira
Outubro

RADUAN NASSAR, “UM COPO DE CÓLERA”: poder e submissão no espírito do tempo

 

Prémio Camões 2016, “Um Copo de Cólera” (…) «tem mais poder nas suas poucas páginas do que a maioria dos livros com cinco ou dez vezes mais páginas» e assim é, tal como publicou o The Guardian. Depois de ler “Um copo de cólera”, lancinante extremo da literatura portuguesa, as perguntas fundamentais e seus sinais são força de fogo.

 

Trata-se de um livro profundamente invulgar, de uma ferocidade sôfrega que se desenvolve a partir de uma noite de amor e de erotismo em que dois amantes se entregam numa experiência intensa e rara, e eis que surge o extraordinário de assim a escrever, e a necessidade presente do alguém que tem de pagar queira ou não, o suporte espontâneo da cólera ou não fosse esta o melhor alívio da culpa que se suporta no eixo do peito.

 

E muitas vezes fiquei sem ar nas páginas deste livro. Tudo nele é de rajada numa verdade hemorrágica, lasciva e ungida na força dos pensamentos independentes, quando se sabe que os cães acorrentados trazem feras no avesso, e que mais não somos nós do que acorrentados? mesmo quando rogamos que os pés do nosso homem possam ser dois lírios brancos, e a nossa cela os aceite como macho absoluto do nosso barro numa prosternação de meu amor sacana.

 

«que tanto você insiste em me ensinar?».

«estou descalço» dizia, e ela nunca tivera dele o bastante, só o suficiente. Sempre o dissera.

 

Ela, essa femeazinha fascista que se regozijava da perspicácia que lhe atinava também como mulher que atua, e que enxotava quem é fraco, querendo-o. E ele querendo sempre transformar em graça o ferrete que ele próprio carregava, Deus meu! numa forte iluminação da bofetada no rosto dela, gritando-lhe o quanto, o que contava na vida era a qualidade da descida, ó carcaça, cérebro de pilantra, tudo o que vomita, é tudo coisa que você ouviu de orelhada.

 

Mulher mais gatuna é a que abre a boca e os dentes não contam idade, para sob ela encobrir que quer castrar seu homem, chamando-lhe de «mestre» e alfinetando-o com o fogo das palavras e das ancas, misturando razão e comoção e sempre metodicamente a querer que ele seja seu filho igualzinha à maioria das mulheres que nos momentos de emancipadas querem seu macho num tempo diferente da geometria passional.

 

E num instante ele era o canalha da cama e o canalha que ela ama com volúpia e recuo, e ele, descalço, e ele a levá-la à entrega hipnótica por sua tão própria linguagem, essa linguagem que fora ele que lhe ensinara, ele, o sem estudo, e ela metálica de curso feito, tanto quanto o seu riso escárnio não entendia que era a fascista pior do que ele, pois não sabia que o era em nome da sua razão.

 

Gritavam um ao outro os demónios internos de cada um, as velhacarias bem sufocadas que tanto insistiram em os ensinarem numa farsa tão sinistra quanto esplendida, sobretudo quando tudo se incendiara com a demolição da cerca que as formigas metodicamente tinham derrubado. Ou talvez não. Talvez tudo se iniciara com a decisão de usar veneno para as sufocar na toca que se pisaria depois com um calcar definitivo ao ar. Uma força contra a vida ou contra uma outra direção, mas uma força.

 

E ele recebia dela umas mãos no banho que lhe dava depois do amor ou do sexo, movendo-se doidamente quando ela lhe apanhava os cabelos num ritmo que ela cumpria e ele só sabia que se entregava (…) «para que fosse completo o uso que ela fizesse do meu corpo».

 

Sempre, de um modo ou de outro a nossa infância recorda-nos ideias acabadas e sem a confusão da idade grisalha. Li neste livro a dor desta claridade da infância ser mais pedra que saudade, mais absoluta solidão depois do concluir o austero dejejum do colo dos pais imperfeitos, e tão amados, naquele tranquilo labirinto dos enigmas do então.

 

E começara já os latidos mais desesperados entre ambos como se se quisessem aniquilar um ao outro, abrindo covas fundas e de inesquecíveis dores um no outro, com tudo o que certeiramente se diziam, pois que ambos não eram gente, ou eram-no porque.

 

E já em indicações díspares de destino ela fugira para sempre e ele fingira que adormecera até ao dia seguinte, abandonando-se qual menino na sua própria cama, mulher anforal, e ela entrava já devagar no dia depois, pela manhã, e clareando a emoção por entre as lágrimas secas, acedia à condição relativa, sabendo que numa porventura certeza aos dois e a um tempo, se embalava a realidade, enquanto um seio despertava a vontade de a ambos e em ambos se proteger.

 

Assim li este mundo que Raduan Nassar, num ímpeto de copo de cólera, partilhou, bem como, o quanto a fórmula de a beber, assim estilhaçada, é cortante, mas esclarecedora. E deste modo, Nassar deu unidade à Coisa depois do confronto dos violentos segredos que nos prendem e nos racham numa única razão de amor e de vida. Numa razão de perder princípios, por vezes, avaliando mal o tamanho das formigas e do medo.

 

Por mim diria, que neste livro os amantes ainda se disseram um ao outro, serem a única coisa que se deixavam mutuamente. E se este dizer era ataviado, sem dúvida, eles o conheciam como lugar central.

 

Teresa Bracinha Vieira

Setembro 2014